sexta-feira, 31 de maio de 2013

O olhar do editor

|Manuel A. Domingos



Quando em 2008 ouvi, num café de Punta Umbria, Antonio Orihuela dizer parte deste longo poema, pensei: quando um dia tiver uma editora publico-o. Em Janeiro de 2013 – após cinco meses no desemprego – decidi criar a editora Medula. E em Fevereiro saiu Que o Fogo Recorde os Nossos Nomes, de Antonio Orihuela.

O autor foi receptivo à sua publicação em Portugal. Até à publicação deste livro, Antonio Orihuela apenas estava representado nas revistas Sulscrito e Bíblia, bem como numa antologia de poesia espanhola organizada por Joaquim Manuel Magalhães: Poesia Espanhola anos 90. O autor insere-se no movimento colectivo da poesia da consciência. De marcado pendor libertário, a sua poesia tem uma voz desassombrada e actual.

Que o Fogo Recorde os Nossos Nomes é um longo poema, que segue a tradição peninsular dos cantares de gesta. Alguns poderão ver nele reminiscências do poema mais conhecido e mediático de Allen Ginsberg. Só que em Ginsberg celebra-se a vida dizendo-lhe “olá”; em Orihuela celebra-se a vida dizendo adeus.


quinta-feira, 30 de maio de 2013

3 poemas de Sofia A. Carvalho

|Sofia A. Carvalho

Pigmentos intravenosos

resposta a um poeta

E se me apetecer o branco do edifício
geometricamente branco
sem paredes e vários rostos
aumentando as mãos
inacessíveis
telhados por cima e eu
corpo incendiado a engolir o medo
quadrado de pó
e sem que ninguém me ouça
atrás da porta.

*

Necrópsia e outros demersais

Regressamos à terra e não é vã
a procura do amor e o seu súbito golpe:
a noite e a cabeça deitadas sobre o gatilho
testemunham outros visitantes
pássaros, peixes e abismos
sem olhos
a apontar fantasias e na hora máxima
desalinham, incendiando o verde
épico de grandes planos
no movimento bastião
rumo ao Oriente
(do ponto de vista da Natureza!)

*

Partitas ou Miserere Mei

Adagio
O que é a verdade senão
adesão do corpo ao precipício.
O mesmo é dizer:
o luto do espírito pela realidade.

Fuga
Desaprendemos o que é a vida
ao ensurdecer para Deus.
Recostemos a cabeça por cima dos ombros
Sem lamentos de não ter tido tempo.

Presto
O crime não desaparece do mundo
É o jejum da Vida.
Apanhemos o primeiro pelo cachaço
E ao segundo congracemo-lo
sem esmolas.



SOFIA A. CARVALHO 
Licenciada em Filosofia [UCP, Lisboa, 2003] Mestre em Estética e Filosofia da Arte [FLUL-UL 2008]. Publica estudos e ensaios, sobretudo, nas áreas da filosofia e da literatura, linha de investigação exegética do Pensamento Português dos séculos XIX e XX. Colabora em jornais e publicações, participando em colóquios e encontros sobre a temática do pensamento e cultura portugueses.





quarta-feira, 29 de maio de 2013

Poesia de Carina Flor - 2

|Carina Flor

Latência

Só o sonho prevê o caos latente
e vive-o tão serenamente que
só o acordar é vão.

Acordar é um dormir demente.

A absorção migratória dos líquidos
na procura do sangue em equilíbrio.

*

Significado de Amor

É um passo que cessa.
É caminho que perdura.

Um pouco mais de sol.
Um pouco mais de lua.

Indefinível.
Como dois lugares no céu,
metade é doença e metade é cura.

*

Depois do Silêncio

Depois do silêncio, todas as vozes tocam
a melodia do entendimento.

Depois do silêncio, o corpo dança calado
num eterno consentimento

entre a mudez e o grito.

*

No entendimento da Semente

A fragilidade das árvores
esmagou-os contra o chão
e os corpos apontaram o céu
como flores ansiosas de fruto.

terça-feira, 28 de maio de 2013

Poesia de Carina Flor - 1

|Carina Flor

A Casa

Quem inventou a casa, devia saber.
Devia saber que ela veio alojar-nos numa liberdade insuportável.
É como estar fechado na impossibilidade de se libertar.

E continuamos presos às memórias sepultadas
nos cantos, no chão, na janela e também na porta.

Rendidos à sedução das felicidades impossíveis,
esquecemo-nos tristes no chão onde, mesmo de perto,
não se sente o cheiro a terra e a veracidades possíveis.

Como se pode almejar a felicidade livre se, nos cantos,
moram todas emoções que fizeram esgotar o coração?

Não adianta assear a casa.
Teremos apenas uma tristeza iludida de beleza.
Teremos uma janela e uma porta abertas para dentro,
para os cantos e para o chão, onde morremos lentamente.

Estende uma flor no teu dorso e caminha descomprometido
pelos caminhos de terra. Onde os passos são portas e janelas
por baixo de um céu tão imenso que nem ele, desejoso de azul,
saberá nunca se começa ou se termina junto ao mar.

*

Transcendência

Tudo em mim não são mais do que pernas.
E do que braços.

Todo o resto é essa imensa vontade de carne.
E osso.

São fossos de luz tão profundamente livres.
E hidratados.

Como água encarnada na vaporização da alma.
E do corpo.

*

Dormência

Este estado intermitente da alma
que, já cansada, não liberta ainda
toda a sua exaustão.

