segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Mesa do Canto: Todos os lugares onde te amei

|Alexandra Malheiro

Agrada-me começar assim a crónica, com um título piroso e lamechas, ainda que o corpo da crónica possa não confirmar a investida no território afectivo é sempre uma bela forma de deixar o leitor a pensar que me vou permitir a contemplações de ordem amorosa e deleitá-los com o rigoroso detalhe da minha vida íntima. A própria referência, neste mesmo parágrafo, ao "corpo da crónica" já é, só por si, uma vaga alusão ao erotismo que cada um de nós transporta interiormente.

A verdade verdadinha é que tinha planeado levar esta crónica pelas ruas do Outono, a pisar o restolho e a sentir os primeiros bancos de gélido nevoeiro, começaria assim, sei-o bem - "Entrou-me hoje, pela primeira vez neste ano, o Outono pela boca, à boleia de uma castanha assada comprada na baixa." Seguiria depois pela industriosa tarefa de explicar as razões pelas quais percebemos que pertencemos a um lugar e não a outro qualquer, o reconhecimento implícito das ruas, das suas esquinas, pelos odores, pela textura, até chegar ao imo daquilo com que se faz um poema. Trataria depois de explicar que é sempre isso que procuro em tudo, o poema, a coisa inata que há dentro das pessoas e das coisas e por onde passo farejo o poema até o encontrar, ou não, que às vezes o poema é coisa que não se encontra.

Levaria assim a crónica pelo território da busca, e eventual encontro, com o poema que, quando ocorre, tem sabor idêntico a uma vitória na guerra dos dias, espécie de orgasmo que nos resgata do cinzento a que a vida e as suas circunstâncias nos condena a maior parte do tempo. É por isto, e não por qualquer outra razão, que gosto de oferecer poemas aos amigos - aqui um pormenor de semântica, oferecer não é dedicar. Dedicar implica uma razão subjacente, pode nem sequer se conhecer o sujeito a quem se dedica mas sabemos que algo no sujeito espoletou a arma, nos apertou o gatilho do poema, mostrou a estrada e a luz de por onde levar as palavras e isso é toda uma outra conversa sobre guias e referenciais. Já a oferta do poema é uma coisa livre, não referenciada. Dá-se o poema a quem se apetece, sem pedir licença. Quando se escreve um poema, ou quando se atinge - ainda usando uma metáfora orgástica - ele deixa de ser nosso ou inteiramente nosso e se se partilha já não nos pertence senão numa vaga ilusão de posse de autor, coisa semelhante ao amor que se tem sem de facto se possuir.

Por isso às vezes ofereço poemas, quase sempre recém-nascidos, aos meus amigos, para que não fiquem só comigo e procurem com os outros outra luz, e para que outros possam também iluminar-se neles. Não sei se gostam, se lhes agrada que os importune, quase sempre por telefone, em geral por sms, raras vezes por voz - pranto-lhes o poema no gravador, e mais raramente ainda em directo ao ouvido arriscando interromper-lhes os importantes feitos da vida real, tão cheia de curvas e contracurvas, tão avessa à etereadade dos poemas, nem sempre bons, como são os meus.

Aprecie o estimado leitor a sorte que tem em não fazer parte da minha lista de afectos ou, melhor digo, de telefones, para onde debito poemas a horas ingratas. Se, porém, o leitor acaso é meu amigo e já foi contemplado com um desmando "literário" sem aparente razão que não a minha intermitente loucura, peço-lhe o necessário desconto pelas razões antes expostas em abono da partilha de poemas e entusiasmos. Sou assim mas não represento verdadeiro perigo social ou outro.

Entretanto é sexta-feira, pretendo jantar fora e resolvo marcar mesa, não vá dar-se o caso de o restaurante lotar, telefono para reservar mesa e hora, que sim senhor, dizem-me do outro lado, questionando-me se pretendia apenas jantar ou se tinha igual interesse em marcar consulta de astrologia. Fiquei surpresa, desconhecia a fusão sugerida de jantar com bruxos e entendidos no futuro dos outros. Digo que não, pretendo apenas comer, embora me assalte o pensamento que preferia que ao invés de um futuro inventado me inventassem um poema, ainda que fosse de comer como os da Natália.


No final desta crónica o atento leitor meneia a cabeça recriminatoriamente sem descobrir nela, após tanto palavreado, nenhuma real ligação entre o seu título e tudo o que nela se assunta. Mais lhe valia ler Lobo Antunes pensa, e bem acrescento eu, o estimado leitor. Mas eis que num vislumbre de juízo me apronto a deslindar o novelo. É que todos os poemas partilhados em qualquer esquina mal iluminada do tempo foram  todos os lugares onde te amei.