quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Mundos

|Ana Correia

Há mundos dentro do mundo. Existe um mundo, vários mundos, dentro de cada um de nós.
Desceu as escadas e caminhava, devagar e com ar enfadado, para o banco. Senta-se enquanto espera pelo metropolitano, comendo um gelado que não parece saborear. Tem um olhar apagado, o olhar de quem não vive o mundo, um olhar de não estar no mundo.
Procura algo no bolso do casaco. Tira a carteira, abre-a, passa os dedos por cada divisão até encontrar o que procurava. Um pequeno papel, dobrado, amaçado, onde começa a rabiscar. Talvez seja um compromisso, uma conta para pagar, talvez a data de uma consulta?
Ouve-se a aproximação do metropolitano, o som mecânico e violento que nos desperta para a consistência de um dia-a-dia urbano. As portas abrem, entra no metro e dirigindo-se a um lugar vazio continua a escrevinhar.
Uma voz monocórdica anuncia a estação seguinte. Sentado, junto da janela que apenas deixa ver o negrume do túnel, o corpo ligeiramente encostado a esta, o seu olhar mantêm-se apagado. É como que uma ausência de estar. É uma janela que não deixa ver para além da barreira frágil do vidro.
Há criaturas que emanam energia, que nos fazem levantar o olhar daquilo que estejamos a fazer, que nos desprendem daquilo em que estamos a pensar.
Encostado à janela, de olhar apagado, a sua presença não faz ninguém retirar os olhos do que estão a fazer. Alguém se senta à sua frente. Levanta a cabeça, olhando sem ver e continuando a fazer a caneta deslizar sob o pequeno papel. Talvez queira apenas passar tempo, talvez esteja só a fazer pequenos desenhos ou rabiscos.
Chegamos à próxima estação. Nada se alterou. O ar enfadonho, o olhar apagado mantêm-se. Cheguei ao meu destino, saio nesta paragem. Ele olha para mim mas não me vê, mordisca o lábio, sem que se aperceba faz trejeitos com a boca. Eu afasto-me, ouço cada vez mais longe o som artificial do metropolitano que se afasta.
Há mundos dentro de mundos. Sai da estação, e voltei ao meu.


Ana Correia escreve no blogue Freak Perfume

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Sem notas de rodapé: A Maria João apresenta-se

|Maria João

O cursor pisca. É a primeira vez que faço isto. Escrever liberta do formato académico. Escrever sobre mim e o que me rodeia, de forma assumidamente pessoal. Não existe, é certo, conhecimento neutro e totalmente objectivo em nenhuma área do saber. No entanto, é meu dever prevenir-vos de que a crónica “Sem notas de rodapé” adoptará pontos de vista longe de consensuais e evidenciará a minha própria mundividência. Não terá uma vasta bibliografia de suporte, nem suscitará recensões críticas. Tão-pouco pretende constituir mais do que um exercício de partilha. Estou grata pela oportunidade de o realizar neste «Sítio». Não prescreverei soluções, não ditarei verdades. Serei corrosiva em alguns momentos. Céptica nos dias em que, de forma particular, os meus ideais colidirem com a realidade. Racional, honesta e frontal, pela minha forma de ser. Emocional, sempre.

Tratem-me por Maria João, por favor. Inevitavelmente, os pseudónimos revelam bem mais sobre nós do que o conforto do anonimato faria supor. Associo “Maria João” ao tipo de mulher que sou. Centros comerciais corporizam o conceito de pesadelo para mim. Nunca compreendi a lógica de (apenas) ver montras. Custa-me, de igual modo, conceber a hipótese de ir ao wc a pares ou de falar mal de uma amiga que acabou de sair da mesa do café onde estávamos a conversar.

Gosto de dizer o que penso, às vezes de forma desconcertantemente directa. Considero-me bastante feminina, mas nunca usaria sapatos que me impedissem de correr para apanhar o autocarro. Não trocaria um livro por qualquer verniz da Channel. Reconheço a minha obsessão por pontualidade. Não sou melhor nem pior do que qualquer outra pessoa. A arrogância tira-me do sério, em proporção directa com os cidadãos que decidem optar pelo sofá em vez de irem votar.

Ainda que não filiada, situo-me no espectro político da esquerda. Sou uma idealista com os pés na terra. Acredito que é possível contribuir todos os dias para modificar as pessoas e o contexto que nos cerca. Faço-o, em grande parte, através da minha profissão e do modo como a exerço. Sou uma professora universitária apaixonada pela minha área e pelo ensino. A ignorância não me choca (eu sofro dela em doses angustiantes também). Revolta-me, apenas, a falta de vontade de aprender e ser mais, a recusa da complexidade, a apologia do facilitismo. Poucas coisas me dão mais prazer do que desconstruir ideias, transmitir entusiasmo, incentivar o espírito crítico na percepção do mundo, ver os olhos dos alunos a brilhar. Dir-me-ão que tal se deve aos meus 30 anos. As probabilidades jogam, bem sei, em meu desfavor. Lutarei, porém, contra a indiferença. Procurarei resistir à tentação de me fechar na redoma universitária, naquela em que pessoas capazes de analisar o sistema económico feudal durante duas horas não conseguem preencher o seu IRS. Acompanhem-me neste esforço e, peço-vos, massacrem-me ao mínimo sinal de fraqueza.