É como se dos pulmões,
e dos pulmões o peito,
regressassem tormentos de luz.

Este estado intermitente do corpo,
já desperto, adormece silencioso.

Dormência calada, encostada ao sonho.

Vislumbre incessante da vida
como única testemunha de si.



Carina Flor nasceu a 20 de Agosto de 1980, na Póvoa de Varzim. Professora licenciada, com pós-graduação em necessidades educativas especiais, exerce funções desde 2003. Dinamizadora de um blogue pessoal, destinado à partilha de textos. Colaboradora no manifesto Black Riot Book, um projecto editorial recente, destinado a coleccionadores de edição manufacturada e limitada.

Sítios:


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Livros a Oeste


Depois do sucesso do primeiro ano, a Lourinhã volta a organizar o evento "Livros a Oeste" que decorrerá de 27 de maio a 1 de junho e que trará, ao Centro Cultural Dr. Afonso Rodrigues Pereira, mais de três dezenas de reconhecidos autores no panorama literário nacional e internacional como: Nuno Camarneiro (prémio LeYa 2012), Valter Hugo Mãe, Alice Vieira, José Jorge Letria, Margarida Rebelo Pinto, Isabel Stillwel, Onésimo Teotónio de Almeida, Mário Zambujal, Afonso Cruz, entre outros.

Observando-se o formato pensado para este evento, a consecução do programa, passará pela realização de conferências, workshops, conversas com autores, sessões de cinema, teatro, apresentação de livros entre outras atividades, bem como a  feira do livro, patente durante todo o festival, numa clara aposta na diversidade, aliada à qualidade,  afirmando, mais uma vez,  a Lourinhã, como destino cultural alternativo aos grandes centros urbanos.

Toda a informação sobre o evento poderá ser consultado em http://livrosaoeste.blogspot.pt/

sábado, 25 de maio de 2013

Proibido Fumar

|Luís Filipe Cristóvão


O médico, diga trinta e três, trinta e três, eu a olhar fixamente para o esqueleto guardado a um canto do consultório, sem conseguir respirar, quanto mais dizer alguma coisa, um esqueleto branco e luzidio, com os ossinhos todos no lugar certo, inquebráveis como os brinquedos dos cães e sem pó como a sala sempre tão arrumadinha da Marlene, o médico, trinta e três, e eu a pensar outra vez na Marlene, já sem ouvir nada, sem conseguir dizer nada, sem pensar, completamente, sem pensar, a Marlene, há quanto tempo eu não fodo a Marlene, há quanto tempo não a oiço dizer, lambe-me cabrito, há quanto tempo não a vejo a passear a mini-saia pelo supermercado, há quanto tempo, Marlene, não fazemos amor no sofá da tua sala, o médico, trinta e três, caraças, trinta e três, e eu a explodir num ataque de tosse convulsiva.

   O senhor tem que ter cuidado consigo, muito cuidadinho, já viu em que estado está este exame aos pulmões, o senhor não tem vergonha, e eu não, não tenho vergonha, sim, confesso, três maços por dia, três macinhos, gigante, há mais de trinta anos que fumo gigante, e não é agora que os vou largar, doutor, eu preciso tanto deles, fazem-me tanta companhia, logo quando acordo, sozinho na cama, um cigarrinho, para acalmar a tosse e começar bem o dia, e depois aquele stress todo de andar sempre de um lado para o outro, a carregar caixas e caixas de bebidas, aquilo é carregar, voltar ao camião, acender cigarro, mandá-lo fora quando paro, carregar outra vez, o doutor acha que isto é vida, tem que ser o cigarrinho, doutor, tem que ser, pelo dia todo, só três macinhos, só três, que eu agora até deixei de fumar à noite.

   Desde que a Manuela e o puto saíram lá de casa que me andava a fazer espécie não haver nada para fazer depois de jantar, depois ter ido ao café espreitar a bola, ouvir a conversa da malta, um gajo volta para casa e não há nada, só o cigarrinho e depois?, até a Marlene me deixou de ligar, olhe, o puto deixou o computador lá em casa, sabe, o computador, e eu pus-me a experimentar aquilo, está a ver, internet, quem diria que eu me punha na internet, está a ver, mas eu até sou todo pintas e invento umas conversas giras, sabe, é verdade, doutor, umas conversas para aqui, outras para ali, digo que sou inventor, artista, escritor, doutor, está a ver, pus-me a dizer a uma gaja que era escritor e tretas, e agora não é que ela quer que eu escreva um romance, pá, um romance, não deve ser brincadeira, mas eu sou assim todo pintas, e pus-me a escrever, doutor, é verdade, invento umas coisas e assim, e lá vai saindo, doutor, por isso peço desculpa pelo trinta e três, peço desculpa pela tosse, mas os três macinhos não me os tira, que eu só deixo de fumar quando escrevo o romance.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Labirinto

|Luís Filipe Cristóvão


Existir-te é ser como um labirinto. Aproximar às minhas mãos o poder de criar e destruir todo um novo ser, alguém que aparece e logo se evapora, nas demoradas noites que inventas.

Existir-te é como me dar a perder, estar sempre prestes a oferecer-me como um objecto aos olhos de quem mais não quer ver do que o simples objecto em que me torno. E tudo isto acaba por se tornar num grande mar onde nos perdemos: eu, eles, e até tu, quem sabe, porque o facto de seres coloca-te a um pequeno passo de seres perdida.

