quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A Blanchot

|Helena Carvalho

Procuro-te essa noite avistada quando as horas
se comprimem numa espiral compulsiva
e as imagens vivas são já as sombras do meio-dia.
Ouve-se nela o canto impossível de Orfeu
quase prodígio              quase eco cavo
a modulação da afonia como voz ferida
tornada prece.

Será aí a fonte atópica das formas
do pensamento porvir de uma paciência infinita,
o murmúrio esférico de um neutro lá onde 
toda a presença se refaz em rasto como sinal
e desaparição.

Lá onde a língua é um jogo de loucura que nos cresce por dentro
um pomar de espuma na boca
e boca é já fruto maduro
e fruto é já cereja
e cereja é fogo preso
e fogo é rito iniciático e sangue
é catarse e conversão.

Nasce aí o olhar felino
e as palavras todas, essas musas de prostíbulo.
Um dia hei-de acertar numa e oferecer-ta assim
ferida de morte.