É justa a vossa reclamação entredentes. Disse-vos ainda muito pouco acerca das temáticas que este espaço de crónica abarcará. Não possuo um índice para vos apresentar. Contudo, posso adiantar que as artes plásticas serão uma companhia frequente. As relações entre homens e mulheres terão uma presença forte (risos…). Reflexões sobre opções e ritmos de vida, rotina e fuga saudável às normas instaladas constarão deste reportório. O resto não se inscreve necessariamente numa categoria nem se arruma numa gaveta. A utopia de um Pingo Doce sem filas de espera possuirá o mesmo tempo de antena que o debate sobre a crença ingénua na capacidade da arquitectura mudar o mundo. Os anúncios que astrólogos insistem em colocar nos nossos limpa-para-brisas configurarão um assunto tão válido quanto uma sonata de Chopin. Tanto poderei discutir Michel Foucault, como uma ida à loja do cidadão (na verdade, o primeiro é muito útil para perceber como funciona a segunda). Desconhecer, por um lado, o que nos espera e tentar a todo custo, por outro, antecipar e controlar cenários é algo inerente ao ser humano. Esta crónica repousará nesse frágil (des)equilíbrio.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

“Escrevo para ter acesso a mim mesmo”

Entrevista a João Anzanello Carrascoza
 | Eliana Castro


    Cinto de segurança é acessório inútil para quem decide viajar na escrita emocional de João Anzanello Carrascoza. Também é preciso avisar (pra quem nunca leu seus livros) que ele jamais conduz seus textos pelas autoestradas, em pistas expressas. Prefere levar o leitor para passear por estradas vicinais, viscerais. Foi assim – só para citar algumas viagens - em O Vaso Azul, Espinhos e Alfinetes, Contos Mínimos, Aquela Água Toda ... e é exatamente isso que ele faz agora, no romance Dos 7 aos 40, recém-lançado pela editora Cosac Naify. Carrascoza é um hábil condutor, com prêmios importantes. Entre eles, o Jabuti (O vaso Azul, que recebeu em 2007, e este ano, com Aquela Água Toda, que está entre os finalistas) e o Portugal Telecom 2013 (também com Aquela Água Toda na semifinal).
    Mas não é exatamente por causa da sua reconhecida fama de bom condutor que o cinto de segurança é dispensável. Na verdade, o correto seria dizer que, com ele, usar o acessório é inútil. Simplesmente porque Carroscoza dirige sua escrita de maneira tão intensa que não há como se proteger de acidentes de percurso: quando nos damos conta, saímos da pista em que estávamos, invadimos o acostamento e, de repente, pow! passamos a circular dentro de nossas próprias veias, até entrarmos bem no fundo do coração, em um lugar que não é mais só dele, mas nosso e dele, entrelaçado como interseções rodoviárias.
   “Escrevo para construir um mundo no qual as coisas poderiam ter sido e também para partilhar experiências e sentimentos. Quando o que me toca, toca o leitor, entro em harmonia com o outro. Escrever é buscar a si mesmo para encontrar o outro. Minha escrita é comovida”, confessa.

Quadros de Sentimentos
   O livro Dos 7 aos 40 é a perfeita tradução desse desejo do autor, de estar em harmonia e contaminar o leitor com sua emoção – e ainda conta com uma curiosa estrutura. A história é contada em dois tempos – o do menino e do homem. Ligeiramente ou totalmente autobiográfico, não importa. O que vale é a estrada: em uma pista, as histórias do menino, narradas em 1ª pessoa; na outra, as histórias do adulto, contadas em 3ª pessoa. “A vida da gente tem que ter um retrovisor. Estamos indo pra frente, mas temos que olhar um pouco para trás para entendermos todo o percurso que fizemos, pra depois seguir adiante”, afirma.
   O romance começa com a narração do menino, que mora em Cravinhos, pequena cidade do interior do Estado de São Paulo, no Brasil [onde Carrascoza nasceu e morou por anos]. Na sequência, pula para a do adulto quarentão, que abandonou o interior e vive em São Paulo, capital do estado e uma das maiores cidades do mundo. [Carrascoza vive em São Paulo, formou-se em publicidade e é professor na ESPM, Escola Superior de Publicidade e Propaganda] Essas duas vias, dos sete aos quarenta, são cruzadas e suas diferentes visões, alternadas em capítulos ao longo do romance. “O livro não está amarrado a uma linha do tempo. Salta de um episódio para outro. Porque a vida também não tem amarração: dá pequenos saltos. Os capítulos são espelhados. São como quadros de sentimentos”, conta.
   A diagramação do romance reforça isso, ao dispor tudo o que é narrado pelo menino na parte superior da página, onde o texto aparece blocado, e, em cada capítulo, faz referência a uma descoberta: morte, tristeza, namoro... Já a voz adulta está disposta na parte de inferior das páginas e surge desalinhado. “Quando garoto, a gente está na fase em que nomeia as coisas à nossa volta e os sentimentos. As pessoas têm nome e optei pelo texto blocado porque, no romance, a sua história desse menino já foi escrita”, explica. “Na fase adulta, você tem a consciência de que é apenas mais um ser”. Para essa parte do livro, ninguém tem nome próprio. A ideia é falar de um universo emocional que, de um modo ou de outro, está dentro de cada um. O texto desalinhado reforça o tempo presente, em que as coisas ainda estão acontecendo, sem sabermos, ao certo, como vão terminar.



Inspirações
     “Aos sete anos, estamos começando a ler as palavras e o mundo. Aos quarenta, já temos uma história escrita, uma vida social. O mundo tá te olhando”, observa Carrascoza, que se inspirou em Vidas Secas, de Gaciliano Ramos.  “Graciliano criou um conjunto de histórias, que Antonio Cândido [crítico literário brasileiro] chama de rosácea, porque cada capítulo é uma pétala. E, em cada história, Graciliano dá elementos para o leitor compor a sua história. Foi o que fiz”, explica.

    Dos 7 aos 40 se beneficia bastante da direção habilidosa de Carrascoza, sem dúvida,  um dos melhores contistas brasileiros. Embora seja um romance, pode ser lido de diversas maneiras. A primeira leitura possível é da forma como o autor organizou a narrativa. Mas também podemos ler o mesmo livro de modo desordenado, porque cada capítulo é um conto – e dos bons. Podemos, ainda, ler apenas a história do menino ou do adulto, como se cada uma fosse um romance separado. E o mais interessante é que, independentemente do modo que o leitor decida explorar as estradas por onde Carrascoza nos leva, o romance não se perde no caminho. E sempre nos conduz, por meio da prosa poética do autor, para o fundo do coração. 