Nas entrelinhas da história, cresce em mim a inexactidão desta vida. Pois se fui livre para me fazer assim, pois se foi gozo o que colhi das primeiras noites. [uma viagem para além do que sempre fui, na barca que eu sempre quis experimentar, no oceano que eu desejei depois de lido nos livros que escondo no fundo da gaveta]. Chego mesmo, quando me preparo para ser-te, a sentir uma espécie de ingratidão por mim. Pois se eu sou a beneficiária de te ter criado, pois se sou eu a razão de existires.

Na génese de tudo isto surgiu o desejo recalcado, a ausência de quem me confortasse. Demasiados anos à espera de encantamento. Despropositadas esperanças no encontro de um amor, de algo próximo disso. Nenhum abraço, nenhum olhar. E em cada noite, ao deixar cair a cabeça na almofada, a lágrima escorrida, o desejo que crescia. Ao acordar, onde nada restava que não fosse depressão, a chuva de readquiridas esperanças, frustradas logo ao sair da porta.

Na génese de tudo isto, uma menina que sonha. Uma criança que chora. Uma mão que se fecha. [e há quem espere toda a vida, sempre no mesmo círculo de ilusões, e até ao último passo para a morte, nunca se aperceba, nunca se encontre a si, no centro da arena do circo, ignorada por uma plateia vazia]. Um dia eu vi-me. Um dia eu vi-me. Senti-me. E estava vazia.

Como é incrível que o vazio possa ser tão dinâmico e venha a retirar do vácuo todos os elementos necessários à criação de um novo ser. Como é fabuloso perceber de onde viemos, ao sermos nós a mão formadora de uma nova vida, iludidos na possibilidade de sempre ter o controlo sobre o novo ser que nasce.

Eu sou a que aparece atrás da porta da casa de banho, eu sou a que cresce entre as árvores do bosque, eu sou a que se descobre num banco pútrido do jardim. Onde eles me desejam, eu sou. Quando eles me desejam, eu estou. Tudo isso em mim. Tudo isso em ti. E no entanto…

Em todo o poder há um descontrolo. Quando o poder é maior, tornando-se absoluto e absolutista, a proximidade da perda está lá, a hipótese do abismo aparece proporcionalmente. É nesse canto que eu me perco. É aí que existir-te é como me dar a perder. A construção é objecto mas o objecto fere-me a mim. Ao conquistar a antítese do sonho, volta a nós a necessidade dele, a lágrima caída na almofada suja do contacto com os cabelos, os meus cabelos que quando teus ficam marcados pelas mãos porcas daquele outro objecto que são eles.

Apercebo-me… No fundo, o objecto gera objecto. Eu não te criei. Eu apenas persegui o que pensava poder encontrar. E não mais fiz do que me enganar, pois que fui tu, e enganar-te, pois que, ainda assim, sempre fui eu. Existir-te é existir-me. Existir-me é um labirinto.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Ele

|Luís Filipe Cristóvão


Um deles amava mulheres feias. Ninguém acreditava que fosse possível amar tantas mulheres e tão feias como aquele fazia. E o que tornava de ainda mais difícil compreensão aquele fetiche era o facto de ele ser tão bem parecido que, com relativa facilidade, encontrava mulheres bonitas muito interessadas nele. Ali, num canto do bar, ele bebia mais um copo de whisky e falava das suas mulheres. Das mulheres feias.

Por exemplo, a Fátima. Doze anos mais velha que ele, à porta dos quarenta. Os dentes encavalitados uns sobre os outros, quase todos aninhados por pequenas cáries ou outros vestígios de indiferença. Um nariz fino e pequeno onde pousavam dois olhos esbugalhados, de um castanho sem graça. As sobrancelhas carregadas, uma pele desleixada. O cabelo oleoso, sempre mal penteado. Um amor sem igual, segundo ele, a mais sincera relação que duas pessoas podem ter. Algo que, sendo incompreensível ao mais mediano dos humanos, para aquela mente iluminada pela beleza das mulheres feias, representava o mais alto esplendor de luz divina.

Muitas vezes eu e outros amigos tentámos compreender o que o tinha feito assim. Muitos lembravam uma tal Dina ou Lina, um amor de adolescência, uma mulher brilhante, de doces feições, que o arrebatou cruelmente e ao fim de dois meses o trocou por um outro jovem, quiçá mais treinado nas particulares manhas do amor adolescente. Diziam que isso quase o tinha levado ao suicídio, tendo-o traumatizado de tal forma que nunca mais se houvera aproximado de um qualquer rasto de beleza.

Era difícil de compreender, sem dúvida, e esta história melancólica e distante parecia resolver de certa forma a ansiedade que nos tomava a todos, sempre que o víamos, o maus belo dos homens sós daquele bar, entrar acompanhado pela última novidade dos horrores femininos. Vânia, Tânia, Luísa, Teresa, Armanda, Leopoldina (esta juntando ao pacote um nome também ele horrível), Ana Maria, Maria José, Alexandra… Um rol de tristezas para os nossos olhos.

Outra das histórias que se contavam sobre aquele belo e estranho personagem era a de uma Mariana ou Margarida que, aquando dos seus vinte e poucos anos, lhe teria roubado o coração. Era uma espécie de deusa grega, divinal nos seus traços de mais bela dos humanos. Um ano inteiro de um amor arrebatado que terminou, tristemente, numa noite em que o nosso amigo a interpelou beijando outro terráqueo, um ex-namorado do liceu.

