sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço (1ª parte)

|João Bentes


vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço
julgo que esteja extinto o primeiro peixe que apanhei
quando a água benta me bateu na testa disse areia
no primeiro dia de escola fiz-me condutor de barcos
mais tarde ensinaram-me todos os olhos da amêijoa
o que ganhei foi a deformação do anelar e do mindinho
mais a hipótese de uma hérnia no meio das costelas
e quando o lingueirão se tornou demasiado escasso
disseram-me que isto não era vida para ninguém


tenho a certeza de que só queriam o melhor
e eu sem saber que o que deixava era o meu tudo
aos 17 apresentei-me de calça preta camisa branca
sapato de couro muito brilhante de engraxado
no importante hotel para o desenvolvimento
cá da praia que era o sonho de todos os que queriam
uma vida melhor sem grandes apertos económicos

obviamente muito precário e ilegal
aprendi todos os segredos da hotelaria barra
restauração barra cafetaria barra o que fosse preciso
desde as distinções aristocráticas dos vários tipos de bica
da ordem dos talheres dos copos dos guardanapos
à abordagem correcta e exemplar sempre pela direita
e até mesmo a delicadeza absurda com que se engolem
os insultos dos senhores dos cartões sem paciência


aprendi sobre bons vinhos sem nunca os ter provado
e os truques mais excêntricos dos bifes flamejados
quando e como deveria sugerir a mais cara cataplana
aos petulantes ingleses que se esmeram nas gorjetas
dizer sempre que o peixe do dia está todo fresco
com o desprezo sarcástico dos emigrados em frança


depois de aprender como fazem os profissionais
aprendi a ignorar e a desenrascar-me como podia
porque a crise é sempre paga por quem está em baixo
pois começa no estado que repreende os patrões
que repreendem os empregados sem alternativa
que se estão cagando porque quem paga é o cliente
que quando se apercebe já foi fodido e enviado
pela porta afora com o sorriso de um volte sempre


durou 8 anos a perda da minha inocência
8 verões de introdução ao alcoolismo e ao tabaco
em nome do futuro de um curso universitário
onde justifiquei o meu interesse pela ciência
questionando os princípios da moderna engenharia
descobri que a genética é a doença mais humana
que o que conta é ter espírito académico
inclinação política e mentir o que for preciso



Odes, 4águas, 2013