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Mesa do Canto: Todos os lugares onde te amei

|Alexandra Malheiro

Agrada-me começar assim a crónica, com um título piroso e lamechas, ainda que o corpo da crónica possa não confirmar a investida no território afectivo é sempre uma bela forma de deixar o leitor a pensar que me vou permitir a contemplações de ordem amorosa e deleitá-los com o rigoroso detalhe da minha vida íntima. A própria referência, neste mesmo parágrafo, ao "corpo da crónica" já é, só por si, uma vaga alusão ao erotismo que cada um de nós transporta interiormente.

A verdade verdadinha é que tinha planeado levar esta crónica pelas ruas do Outono, a pisar o restolho e a sentir os primeiros bancos de gélido nevoeiro, começaria assim, sei-o bem - "Entrou-me hoje, pela primeira vez neste ano, o Outono pela boca, à boleia de uma castanha assada comprada na baixa." Seguiria depois pela industriosa tarefa de explicar as razões pelas quais percebemos que pertencemos a um lugar e não a outro qualquer, o reconhecimento implícito das ruas, das suas esquinas, pelos odores, pela textura, até chegar ao imo daquilo com que se faz um poema. Trataria depois de explicar que é sempre isso que procuro em tudo, o poema, a coisa inata que há dentro das pessoas e das coisas e por onde passo farejo o poema até o encontrar, ou não, que às vezes o poema é coisa que não se encontra.

Levaria assim a crónica pelo território da busca, e eventual encontro, com o poema que, quando ocorre, tem sabor idêntico a uma vitória na guerra dos dias, espécie de orgasmo que nos resgata do cinzento a que a vida e as suas circunstâncias nos condena a maior parte do tempo. É por isto, e não por qualquer outra razão, que gosto de oferecer poemas aos amigos - aqui um pormenor de semântica, oferecer não é dedicar. Dedicar implica uma razão subjacente, pode nem sequer se conhecer o sujeito a quem se dedica mas sabemos que algo no sujeito espoletou a arma, nos apertou o gatilho do poema, mostrou a estrada e a luz de por onde levar as palavras e isso é toda uma outra conversa sobre guias e referenciais. Já a oferta do poema é uma coisa livre, não referenciada. Dá-se o poema a quem se apetece, sem pedir licença. Quando se escreve um poema, ou quando se atinge - ainda usando uma metáfora orgástica - ele deixa de ser nosso ou inteiramente nosso e se se partilha já não nos pertence senão numa vaga ilusão de posse de autor, coisa semelhante ao amor que se tem sem de facto se possuir.

Por isso às vezes ofereço poemas, quase sempre recém-nascidos, aos meus amigos, para que não fiquem só comigo e procurem com os outros outra luz, e para que outros possam também iluminar-se neles. Não sei se gostam, se lhes agrada que os importune, quase sempre por telefone, em geral por sms, raras vezes por voz - pranto-lhes o poema no gravador, e mais raramente ainda em directo ao ouvido arriscando interromper-lhes os importantes feitos da vida real, tão cheia de curvas e contracurvas, tão avessa à etereadade dos poemas, nem sempre bons, como são os meus.

Aprecie o estimado leitor a sorte que tem em não fazer parte da minha lista de afectos ou, melhor digo, de telefones, para onde debito poemas a horas ingratas. Se, porém, o leitor acaso é meu amigo e já foi contemplado com um desmando "literário" sem aparente razão que não a minha intermitente loucura, peço-lhe o necessário desconto pelas razões antes expostas em abono da partilha de poemas e entusiasmos. Sou assim mas não represento verdadeiro perigo social ou outro.

Entretanto é sexta-feira, pretendo jantar fora e resolvo marcar mesa, não vá dar-se o caso de o restaurante lotar, telefono para reservar mesa e hora, que sim senhor, dizem-me do outro lado, questionando-me se pretendia apenas jantar ou se tinha igual interesse em marcar consulta de astrologia. Fiquei surpresa, desconhecia a fusão sugerida de jantar com bruxos e entendidos no futuro dos outros. Digo que não, pretendo apenas comer, embora me assalte o pensamento que preferia que ao invés de um futuro inventado me inventassem um poema, ainda que fosse de comer como os da Natália.


No final desta crónica o atento leitor meneia a cabeça recriminatoriamente sem descobrir nela, após tanto palavreado, nenhuma real ligação entre o seu título e tudo o que nela se assunta. Mais lhe valia ler Lobo Antunes pensa, e bem acrescento eu, o estimado leitor. Mas eis que num vislumbre de juízo me apronto a deslindar o novelo. É que todos os poemas partilhados em qualquer esquina mal iluminada do tempo foram  todos os lugares onde te amei.

sábado, 26 de outubro de 2013

Terceira invocação

|Helena Carvalho

À terceira invocação,
monstros de tempo acordados tarde
casas de bafio lento, altares convexos
dentes afiados fora da proporção das estátuas.
Fugimos antes de nós. Galgámos
terra, pó e pedra rasgando
em sulcos os corações armados

e as velhas fronteiras bélicas.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Canto redondo

|Helena Carvalho

Se o dardo se arrojar à água e me tingir os dedos
serei grito convexo e canto.

A pele pressente tarde os murmúrios da sibila
esquecida do primeiro abalo da manhã no corpo,
ferida umbilical nos pontos cardeais.
Dá-se à luz prótese pelo avesso
vestida dos lampejos vespertinos
e de retratos da memória suspensa no cicio das aves.

Queria fazer-me toda voz
um canto redondo que convocasse tudo à sua presença,
a nota impossível em tom cristal
que ressoasse a vibração última dos dardos.

Um grito convexo inverte o tom e acerta o alvo.

Canto que sarasse este abismo que tenho em cada mão
por onde todas as imagens se escapam e
se reconciliam talvez com o seu ideal.