Todos percebiam que tais desventuras só poderiam levar a um temor irreflectido perante as mulheres, mas daí a procurar só senhoras de pouco tranquilizante aspeto era um demasiado longo caminho. E por isso vivíamos perturbados com as infelizes escolhas daquele que designávamos como o mais belo dos nossos. Quando a madrugada já ia longa, eis que ele saía do canto escuro do bar, embalado na garrafa de whisky que se desfizera em seus lábios. Mesmo com todo aquele álcool, ele mantinha a pose de general, as costas direitas, o olhar penetrante. Belíssimo, sem dúvida. Saía do bar e vagueava pelas ruas molhadas. Sem que ninguém o percebesse, era esse amor pelo estranho que o fazia mover-se ainda.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Tiago

|Luís Filipe Cristóvão


Em memória de Tiago Alfredo Cristóvão

Escrevo esta história de memória, a maneira como se contam todas as boas histórias. Como não me lembro de muita coisa, e de muitas outras nem nunca soube o rasto, escrevo aquilo que lembro e imagino aquilo que ignoro. Quando nasceu, nos anos vinte do século de mil e novecentos, este rapaz não fazia ideia de que o seu nome, Tiago Alfredo Cristóvão, iria ser tão marcante para os homens da sua prole. Sem que o quisesse, os seus irmãos, o seu filho, os seus netos, passariam a ser reconhecidos todos por Tiago, uns por nomeação de nascimento, outros por ligação familiar. A mim, pessoalmente, sempre me soou particularmente confortável ser conhecido por este nome, uma maneira qualquer de ser identificado a um grupo, a uma tradição, uma forma agradável de ser reconhecido pelos outros. Para o bem e para o mal, os Tiagos sempre ficaram conhecidos por serem pessoas de bem, de trabalho, de concretização e de trabalho.

São várias as histórias que eu lembro do meu avô. E várias delas me assaltam a memória quando tento ver, lá para trás, quem ele foi. Nasceu no Casal da Parafuja, casal que para mim sempre foi só um moinho que eu via ao longe, porque nunca subi lá acima. Não sei bem porquê, sempre fiquei do caminho, em baixo, a ver, a imaginar, o que seria lá em cima o Casal da Parafuja. A história mais antiga que eu conheço dele, teria ele nove anos, e foi com o pai para Santa Cruz, numa viagem que demorava um dia inteiro, com o objectivo de trabalhar naquilo que sempre foi o seu trabalho, a construção. Sempre que ele falava desta história, os seus olhos pequenos voltavam aos nove anos assustados, que de manhã, ao acordar, sentindo o pai por longe, avistaram pela primeira vez o mar, e toda aquela confusão de branco, espuma e névoa, lhe pareceram casas a cair. Depois, como eu o imagino, cresceu com aquele ar de marialva que sempre trazia consigo. Começou a fumar aos doze anos, dizia sempre orgulhoso ao acender de cada cigarro, devia andar por bailes, com o cabelo penteado, puxado para trás, devia trabalhar que se fartava, empreiteiro de uns e outros, e assim foi fazendo a sua vida, ganhando experiência e confiança por entre aqueles que partilhavam o mesmo labor. Casou tarde, ao que sei, já perto ou depois dos trinta, e não me parece que alguma vez tenha o casamento retirado algum brilho aqueles olhos pequenos, travessos, que sempre voltavam aos nove anos.

Acho que sempre o tratei por tu. Lembro-me de o tratar só por Tiago, como se fosse um amigo do prédio ao lado, um colega da escola. Ele ia comigo ao futebol e nunca dizia de quem gostava, a não ser do Belenenses no ano em que foram campeões. Ele estava sempre nas obras e andava sempre com malandrices, fossem cassetes de anedotas, poster’s de miúdas, conversas daqui e dali. Nunca dizia o nome quando tocava à campainha. Era um “oi”, um “oi” esticado e sonoro que, mais que anúncio, era um grito de guerra que eu ouvia sempre que o escutava no intercomunicador. Ele permanecia calado e ria. Era um malandro encartado, que bebia o seu copo, que brincava com os talheres em cima dos pratos para marcar ritmos de cantigas. Era também o patrão implacável, sempre a marcar em cima, rabugento, mandão. Se alguma coisa fica em mim dele, é essa rabugice intrínseca de quem acha que sabe o que está a fazer (e ele, a maior parte das vezes, sabia) e quer que as coisas fiquem a seu jeito. Era fácil ser neto dele, era mesmo muito fácil, até porque ele nunca ficou velho, nunca ficou velho a sério até ter ficado velho demais.

É fácil gostar dos mortos. É fácil gostar dos mortos porque houve sempre coisas que ficaram por fazer, coisas que ficaram por dizer. Durante a vida, o meu avô Tiago não foi um homem fácil. Porque nunca se é fácil quando se sabe muito bem aquilo que se quer fazer. Sabe-se tão bem que se acaba por fazer a maior parte das coisas sozinho. E isso chateia e magoa os outros. Mas também, como todos aqueles que  se fazem sozinhos, o meu avô Tiago soube amar incondicionalmente aqueles que o rodeavam. E tenho a certeza que amou até aos últimos momentos. Não somos homens muito fortes, nós, os Tiagos. Andamos constantemente perdidos entre aquilo que achamos que tem que ser feito e aquilo que achamos que temos que fazer. A última construção do meu avô foi um sopro, um sopro que ele deu quando se atirou da vida abaixo. Partiu assim porque não há satisfação possível para um Tiago nesta terra. Vamos sempre fazer decididamente por nós aquilo que nos haverá no fim de nos fazer sentir sozinhos. Sozinhos com as ruínas de nós mesmos e com o amor que sentimos pelos outros.

