quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

crispado como o mar deste inverno


|João Bentes

crispado como o mar deste inverno
lembro-me de coisas ferrugentas
anzóis algures na infância uma noção
de cansaço alegre que a maré põe no corpo
o que as ondas murmuram de poente em junho
o despontar do verde a ria calma o primeiro calor
a fertilidade anunciada na cor atmosférica que muda
o cheiro doce da lama numa manhã incendiada de sol
quando a primeira proa faz rumo a terra correr
correr pelas dunas a chamar a gente de casa em casa
levar o sebo e de joelhos na areia untar parais
pô-los todos de feição e olhar
olhar o gesto afoito de coisas que sempre foram
durante dias a excitação de barcos que avaram à praia
de ser pequeno e querer fazer tudo como um homem
o sangue do peixe espesso como água na seda
o impacto fulgurante das cores escamudas um bailado
escolher mesmo ali o que a ajuda leva e o que se vende


se assim for a fortuna do dia caminho para a lota
peixe e mais peixe e mais peixe ainda
conversas de homens fumando cigarros ao canto da venda
setenta e nove setenta e oito setenta e sete chui!
uma sandes e um sumol logo ali ao lado e depressa
safar a arte apanhar carnada ver a mãe a arranjar o peixe
tudo outra vez tudo um dia seguinte sempre fiel ao olho do tempo
amanhã à sêma depois à lula amanhã à ferreira e à bica
descansar na amêijoa ter fé na lua da corvina
que para um ano bem ganho basta ao bom pescar três vezes
e a fome mesmo que nos toque nunca será muita
e tudo será na graça do senhor ou dum par de cornos
e tudo será forrado na mesma medida do que foi ganho
e tudo um oceano imenso de sal desfazendo-se na boca
face à impossibilidade de proferir um rosto à saudade
quando tudo se esgota nas palavras e o que fica
o que fica é uma sensação de lágrimas a romper o peito
que é só tudo quanto me cometeu a juventude
aquela inocência perdida que é uma fome do mar
que eu queria viver aqui hoje sem mais nada
só areia peixes pássaros e a luz do teu amor


Odes, 4águas, 2013