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A terceira voz

|Helena Carvalho

É no centro espectral da disseminação nocturna –
nas margens letais de puro branco onde ensaiamos
o fechar dos círculos –
que a diferença se faz timbre e a voz começa.

Chega-nos devagar
como um embalo que se oferece à garganta
e alastra-se com rapidez aquosa do palato
ao goto afundando raízes velhas
em incisões violentas.

Fundimo-nos com esta terceira voz
prima-vox-ex-nihilo         prodígio
de uma prótese compulsiva
e acertamos o tom por meio da distorção
e da afonia.

E na esperança de rebater o alvo
deslizamos continuamente entre o dizer e o eco
inscientes da multiplicação
porque quando a voz começa somos
sempre dois.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A Blanchot

|Helena Carvalho

Procuro-te essa noite avistada quando as horas
se comprimem numa espiral compulsiva
e as imagens vivas são já as sombras do meio-dia.
Ouve-se nela o canto impossível de Orfeu
quase prodígio              quase eco cavo
a modulação da afonia como voz ferida
tornada prece.

Será aí a fonte atópica das formas
do pensamento porvir de uma paciência infinita,
o murmúrio esférico de um neutro lá onde 
toda a presença se refaz em rasto como sinal
e desaparição.

Lá onde a língua é um jogo de loucura que nos cresce por dentro
um pomar de espuma na boca
e boca é já fruto maduro
e fruto é já cereja
e cereja é fogo preso
e fogo é rito iniciático e sangue
é catarse e conversão.

Nasce aí o olhar felino
e as palavras todas, essas musas de prostíbulo.
Um dia hei-de acertar numa e oferecer-ta assim
ferida de morte.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Canto primeiro

|Helena Carvalho

Nada começa antes do canto
que nasce outro sob a pele e dentro dos caules
húmidos e intocados,
nem o choro redondo dos pássaros
nem esta voz estrangeira que me lacera
a garganta em gomos e diz antes de mim a volúpia
e a saudade.

Canto de primeira pedra
lançada ao lume primeiro vate
dos pulsos cerzidos na substância feérica
dos ventres prematuramente acesos e
nas doze rotações dos astros.
Tremor felino do corpo e dos frutos
maturados em cada estação de fogo
na sua participação cósmica quase lunar.

Canto absoluto
nascido não da voz mas dos tímpanos
matinalmente ligados ao ressoar anónimo dos búzios
e à contínua vibração dos graves.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Helena Carvalho

Helena Carvalho nasceu na Nazaré, em 1982. Licenciou-se e fez mestrado em Filosofia (UC, 2005; UL, 2013), tendo sido, durante alguns anos, professora do ensino secundário.


Em 2009, foi seleccionada para a Mostra Jovens Criadores (CPAI/IPJ), publicando um conjunto de poemas na colectânea Jovens Escritores 2009. Em 2012, recebeu o Prémio Revelação de Poesia APE/Babel com a obra Geometrias do Desejo (no prelo) e publicou, com a ilustradora Mariana Rio, o livro O Quebra-Cabeças (Edições Eterogémeas). Tem participado em revistas literárias e antologias. 

domingo, 20 de outubro de 2013

A Casa com Alpendre de Vidro Cego




A Casa com Alpendre de Vidro Cego conta, com a simplicidade característica da melhor literatura nórdica, a vida de Tora, uma menina nascida da relação de uma norueguesa com um soldado alemão durante a Ocupação, numa aldeia do Norte da Noruega.
Tora carrega o estigma da desonra que a torna alvo do escárnio dos vizinhos, mas é no lar que terá de enfrentar as investidas do perigo, sofrendocom a ausência da mãe, Ingrid, que tem de sustentar a família, e com os abusos do padrasto, Henrik, um homem violento. Apesar deste ambiente de pobreza e de miséria moral, Tora tem as ilusões próprias de uma menina da sua idade e desenvolve armas para lutar contra as adversidades.
A Casa com Alpendre de Vidro Cego é o primeiro título da trilogia de Tora que nos deixará, a todos, na expectativa de saber como será a vida da menina-coragem.

Herbjørg Wassmo nasceu em Vesterålen, no Norte da Noruega, em 1942. Iniciou a carreira literária em 1976, com o livro de poesia Bater de Asas (Vingeslag). O reconhecimento chegaria mais tarde, em 1981, com o primeiro romance A Casa com Alpendre de Vidro Cego (Huset Med den Blinde Glassveranda), uma obra que conquistou o estatuto de clássico da literatura norueguesa. O livro constitui o primeiro volume da trilogia de Tora, ao qual se seguiram O Quarto Silencioso (Det Stumme Rommet), em 1983, e o Céu Doloroso (Hudløs Himmel), em 1986.
A voz de Wassmo goza de um poder poético e evocativo que conduz o leitor até uma fronteira próxima da desintegração do jovem ser humano e da luta pela dignidade.
A trilogia de Tora, cujo primeiro volume a Arkheion Editora se orgulha de agora publicar, foi vencedora dos prémios Literary Critics’ Prize, em 1981, Booksellers’ Prize, em 1983, e Nordic Council’s Literary Prize, em 1987.

sábado, 19 de outubro de 2013

Poemas para André Meyer (II)

|Cristiane Rodrigues de Souza

VI
Gosto quando seu calor possui meus arrepios.



VII
Estão no extrato do cartão de crédito
os encontros
as risadas
as mãos dadas – ou não –
as noites de amor
do mês.


VIII
Houvesse jeito
pediria ao tempo para guardar
ao menos
sua risada.


IX
Durmo nos braços dele
e confundo seus carinhos
com o barulho de minhas asas


X
Você parte sem maldade,
depois de ajeitar os cabelos pegar o celular as chaves a carteira os meus desejos
de suas costas de seu sono de seu beijo abraço mas
deixa-me
a mim só
pura ternura.


XI
Gosto mais da lua com você

luou
a noite
a lua sua
minha
os ares pálidos
noturnos
notívagos
azul acima
em volta
a rua rarefeita
mas
sem
você
a lua sua

chora
longamente branca
escura

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Poemas para André Meyer (I)

|Cristiane Rodrigues de Souza

I

Você é meu luar que abraço
como neblina.