É esse peso que sentimos nos pés hoje, ao sair daqui. Esse peso que nos acompanha em todos os dias da nossa vida. O primeiro Tiago, talvez o mais corajoso, talvez o mais descontraído, morreu. Já não temos um “oi” que nos ponha em sentido. Já não temos quem nos marque o ritmo das cantigas com os talheres. Já não temos o marialva de cigarro ao canto da boca. Já não teremos mais histórias para nos lembrarmos no futuro. Agora, só nos restamos a nós.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Quando o barco atracar no cais

|Luís Filipe Cristóvão


Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e vejo que cada dia passa mais depressa, sempre tão depressa, a cada dia que passa e eu a acordar de madrugada para ir para o trabalho, a acordar de madrugada sem uma ponta de sorriso esquecido no canto da boca, sempre a mesma rotina de fazer a barba, tomar banho, o café a correr, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todas as manhã, Luzia, se tu soubesses.

Manuel, como te posso dizer, eu a acordar todas as manhãs e sem sentir que tenho um homem ao meu lado, eu a acordar todas as manhãs e a sentir-me mais velha que a minha mãe e a minha avó juntas, deus as tenha lá no céu, eu a acordar todas as manhãs, e sempre a pensar, como será o dia de hoje, o que me poderá acontecer, todas as manhãs, e a saber sempre, sempre, que não há nada de novo, nunca há nada de novo, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes do cinema, mas para mim ninguém olha, por mim, ao que parece, já ninguém se interessa.

Luzia, se tu soubesses, oito horas por dia naquele escritório é uma eternidade, oito horas por dia ali fechado, sem uma cara diferente, sem uma voz lavada, sem uma vista diferente pela janela, oito horas e o rádio sempre na renascença, oito horas por dia e sempre as mesmas notícias, ali fechado, Luzia, se tu soubesses, tenho 46 anos, tenho 46 anos a mais, e oito horas depois de estar ali fechado, o cigarro mal apagado antes de entrar no autocarro, Luzia, dá-me vómitos, dá-me vómitos toda aquela gente, todo aquele suor, Luzia, oito horas fechado no escritório.

Manuel, como te posso dizer, os putos saem contigo de manhã e voltam contigo à noite, é sempre comprar pão e tomar um café, é sempre Fátima Lopes, Sofia Alves, é sempre enganar a fome com qualquer coisa, é sempre passar a ferro, fazer as camas, pensar no jantar, telenovela, telenovelas, pensar no jantar, o que vão eles querer hoje, telenovela, telenovelas, Manuel, tenho 41 anos, tenho a idade das actrizes, eu fico em casa a ver telenovelas, muitos dias nem sei se faz sol ou se chove, telenovela, telenovelas, eu tenho a idade das actrizes.

Luzia, se tu soubesses, chego a casa sempre tão enojado, chego a casa sempre tão doente, e os putos que não se calam, e telenovela na merda da televisão, nem sequer consigo ler o jornal direito, nem sequer consigo pensar limpo, os putos não se calam, a merda da televisão na telenovela, Luzia, se tu soubesses, e eu que nunca te digo nada, chego a casa tão enojado, a merda da televisão, eu nunca te digo nada, Luzia, se tu soubesses, que não há nada para te dizer quando um gajo chega a casa tão enojado, a merda da televisão e os putos que não se calam.

Manuel, como te posso dizer, o jantar na mesa e tudo pronto sempre a horas, já tinha tantas saudades vossas, ver-vos, ver-nos todos juntos, já tinha tantas saudades vossas, e tu calado e os putos aos gritos, o jantar na mesa e eu ali, Manuel, porque não falas, eu queria saber quem viste hoje, porque não falas, eu queria saber o que fizeste hoje, eu queria saber porque não me beijas, eu queria saber porque não te agarras a mim e choras comigo, Manuel, eu tenho 41 anos, eu queria saber porque é que eu tenho a idade das actrizes e tu nem para chorar me olhas, Manuel, como te posso dizer.

Luzia, quando é de noite, tenho medo que o dia volte, tenho medo de voltar a ter tudo outra vez, voltar a repetir tudo outra vez, Luzia, quando é de noite, eu deito-me envergonhado, quando é de noite, espero que tu adormeças e choro devagarinho para não me ouvires, quando é de noite, Luzia, se tu soubesses, eu tenho 46 anos e só oiço a voz do meu pai aos berros, os homens não choram, Luzia, eu tenho 46 anos e espero que tu adormeças para chorar devagarinho.

Manuel, quando estou na cama é ainda pior, pensar na alegria que tivemos quando compramos esta cama, a cama dos nossos sonhos, a cama que foi do nosso amor, e agora, Manuel, a cada noite que passa, Manuel, ficamos cada vez mais longe, Manuel, e eu fecho os olhos com tanta força, com tanta pressa de adormecer para não me lembrar que estou ali, Manuel, como te posso dizer, depois parece-me que te oiço a chorar, Manuel, para que há uma criança na cama deitada, a chorar no teu lugar, e eu fecho os olhos com mais força, e ainda com mais força, para já não estar ali quando conseguir finalmente adormecer.

