domingo, 17 de fevereiro de 2013

O coice da Baikal


Recensão do livro Maria dos Canos Serrados de Ricardo Adolfo

|Luís Filipe Cristóvão


Ricardo Adolfo já havia mostrado não ter par na literatura que é publicada em Portugal. Primeiro que tudo, habita um território demasiado perigoso, onde a maioria dos editores não costuma demonstrar coragem para entrar. Depois, porque a literatura suburbana que nós conhecíamos, não se escrevia assim.


Talvez nos primeiros livros de António Lobo Antunes ou em algumas das suas crónicas encontrássemos personagens capazes de entrar nos livros de Ricardo Adolfo. Mas enquanto a linguagem de Lobo Antunes é desenhada para a harmonia, a de Adolfo é montada para se enquadrar com a realidade. Maria dos Canos Serrados torna-se assim um romance à procura dos seus leitores, grande parte dos quais, acredito, não frequentam livrarias.

Mas passemos da forma ao conteúdo. Dentro deste livro encontramos um casal disfuncional, namorados presos na distância, ela uma mulher de forte personalidade presa na paixão pelo seu “Velhinho”, um gigolo de serviço no Algarve. Maria é uma líder na empresa em decadência onde trabalha, a líder do seu grupo de amigas em queda livre, o sonho dos homens com quem se cruza (o senhorio, de quem foge, e o Nandos, de quem acabará por conseguir a arma que lhe dá nome).

Todo o romance é uma onda crescente de tensão  –  a distância cada vez mais mal aceite, o desemprego eminente, a solução encontrada fora-da-lei – que sentimos pronto a rebentar no próximo capítulo. Mas o namorado, finalmente, aparece, a empresa sobrevive nas mãos do sindicato, o fora-da-lei parece, enfim, nomeado para uma justiça divina. Mas Maria dos Canos Serrados não nos oferece salvação. Quando a paz suburbana se prepara para reinar, finalmente rebenta a bomba na narrativa.

O gatilho é disparado na cama de Maria – onde estão dois, mas ela não está. Então o texto modifica-se, deixa de lado a construção da tensão e torna-se uma correria para um final inesperado. Na guerra de sexos, ganham as mulheres, mas esta não é, seguramente, uma narrativa de libertação feminina.

Num livro pouco aconselhado para menores de idade, pessoas suscetíveis, almas chorosas e gente que prefere viver afastada do pecado, Ricardo Adolfo dispara em várias direções e sai vencedor. Depois de Mizé e de Maria dos Canos Serrados, o português da linha de Sintra tem um representante literário, o português das ruas ganha sentido num livro, a edição portuguesa pode, enfim, dispensar a gravata. E não se pense que é fácil conseguir isto estando armado – experimente aguentar em pé um coice de uma Baikal.

Maria dos Canos Serrados
Ricardo Adolfo
Alfaguara