II
De manhã,
a aparição súbita da sua beleza
na cozinha
despenteada
sem camisa sem defesa
com olhar de amor noturno
causa no ar o susto de asa
de passarinho
que irrompesse
pela janela
ou de um beijo
inesperado
que te dou.

III
você
me abraça leve leve
toque touch
de tela de
 kobo

IV

Descubro-me, André,
em ti.
E quando partes
leva-me.


V
Há essa palavra
– preciso –
para definir o amor.



quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Motivos que fizeram Joana terminar namoros

|Cristiane Rodrigues de Souza

– Ele estava dançando com outras meninas!
(no bailinho da escola)

-

Perguntou se esperaria se decidir
            entre a ex
            e ela.

-

Não conseguia se lembrar do rosto dele
no outro dia.

-

Joana desejava que morresse
para que ele nunca tivesse existido

-

Demorou muito para dizer que a amava.

-

Olhava Joana fixamente
como louco

-

Demorou muito para dizer que a desejava.

-

Enchia a vida de Joana de borboletas amarelas
mas demorava a aparecer.

-

Ela não entendia sua letra nas cartas de amor.

-

Era muito Dom Juan!
            apesar de trazer luas de presente

-

Seu cheiro de maconha com álcool
dava náuseas em Joana.

-

Era muito lindo,
mas a deixou esperando uma noite inteira uma vez.

-

Não colocava pontos de interrogação
nas mensagens do celular
(e parecia imperativo quando era interrogativo)

-

Quando viajava
ele parecia o anão de jardim de Amélie Poulain
em suas fotos do Face.

-

Falava com a boca cheia
ao fazer sexo

oral.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Estudos para um corpo masculino

|Cristiane Rodrigues de Souza

1.
boca

o limite da
mordida
e do
beijo


2.
Dejà vu

seus olhos são meu corpo devorado


3.
repouso em seus ombros como a lua
japonesa


4.
sempre agradeço aos seus joelhos


5.
meus quadris
se pudessem
descreveriam os seus


6.
amo as articulações
dos seus dedos
quando dentro
de mim
precedem


7.
não existe nada mais malicioso
do que as suas costas

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pobre mão flagrada

|Cristiane Rodrigues de Souza

Fotografo
o de leve tremor
da minha mão
quando ela toma consciência
a meio caminho
do gesto vão.

Tiro foto
do very instante
em que indo
no momento mesmo de se ir
dando-se como oferta
ela hesita
porque não serve
disseram.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Depois do amor

|Cristiane Rodrigues de Souza

Depois do amor
nos meus braços ele dorme e sonha com a luz o sol o ar
o antigo dodge branco de seu pai
(a sua cabeça de menino no encosto do banco do dodge)
ouve na memória a música de deturpados cassetes
e ressente o carro trepidar por estradas
(Creedence).

Uma aurora confusa diz pra mim lá fora que é hora de despojar-se de despojar-se
e as árvores desapegam-se das flores das flores das luas
ignoradas no chão.

Mas meu corpo comovido em suas mãos cria nele ritmo de noite quente
ele me prende
e me enreda e me leva como as ondas de Creedence.

domingo, 13 de outubro de 2013

Cristiane Rodrigues de Souza



Cristiane Rodrigues de Souza nasceu em Adamantina, em 1975, e cresceu em Irapuru, pequenas cidades do interior do Brasil. Cursou Letras na UNESP, instituição em que concluiu o mestrado em Estudos Literários. O doutorado, sobre a poesia de Mário de Andrade, foi realizado na USP. Em 2006, publicou o livro de crítica literária Clã do jabuti: uma partitura de palavras.

Atualmente é professora de Literatura Brasileira e de Teoria da Literatura no ensino superior de Ribeirão Preto.

Pensamentos Dispersos

| Natércia Simões

Por vezes um silêncio interior
nasce em mim e vai e vem,
ao ritmo de um pêndulo
inconstante. Vem e pára,
vai e fica, preso no instante
único do agora.
Refugia-se na espera da chegada
das palavras últimas
do Adeus para sempre,
que urgem ecoar no meu destino
de te deixar ficar quando já foste.
E reúno-me longe
com lembranças que penetram
nos meus nervos e metamorfoseiam
a realidade de um sonho
que me consome e controla!

sábado, 12 de outubro de 2013

Límbico

| Catarina Costa

Extraíra de qualquer coisa escavável algo que só a ti podia servir. Tinha-o pronto a ser oferecido. Esculpira imaterialmente algo que só a ti podia caber. E depois tinha posto a dádiva sobre uma bandeja que segurava com tensão de equilibrista, de mulher-estátua, até doer o pulso, sem saber que passos dar, por não poder levar a bandeja para a sala de refeições, que ali seria fruto sem préstimo, desembaraçado da fome. Ou segurava a dádiva pela boca, trincava-a, fazendo-a regressar para dentro de mim, ao ponto de partida, sem uso. O que extraísse de um fundo escavável a ele deveria regressar. O que extraísse do corpo a ele deveria tornar. Ou preso ficaria para sempre nas pontas dos dedos, nos lábios, nos cabelos, para que não caísse. Com a bandeja na mão, estacava num limbo repassado pelo distúrbio.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Justiça popular