Luzia, se tu soubesses, trago-te para passear neste fim-de-semana, trago-te a passear para veres o mar, para sentires a brisa quando a janela do carro aberta, trago-te para a rua para ver se limpo a cabeça, para ver se me esqueço, deixo os putos lá em casa para eles gritarem à vontade e trago-te para veres o mar, sabes, é bonito vermos o mar juntos, sabes, eu gosto de vir ver o mar, ver os outros carros com gente nova, sabes, e vê-los aos beijos, agarrados, e vê-los aos beijos, agarrados, sabes, Luzia, e acho que quando te trago a ver o mar, sou um puto outra vez, sabes, eu trago-te a ver o mar, acendo um cigarro, e fico a ver a malta nova nos outros carros aos beijos, sabes, nos outros carros a fazer o que eu queria fazer, sabes, se eu não tivesse 46 anos a mais, e parece que fico com a cabeça lavada, sabes, trago-te a passar neste fim-de-semana.

Manuel, tu sempre calado e o mesmo passeio de domingo à tarde, o mesmo relato de futebol, o mesmo trajecto, o mesmo vento, o mesmo mar, como te posso dizer, eu leio uma revista, e deixo-me ficar, pelo menos é rua, pelo menos é um ar, apesar do mesmo ar de todos os domingos, como te posso dizer, eu tenho 41 anos, a idade das actrizes, e tu trazes-me para junto ao mar para olhares para os outros carros, para olhares para a malta nova aos beijos, e acendes um cigarro, eu sei que isso te dá prazer, Manuel, mas eu tenho 41 anos, como te posso dizer, tenho a idade das actrizes, e apesar do vento, e apesar do ar, e apesar do mar, eu tenho 41 anos, Manuel, e já não te consigo aguentar.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Para o mal do bem comum

|Luís Filipe Cristóvão


   Bob senta-se na mesma mesa em que, há mais de quarenta anos, se senta todos os dias para escrever. A mesma velha mesa que comprou numa feira de artigos em segunda mão que se realizava à porta do mercado num domingo de cada mês. Naqueles domingos em que se era novo e não se pensava em mais nada do que na grande vida que se teria para sempre, ao lado da nossa mulher linda e cheirosa, entre os nossos livros que não deixariam de crescer em todos os armários e recantos lá de casa. Naquela mesa já se fez de tudo. Desde livros de poesia que nunca ninguém teve vontade de publicar até romances premiados pelos melhores críticos estrangeiros. Desde bebedeiras monumentais até um filho. Tudo.

   Bob senta-se à mesa e abre o jornal. Tem sessenta e dois anos e uma enorme vontade de deixar de escrever. No entanto, em cada página de jornal, encontra mais uma frase que lhe apetece roubar. Não uma frase qualquer. Mas coisas cheias de novidades, coisas cheias de pujança, coisas que ele sabe que já não consegue retirar de si mesmo. Mesmo que insista em fazer-se um jovem para todas as meninas que vai conhecendo aqui e ali. Mesmo que mande boquinhas foleiras à sua jovem editora quando ela lhe telefona. Mesmo que faça charme de sala para as amigas dos filhos. O problema é que a vida não vem nas saias das meninas. Nunca veio. Coloca a rodar um cd que roubou do quarto do filho mais novo e ouve o refrão. "she's not so special so look what you have done".

   Como é que numa conversa de café, numa simples conversa de café, pensa Bob, se pode, às vezes, fazer renascer ou enterrar um homem, um homem inteiro com toda a sua vida? Como? Bob folheia o jornal e come amendoins de um pacote esquecido de outras noites. Onde antes estiveram papéis soltos e mata-borrão, hoje brilha um computador. Ali, dentro daquela caixa, uma vida inteira. Uma vida inteira de mentiras. Bob pensa em deixar de escrever mas, aos sessenta e dois anos, já não há muito mais que se possa fazer. Mesmo que tenha que acontecer alguma coisa na nossa vida, só aquilo que se conhece bem é que devia acontecer. Mesmo que não se aguente mais, ainda há a mesma mesa de sempre, onde se podem ter os mesmos pensamentos de sempre, fazer as mesmas coisas de sempre. Como uma paragem automática, disparando a cada sobressalto. Para o mal do bem comum.

sábado, 18 de maio de 2013

Todos os poemas são feitos de mar

|Ruth Ministro


Todos os poemas são feitos de mar.
E vento.

Todos os versos são espuma branca.
Flor de sal.

Nas mãos vazias do poeta,
acende-se, imenso, um areal.


In Dos Intervalos Das Horas
Edita-me, 2011

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Amor Urgente

|Ruth Ministro


Não te demores,

ama-me com a urgência do rio
que se faz mar,

a vida não passa de um breve
sonho,

uma rosa a desabrochar.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

De Dentro

|Ruth Ministro


Há uma noite dentro da noite,
dentro de mim, dentro do peito.
Há um grito dentro do silêncio
que engole a noite dentro de mim.
Há um gigante dentro dos olhos,
dentro da boca, dentro das palavras.
Há um segredo dentro das mãos
que tecem a noite dentro do poema.
Há um poema a morrer de escuridão
dentro do poema, dentro do fogo.
Há um deserto a florir de dentro.


In Dos Intervalos Das Horas
Edita-Me, 2011

quarta-feira, 15 de maio de 2013

A poesia que nos escolhe


Entrevista a Ruth Ministro

|Clara Henriques



“Todos os poemas são feitos de mar”.