| Catarina Costa

Apazigua minha ira pensar na brutalidade e na estranheza dos sonhos que ele me relatou. Colocam-no no plano do isolamento, ele que não tolera a solidão. Abandonado, seus pontos de referência tornados absurdos por uma rompante multidão onírica. Falou-me de sonhos recorrentes em que a sua consciência se via a sós frente a uma incompreensível moral popular, uma justiça comunal kafkiana que desafiava as convenções éticas que ele mantinha da vigília. Rodeado por cidadãos zelosos, dispostos a executar sua bárbara vindicta em nome de uma lei inescrutável. Ele sentiria a culpa em vez deles? Seria a sua missão carregar-lhes os pecados? Ou seria ele o único incapaz de ascender ao estádio moral normativo? Por minha vez, falei-lhe nos meus sonhos em que a moral vigente mantinha, sem escapatória, a da vigília, ainda mais fortalecida entre as fronteiras concentracionárias do onirismo. Não precisava de ninguém para me indicar as leis. Os populares retraíam-se, punham-me com sua indiferença comprometida no centro do sonho para ser cobrada por mim mesma. Reclamava para mim a força centrípeta da justiça popular que já não encarnava em nenhum algoz: escorraçada para ser punida apenas no plano da minha consciência totalitária. Penso no modo como nos poderíamos unir em pólos opostos do pesadelo: ele, incapaz de entender as leis daqueles que se impunham impantes no abandono de actos por ora sem referentes, eu, absorvendo as leis gerais até saber que a absolvição é a última dádiva. Penso estar a caminhar ao seu encontro, os meus actos interpretados por ele como justiça popular de uma legião estrangeira. Não me chega a acusar. Sou eu quem me acuso, a consciência da abominação tanto na vida como no pesadelo.  

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Objecto de transição

| Catarina Costa

Não sustém sequer a cabeça, o saco de areia onde um sorriso simplório foi desenhado com uma caneta de feltro. E lembro teu ar que tão bem revelava conhecer as margens da graça. Estranha ironia, ser um sorriso aplainado a lembrar-me tua gravidade. Como se precisasse de um objecto de transição e fosse buscar artesanato de uliginosa memória. Deixo-o cair no chão: um estampido seco é a constatação da queda. O sorriso continua incólume e é essa figuração geral de uma alegria filogenética, parada no tempo, que me faz querer rever teus traços tristes, mais verdadeiros. Com uma agulha furo o saco de areia que é a cabeça e a areia escorre num jorro finíssimo como se caísse pelo gargalo de uma ampulheta. Fico a ver quanto tempo demora um saco feito cabeça ou uma cabeça feita saco a esvaziar-se até o sorriso ser apenas um risco e não me fazer querer lembrar mais o teu.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Corredores

| Catarina Costa

Cruzavam-se entre os corredores das repartições e entre as alamedas de árvores despidas. Foi um Outono de uma crueldade pouco tolerável para um deles, ou era ele que não queria aceitar sua tolerabilidade. Para o outro terá sido também isso ou algo radicalmente diferente sob o mesmo abandono outonal. De um jeito ou de outro, haverão de ter coincidido nos pontos configurados em raio que precedem a mudez. Caminhavam para um sítio fechado, a duas vozes emudecendo. Só um deles lá entrou, sem retorno. O outro ficou a observar a forma como, chegando-se aonde os pontos se fecham, os corredores deixam de desembocar, as alamedas deixam de confluir. Como as árvores podem ser sugadas sem ruído algum. E continuou a caminhar para um sítio ligeiramente mais aberto.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Bacillus

| Catarina Costa

O homem impunha sem hesitações seu carácter respeitável sempre que se manifestava, olhando incisivamente à sua volta. Preferia não olhar para dentro do espelho onde a sua cabeça semibruta emergia à distância e logo se voltava para o espaço que lhe faltava percorrer até ao êxito. Se havia retrospecção, esta fixava-se nas pontas do cabelo que deixavam seu viço por mais algum tempo em desalinho no perímetro de espelhamento. Polia o espelho, a superfície de um mundo, e entregava-mo com dedadas que eu escarafunchava até à sujidade última que o toque deixa, um bacilo solitário. Eu olhava o bacilo pelo microscópio. Com uma pinça iria esborrachá-lo contra o vidro. A parte da visão humana preparada para notar rastos iria captá-lo. O homem iria ver como escorre tão facilmente por uma lisura polida o bacilo do nosso ínfimo.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Infibulação

| Catarina Costa

Não tinha como se defender. Mas não ia deixar que a torturassem. Não eles. Não dessa vez. Então avançou. Para o ponto em que não a poderiam acusar, em que seria a executante da lei nas hierarquias que se instalam no topo dos precipícios. Dos cumes alcantilados trataria de se recolocar no devido lugar cá em baixo junto aos terrenos. Seria aquela que executa a sua própria lei de cima abaixo. Seria responsável pela sua mudez última. Haveria de fechar todas as aberturas por onde a luz, o ar ou a fala poderiam sair. Iria fechar a lucarna, amarrar os membros às pegas nas paredes do compartimento. Iria coser os lábios. Praticaria a infibulação. Seria aquela que fecha as frestas, que autoriza apenas uma luz interior, engolida.

domingo, 6 de outubro de 2013

Catarina Costa

Catarina Costa (1985). Publicou o seu primeiro livro em 2008 (Marcas de Urze, Editora Cosmorama). Tem igualmente poemas publicados em algumas revistas, tais como a Oficina de Poesia, a Minguante, a Sibila, a Zunái e a Bólide

O Corpo de Lúcifer (Ensaio poemático)

|Luís Coelho

Se bem que uma certa Espiritualidade esotérica – e em particular a Teosofia de Blavatsky – pretenda fazer do aparente binómio «Corpo – Espírito» uma Mónada de substancialidade espiritual em que tudo é Uno e em que o Uno é o Absoluto, a tentação de contrapor a tal coerente monismo o protótipo de uma dualidade do tipo «Espírito vs. Matéria» não pode deixar de ser sentida enquanto produto de uma natural devassa interna, que é aquela que, urgindo o mecanismo de defesa de cariz psicanalítico, contenta a natural aversão à Unidade e a atracção à transubstanciação de fronteiras.
Jaz já, então, a tentação demoníaca nesta tão grotesca tendência para a fragmentação de uma Unidade, na qual toda a diversidade e todo o movimento conspiram nos termos de um jogo de ilusões, teatro de máscaras que apela à multiplicidade de um Demiurgo que se contenta com a quimera do livre-arbítrio decisor. 

sábado, 5 de outubro de 2013

Quatro poemas de António LaCarne

|António LaCarne


poema para cálices & pessoas ausentes

não há espaço

nem alienígenas circunspectos

viajantes são nossos segredos nas estantes

performance madrugada de mil dentes

o amor que platina os bosques

regiões de fuga rodopiam meu percurso

& omisso adorar

raízes flagelos distâncias no espaldar do mundo

relíquias de auroras boreais retidas no espaço

pois esta fumaça cercada por vidros cálices vórtices

comemora descalça os ventos daí

os 365 beijos que eu jamais quis

as dolorosas formas do poder floral & dos carmas

exatidão em páginas & eles desenham fatalidades

tão começo tão tarde tão trabalhosa é a noite.


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Do amor à pátria que, como mãe bondosa, acolheu a menina tupiniquim




Até parece que foi ontem, mas já lá se vão quatro longos anos. Nunca fui boa em matemática e toda a gente sabe disso. Por isso mesmo, perdoem-me os amantes das "quatro operações fundamentais", para o caso de alguma falha nos meus cálculos. Isso por que fiz cá umas contas muito rápidas, para o que aponto os seguintes resultados: 4 anos multiplicados por 365 dias e 6 horas somam o singelo resultado de 1.461 dias ou, se preferirem, 35.064 horas ou [quem sabe?!], ainda, 2.103.840 de minutos repletos de muita vida desde que pousei meus pés em terras lusitanas.

Esqueçam lá os números por um instante! Primeiro, por que confesso que não conferi se fiz bem as contas todas; Segundo, por que os números pouco importam, já que o que está em causa é a QUALIDADE e não a quantidade dos dias vividos nesta terra que me acolheu de [a]braços abertos.

Já viajei muito por este país e gosto de dizer que conheço melhor a cidade que escolhi para viver [Ó minha adorada Invicta!] que muitas das pessoas que nasceram e foram criadas aqui. E, no decorrer destes quatro anos muito bem passados deste lado do Atlântico, flertei descaradamente com Lisboa, namorei muito seriamente com Viana do Castelo, curti deliberadamente com o Alentejo e arredores. Mas me apaixonei perdidamente pelo Porto. Posso lhes garantir, senhoras e senhores, que foi amor à primeira vista! E o melhor: tudo bem medido e bem pesado, asseguro que este amor é recíproco.

O tempo passa a voar, é verdade. Lembro-me com clareza da tarde em desembarquei aqui, das expectativas todas que trazia em minha bagagem, da saudade daqueles que havia deixado do lado de lá do oceano, do receio de não ser bem aceita [menina forasteira!], das diferenças culturais que sabia que, em breve, enfrentaria... Um turbilhão de sensações que me fazia sentir os pés fora do chão.

Mas o que parecia assustador numa análise muito superficial, logo se mostrou como sendo das melhores experiências de vida que poderia ter. Tantos amores já cá vivi, bem como a sorte que tenho pelos muitos amigos que rapidamente fui fazendo por onde passava [que povo amistoso é o povo português!], talentos que descobri ter, muitas vezes com alguma dificuldade, mas de maneira sempre gratificante. Poderia passar o resto do dia escrevendo, escrevendo, escrevendo... Mas tudo soaria como "lugar comum" [parece sempre tão clichê declarar o amor assim, gritando aos quatro ventos, para que toda a gente possa ouvir].

Assim sendo, e por aqui fico, deixo o registo para a posteridade: BRASIL, "tô" morrendo de saudade e já faltou mais para sentir meus pés no MEU chão outra vez, mas por enquanto... É por cá que quero ficar e, como costumo dizer sempre, "enquanto esta terra por cá me quiser, por cá estarei!". Amo-te, PORTUGAL!


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

“Não parti. Mas já não sei voltar.”

|Filipa de Lima

O sol tingiu de tons laranja o céu, e reflectiu a sua luz por todas as superfícies brilhantes que existem na Terra. Lá fora, do lado exterior do nosso carro, o mundo é caótico com o trânsito parado no tempo, suspenso como numa película fotográfica. Cá dentro, no nosso mundo, a atmosfera é composta por milhares de partículas que apenas se movem pela nossa respiração. Qualquer som é inaudível, tu conduzes alheio a todos os sentidos e eu olho a minha janela, dando-te as minhas costas, não vás tu aperceber-te dos meus olhos brilhantes, das lágrimas que amarfanho num nó insuportável que se prende na minha garganta.
Estás alheio a tudo, continuas a tamborilar os teus dedos no volante a um ritmo constante, que hoje, no silêncio absoluto em que nos encontramos, assume um volume ensurdecedor e extremamente assustador. Estás sempre alheio a tudo, nunca prestas atenção a nada. Nem daquela vez que cheguei a casa tarde e desalinhada, não me perguntaste onde estive, com quem estive, porque cheguei tão tarde. Ignorância tua que teimaste em continuar a ter, arrogância minha em manter a clandestinidade de uma relação que não conhecias. Ou como daquela vez em que tirei as nossas fotografias do escritório, e tu nem deste conta. Fi-lo, não por já não me seres nada, mas porque não sabia se eu ainda te era alguém.
Hoje, como tantas outras vezes, olhava a minha janela para que não desses pela minha presença, pensava que sendo discreta não davas por mim e talvez não me mandasses já embora. O trânsito avançou finalmente e um outro carro parou do meu lado, o condutor, um homem de ar cansado, olhou-me os olhos e acho que percebeu que o brilho dos meus olhos não era um bom augúrio. Fiquei-lhe grata não só por se ter apercebido mas também por ter desviado os seus olhos no segundo a seguir.
Tenho os olhos vermelhos e não posso pestanejar, não vá eu perder o ponto de equilíbrio e as lágrimas desabarem. Tenho o choro estanque, preso por um dique como numa barragem em que o rio é impedido de correr eternamente contornando os obstáculos por que passa, mas não quero que me perguntes nada. Dói-me os dedos de apertar a mão com força em volta da maçaneta da porta, estou pronta para correr mal percebas os meus olhos vermelhos. O ar começa-me a faltar, as costelas apertam a minha caixa torácica onde sinto o meu coração a bater com demasiada força, e demasiado lentamente.
O trânsito continua parado, as luzinhas vermelhas desfocadas parecem-me balas directas a mim, um sinal divino, uma deformação da visão, não me interessa. Sei que tenho um colete-de-forças invisível que me impede de abrir a porta, tenho a boca presa e não te consigo pedir para parares. Para me deixares ali que eu vou a pé. Apanho um táxi, preciso de sair, vou ter a casa depois.
E por milagre, o trânsito avança e eu não consigo suportar mais a revolução que tenho presa dentro de mim. As minhas lágrimas transbordam silenciosas e alagam os meus olhos, descem a minha face, caem sorrateiramente pelo meu pescoço.
Desbravo e finalmente choro enquanto tu regulas a sintonia do rádio, e por sorte não dás – nunca dás – por nada.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Antologias