O teu último livro, Dos intervalos das horas – 2011, divide-se em 4 momentos: a madrugada, a manhã, a noite e, por fim, os intervalos das horas. Nasce-te poesia em todas as horas?
De alguma forma, a poesia faz parte dos meus dias e acaba por estar presente em todas as horas, quer eu queira, quer não. A minha paixão pela poesia, como é aliás apanágio das paixões, é algo que não posso controlar, não depende de mim, está para além do consciente e do racional e das horas e dos lugares. Não é que esteja a pensar em poesia a toda a hora, também não é assim, mas há uma propensão para encontrar no quotidiano o seu quê de poesia, embora nem sempre isso queira dizer que consigo escrever um poema. Eu na verdade acredito que é a poesia que nos escolhe para a escrever e não o contrário. A inspiração é qualquer coisa que toca o divino, vem não se sabe de onde e atinge-nos como um raio de luz, independentemente da hora do dia ou da tarefa que estamos a desempenhar no momento, essa até pode ser tão ou mais ridícula e pouco poética como fazer a cama ou lavar a loiça… por vezes é uma palavra que surge, um verso que se desenha em torno dela, outras vezes é algo que vemos e que forma uma ideia poética, depois só temos que conseguir guardar essa inspiração até ao momento de escrever o poema.

Perigo de Morte

|Ruth Ministro


Quando o amor acontece, não há aviso prévio:
não há uma nota escrita num post-it amarelo e
colada no frigorífico, não há um sinal de stop
no início da estrada, nem um polícia sinaleiro
a acenar-nos com os braços, não há raios e trovões
num céu laranja como fogo. Também não há
passarinhos de todas as cores a cantar à janela,
nem brisas repentinas a fazer voar cabelos soltos,
nem tão pouco banda sonora a começar, como
nos filmes românticos. Quando o amor acontece,
levamos um inevitável murro no estômago, e
ninguém nos avisa que essa é apenas a primeira dor,
ninguém nos diz que podemos morrer. Ninguém nos diz
que vamos querer morrer. E mesmo que nos dissessem,
mesmo que houvesse um letreiro à porta do amor, com
aviso de "PERIGO DE MORTE", mesmo assim entraríamos.
Não por sermos estúpidos, mas porque quando o amor
acontece, abrem-se todas as portas, e a verdade é que
ninguém repara nos avisos afixados em portas abertas.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Palavras incendiadas

|Ruth Ministro


Há dias, como este, em que as palavras,
de tão apaixonadas,
se incendeiam nas minhas mãos,
e ardem antes de eu escrever o poema.

Fica-me nos dedos inúteis o pó das letras,
como se fosse poeira de estrelas que,
por ciúme,
o céu não me deixou oferecer-te.



In Dos Intervalos Das Horas
Edita-Me, 2011

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sempre o teu nome

| Ruth Ministro


Há o teu nome
imenso e inconfessável
como um pecado.

Há o teu nome
que não digo
e que me repete.

O teu nome
sempre o teu nome
o teu nome apenas.

Não sei a claridade
sei o teu nome.

Na minha boca
a noite arde em permanência.

Ruth Ministro - Apresentação

Ruth Ministro, psicóloga pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, nasceu em Lisboa no ano de 1981. Desde sempre apaixonada pelas letras, começou a partilhar as suas palavras com o público em 2006, através do blogue http://a-minha-nuvem.blogspot.com. Em 2008 é convidada a participar na colectânea “Nas Águas do Verso: 100 Autores – 100 Poemas”, lançando o seu primeiro livro de poesia “A Minha Nuvem” em 2009, quando é descoberta pela Edita-Me Editora. O seu segundo livro de poemas, “Dos Intervalos Das Horas”, é publicado em 2011 pela mesma editora. Os seus textos já foram vestidos por vozes de programas de rádio, pintados por artistas plásticos em exposições colectivas intertextuais e interpretados em tertúlias e sessões poéticas por quem por eles se apaixonou. Fernando Contumélias, prefaciador do seu segundo livro, descreveu-a como uma mulher corajosa: “é preciso ter coragem para escrever poesia. Porque não há ‘arte’ que poupe tão pouco o lado mais íntimo de quem a escreve, por mais que ‘finjam’ os poetas e poetisas... Apesar da relativa juventude, Ruth Ministro tem a ousadia de se aventurar pelo imenso território das emoções humanas e a maturidade espantosa para se sair bem.”, mas talvez a melhor forma de a definir seja chamá-la de eterna sonhadora.

domingo, 5 de maio de 2013

Mesa do Canto – Uma memória de cafés

|Alexandra Malheiro


Escrevo-vos, hoje, do Café Imperial, não o do Porto, de 1936, com a águia em bronze gigante, de Henrique Moreira, encimando a porta giratória, com profusão de espelhos e prateados e um longo balcão ao fundo e o vitral Art Déco de Leon, até porque esse velho Imperial tem hoje, sobreposta à sua pujante arquitectura, a decoração pastilhada do MacDonalds em que se transformou há vários anos, com isso descaracterizando por completo o café que antes fora. Este de onde vos escrevo é, também ele, Art Déco com colunas de inspiração oriental e motivos animais, com altos-relevos e espelhos largos e encontra-se em Praga sendo um dos vários cafés praguenses a não perder. Escreveu Garrett que o viajante experimentado e culto chegando a um café, em qualquer lugar que visitasse, facilmente reconheceria onde se encontrava pelos seus usos, costumes, pelo aspecto e pela fauna que nele achasse. Fiz, pois, como Garrett e, em chegando a Praga para umas curtas férias, tratei de assentar arraiais num dos seus cafés para dele fazer a minha mesa do canto. Acomodo a meu lado “Imagens de Praga”, uma espécie de livro de viagem em bom, do irlandês John Banville, recentemente editado pela ASA. Nada como um livro e um café para nos contextualizarmos com o lugar que visitamos. A “ideia de europa” de Steiner desenha-se através do mapa das cafetarias. E eu dou por mim, uma vez mais, a resvalar para a memória pessoal dos meus cafés.

sábado, 4 de maio de 2013

Sulscrito nº 4

|Fernando Esteves Pinto




Numa relação de amizade a simpatia é um maneirismo. Um estilo ou afectação que apenas serve para decorar um modo de ser que dificilmente encontra correspondência na pessoa que se deseja conquistar e torná-la nossa amiga. Muitos são os amigos simpáticos e raros os que sentimos que sejam honestos, sinceros e verdadeiros. Na minha ligação de amizade com o Rui Costa, a recompensa maior foi descobrir nele a pessoa autêntica que soube dividir comigo, correcta e lealmente, a fortuna do seu carácter. A ele estarei sempre grato, tanto pelos momentos que passámos juntos, como pelas emoções vividas que persistem agora na memória. 

Posso não editar outro sulscrito, e se assim for, esta edição nunca será a última, pois estou convicto de que não há um fim para recordar um amigo, cabendo a todos os que nesta publicação prestaram a sua homenagem continuar a testemunhar a vida e a obra do Rui – obra literária que não se esgota nos livros publicados.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Constantina “A Esmagadora”

|Kateb Yacine

A rocha, a enorme rocha três vezes desventrada pela torrente infatigável que se enterrava em batimentos sonoros, escavando obstinadamente o triplo inferno com a sua força perdida, fora do leito sempre desfeito, sem longevidade suficiente para chegar ao seu sepulcro de blocos derrubados: cemitério destruído onde a torrente nunca viera entregar a alma, reanimada muito mais acima em cascatas inextinguíveis, afundadas em funil, as únicas visíveis das duas pontes lançadas sobre o Kudia, da ravina onde o uede não passava de um ruído de queda repercutido na sucessão de abismos, ruído de águas que nenhuma caldeira ou bacia continha, sussurro surdo sem fim, sem origem, cobrindo o estrondo furioso da máquina cuja velocidade decrescia contudo, atravessando restos de verdura, pradarias ainda interditas ao gado, irradiadas sob a ligeira crosta de gelo, florestas de figueiras nuas e disformes, de alfarrobeiras, de cepas em desuso, de laranjais rectilíneos, destacamentos de romanzeiras, de acácias, de nogueiras, ravinas de nespereiras e de carvalhos até à proximidade do caos brumoso e maciço (...)

Nedjma (Tricontinental Editora, 1987)


Kateb Yacine (Yacine de nome e Kateb de apelido) foi um romancista, poeta e dramaturgo argelino nascido na cidade de Constantina, na Argélia, no dia 2 de Agosto de 1929. A sua obra tem vindo a ser divulgada, em português, num blogue dirigido por António Quadros Ferro e com a colaboração recente de Melissa Scanhola. 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Mictório de Duchamp


|Sid Summers

Eu não acredito na maioria das pessoas que se dizem artistas. Mas no fundo, quem deposita confiança nessa laia de gente estranha? Entretanto, eu acredito na arte. Eu acredito na dorida criação humana chamada miséria. Fui surpreendido mais cedo por uma de suas obras num viaduto. Um homem velho sentado torto, sua mão estendida de pedinte em harmonia com sua cabeça pendente coberta por cabelos brancos sujos. Suas discrepantes solas de sapatos descoladas. Duas línguas obscenas e potencialmente furiosas projetadas, expondo buracos que mais pareciam cus nos seus calçados rotos, mas vivos. Bastava um ready-made dadaísta do Duchamp. Senhores, eu confesso... Eu só acredito em quem sente frio. Por dentro ou por fora. Eu só acredito em quem se desespera.



Sid Summers é um autor brasileiro, com obra dispersa pela rede. 

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Não vá o maio, de maduro, cair


|Editorial

Quatro meses inteiros a fazer revista e olhar para a frente, ver um ano inteiro a chegar e a pesar, respirar fundo, seguir em frente, mais um passo, mais um passo, um passo de cada vez. Quatro meses inteiros a fazer revista, a gerir as frustrações de cada vida, as distâncias, os desempregos, os trabalhos pesados, os silenciosos empregos, as chamadas de surpresa. Quatro meses inteiros a fazer vida, todos os dias.

E para mudar de agulha, saber que na literatura encontramos uma janela para um mundo que se explica melhor do que o nosso. Daí a importância de ler quem escrever por nós. Quem sente com as letras e constrói de palavras paredes, casas inteiras. E para mudar de agulha, abrir portas e convidar mais gente, para que o mundo se faça inteiro de vários olhares, sensações, mãos que escrevem, mais do que no papel, no corpo.

Quatro meses inteiros e muitos pais, pelo passado e pelo futuro. Porque abril mal se cumpriu e o maio não vá, de maduro, cair. Aprender a resistir mesmo que sem ações – porque ação já é esta a de respirar num espaço onde convidamos quem venha respirar connosco. Sejam palavras, sejam olhares, sejam sensações. Começar mais um mês, sob o signo do trabalhador, essa espécie em vias de extinção, essa espécie em revolução constante. E não parar nunca de lutar.