Recensão à antologia de poesia Mixtape

|Manuel A. Domingos



Algumas antologias poéticas têm o nobre propósito de divulgar os poetas que nelas vêm contidos. Outras têm um propósito meramente académico. Outras, ainda, um propósito pedagógico. E existem aquelas que têm o propósito de estabelecer uma espécie de cânone. Há antologias poéticas que respeitam um tema. Lembro-me, por exemplo, de A Perspectiva da Morte: 20 (-2) Poetas Portugueses do Século XX (Assírio & Alvim, 2009), com selecção e prefácio de Manuel de Freitas. Estas são, porventura, as mais difíceis de organizar e as mais difíceis de defender, pois, como bem refere Manuel de Freitas: «é desde logo garantido que ela não obterá nem o consenso dos contemporâneos nem o favor da «eternidade» (…) [e] dir-se-ia que as antologias têm a incómoda particularidade de envelhecer ainda mais depressa» (p. 9). Por seu lado, Maria Alberta Menéres e E.M. de Melo e Castro, na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa (Livraria Morais Editora, 1961), referem que «organizar Antologias reveste-se de particular delicadeza» (p. XIII), o que desde logo parece ser a característica mais óbvia, principalmente porque devemos ter sempre em conta o carácter subjectivo das mesmas, que deriva, em boa parte, do gosto pessoal de quem antologia.
A editora do lado esquerdo decidiu arriscar uma antologia de nome Mixtape (do lado esquerdo, 2013). Não existe qualquer referência aos organizadores da antologia, mas parte-se do pressuposto que a mesma é da responsabilidade de Maria Sousa e Nuno Abrantes (editores). O tema comum, ou melhor, o tema englobante, é a música. Na epígrafe podemos ler: «É difícil fazer uma boa cassete de compilação» (Nick Hornby). O mesmo pode ser dito sobre fazer uma boa antologia.
Não deve ter sido tarefa fácil, seleccionar e reunir vinte nomes no mesmo livro[1] — apesar de o tema ter sido respeitado por todos —, quando esta selecção tem nela vozes poéticas tão díspares. Este facto leva a um outro: os poemas são desiguais, o que provoca uma antologia desconcertante em desequilíbrio (risco este que os antologiadores previram seguramente), isto é, uma feliz antologia provocatória. Algumas falhas na revisão final também podem contribuir para algum ruído de fundo, o que, ao contrário de hoje por questões saudosistas, eram então sublinhados a vermelho por todos aqueles que gravavam cassetes ou faziam mixtapes.
No entanto, é de louvar a aposta duma editora numa antologia, que a caminho do quinto título em poucos meses, divulga a poesia que é feita neste nosso país. Tudo isto sabendo, a priori, o risco que correm.

AA.VV., Mixtape, posfácio de Francisco Amaral, Coimbra: do lado esquerdo, 2013, 77 páginas.




[1] Ana Caeiro, André Tomé, Bruno Béu, Bruno Sousa Villar, Carlos Veríssimo, Daniel Francoy, Hugo Milhanas Machado, Inês Fonseca Santos, Ismar Tirelli Neto, Joana Jacinto, Luís Filipe Cristóvão, Margarida Ferra, Maria Sousa, Marília Garcia, Miguel Pires Cabral, Pedro S. Martins, Pedro Santo Tirso, Raquel Nobre Guerra, Ricardo Marques, Tatiana Faia

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Editorial: Sem tempo para guerras

|Luís Filipe Cristóvão

Sem tempo para guerras, assumimos a luta pelo sonho – sonhamos um espaço onde os autores podem divulgar o seu trabalho e onde leitores podem descobrir novos caminhos de saber. Falhamos, constantemente, umas vezes atrás das outras, mas não desistimos. Ao nosso sonho correspondem, mensalmente, novas vozes e novas ideias, as nossas portas estão abertas, façamos deste recreio um espaço para nos renovarmos.

Sem tempo para guerras, assumimos a luta pelos nossos direitos – inventamos o que ocupa o vazio e permanecemos em constante desbravar de sensações. Queremos que as nossas palavras sejam sentidas, queremos que as nossas imagens sejam emocionantes, queremos que o nosso estímulo não se perca no vazio. Connosco, estão todos os autores que comungam deste desejo de ser maior, entre as nossas janelas corre o ar, façamos desta sala um espaço para nos encontrarmos.

Sem tempo para guerras, não desistimos. Não precisamos de mais razões para fazermos aquilo que queremos fazer. E o que nós queremos, agora – como querem todos vocês que por aqui passam em busca de espaço para publicar, algo para ler, muito para sonhar – é isto. Esta é a Sítio. Construam nela a vossa casa.



Nota: Porque esta revista é feita por múltiplas vozes, os editoriais passam agora a ser assinados. A cada um deles, corresponde uma cara, um pensamento, um desejo. Tal como a cada dia, nos poemas, nas prosas, nas fotografias.