sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

tromba

|Ana Carolina Martins



Foste insistindo para que a garganta secasse a raiva.

o que consegui

foi disparar-te um pano frio na tromba

o azeite a escorrer-me pelo peito

a terra agarrada que estava nos tornozelos a não me
deixar ir

a dúvida a empatar-me o
coração


e tu e a tua tromba sem reacção a enxotarem-me

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

vinhas

|Ana Carolina Martins


vinhas

como a chuva
sem pensar
no amanhã
enlameado

vinhas

à deriva

sentado no banco do réu

que se afastava cada vez mais da sentença por dizer
vinhas

sem jeito

de um parapeito mal estudado

tudo o que dizias

era sem obrigação de magoar

tudo o que exprimias

era apenas um andar atordoado

e seco

incompreensível para o ouvido alheio

e ias já sem teres voltado


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

112013

|Ana Carolina Martins


o mar enxuga a vista desmedida
como o manto quente

que me trazes quando estou triste

pergunto-te se ficas

a primeira resposta é vaga

mas acabas por dizer que ficas seis meses à experiência

concordo


mas não ficas.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

nademos

|Ana Carolina Martins

se te importasses

trarias no ventre uma madeixa de cabelo arruivado
como senão importuno

se conquistasses

o barulho das teclas seria apenas
um volver de misérias

arremessaste

a onda postiça

que viste no caderno embaraçado
e por fim o que fizeste
foi

nada

mais
que


dar uns tiros nas saudades

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

como eu me lembro de ti

|Ana Carolina Martins

como eu me lembro de ti

as folhas do mal bajulando o que restava [daquilo]
trepadeiras à antiga.subindo pelos negros poros da parede
delapidada
e as noites tão longas...

o líquido era claro, a voz amarga e distante

dos anos que se mantiveram à parte

soava a presente a claridade que te amortalhava
e assim permaneceste


na fuga em que me alvejaste

domingo, 19 de janeiro de 2014

Ana Carolina Martins - Biografia

Estudou Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, especializou-se em cinema e, mais tarde, entrou para o Mestrado de Estudos Literários e Culturais na mesma Instituição. Tem em mãos uma tese na área dos Estudos Comparatistas intitulada “A Corte no Norte – as narrativas da ausência”, visando estudar vários planos narrativos (efectivos ou hipotéticos), como se a obra fosse composta por um multiverso, no qual imagem e palavra convivem em narrativas (in)comuns e paralelas.

Durante os anos académicos, fez parte dos grupos de teatro CITAC e AR-Exploratório das Artes.
Em 2011, foi comunicadora no II Congresso Internacional “Criadores Sobre Outras Obras” da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa com os seguintes artigos: “A Corte do Norte: identidade e ausência” e “Dead Man: discursos reescritos”.



Entre 2012 e 2013, seleccionou alguns dos poemas que escreveu entre 1999 e 2013 e publicou recentemente o resultado desse trabalho, um livro intitulado “Uykusuz Venus – dos confins da vigília”.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Brevidades

|Ricardo Flaitt

Foram doze lavouras de coretos,
Trinta pés-de-laranja quemescorreram dosolhos,
Seis paineiras que sedesprenderam da pele,
Vinte e cinco minérios que se desvencilharam dasunhas,
Quatorze lagartos que correram prouvidos,
Sessenta e seis sinos cultivados em maritacas.

E pensar que a vida contém brevidades...

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Sabor Interior

| Pedro Marques

Paulista ainda traga, cospe e passa o pé? Orgulho da caminhonete, tara por shopping e “modernidade” fizeram São Paulo exportar seu quinhão a Minas, Goiás. Tempo de antibiótico, plástico, pastor, analista dizendo o que é a vida ao homem. Não fosse fundo o poço, não sobrava areia para nossa identidade. É notável quando um escritor paulista dá no peito: sou do interior, sô!



Ricardo Flaitt (1976-) masca o interior que largou Cornélio Pires por causa da Capital. Cidades com mais cinquenta mil viventes perderam a batalha. Em vez de ensinar dignidade à metrópole, tomaram lições de desumanidade. Mococa, berço do poeta, virou mini-capital de problemas. E o interior é maior que cinemas, palcos, crimes e carros aos milhares. Pra que duzentos eventos por noite, se o sonho digere dois, três? É outro o tempo do poema caudaloso, terreno em que este poeta se destaca dos viciados em pílulas e sacadelas.

É cicatriz na cara e vida na caçamba. Naturalmente 3D. Ricardo tem paladar poético, o sentido mais afeito ao “experimentar”. Provar pela boca é guardar conteúdo dentro, saber do bom e do ruim no ato. Esta poesia tem o ritmo da gustação, papilas afiando olhos, narizes, ouvidos, dedos. Todos os sentidos a partir da língua: “Junto um punhado de terra na mão / Aperto profundo até extrair as sementes”.

Sabor, sentido que desbotou. Viramos uns devoradores sem apreciar nada. O antropófago do século XVI conhecia mais o que mordia do que nós, que convertemos comer e beber em consumir. Caboclo tem mãos e pés de lixa, pele de sol, pelo deitado no sereno. Mas tem língua de esmeril, conhece saboreando, polindo o que diz e mastiga até virar algo seu, interior, memória perene. “E assim, o mundo todo seliquefazia no mais profundemim.”

O poeta sabe o sabor que fala, vê, cheira, ouve, toca, amarga. Pedra, marimbondo, rua, cigarra, moça, fruta caem na língua que esmerilha cinco sentidos do corpo, diversos sentidos da palavra. O Domesticador de Silêncios (2013) doma o mundo pelo paladar, cujo ruído surdo é a mastigação da força nova sobre as sabidas coisas. Difícil comer e falar, lance de mau educado ou bom poeta. E a deglutição monta acordes saborosos, naturais, herméticos: “quimiciriguelas”, “dendagente” ou “prélasdiquiririnchaço”.

A febre de cores lembra Murilo Mendes, no passado, e Ricardo Lima, no presente: “Cosia botões com cascas de laranjeiras em terno de andorinhas”. As touceiras de sons ecoam Manoel de Barros (ontem), Antonio Geraldo (hoje): “E era réptil ritmo que doverso em min'medra”. É que nenhum poeta inventa a vela, faz ventar (“a insanidade do vento”) do seu jeito as vozes que vem de antes, do longe. Domesticar silêncios, nesse sentido, é também pilotar a tradição que, na calada, tormenta a noite do caboclo.



Pedro Marques é professor de Literatura Brasileira da UNIFESP e doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A conversão dos silêncios

|Ricardo Flaitt

Hoje converti dois silêncios numa ária
E assim escutei a única voz quecoa em mim.
Meusolhos, caleidoscópios quebrados,
ganharam mais ângulos
E contornaram a serra de Cajuru galopando cerrações,
E cingiram sentimentos de uma vida inteira,
E construíram coretos em minha pele,
E tangeram áreas,
E corrupiaram em torno da minha existência,
Que vai da Aparecida às margens do Canoas.
Hoje converti dois silêncios numa ária
Mas confesso que poderiam ser rebanhos de sombras
Ou mesmo os louva-a-deus que nunca se ajoelharam.
Em minha santidade em direção ao descompasso,
Eu continuo a pazear silêncios prárias
Que continuam a cantar um sentido proverbo liquifazer-se.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Invertebramentos da palavra

|Ricardo Flaitt

Soletro minhas palavras invertebradas
E vivo a recontar a coleção de janelas
Que meus olhos herdaram das coisas.
Prossigo entre minérios e vozes de locas.
Estou para o ocaso,
Enumerando as tardes que se derrubam em mim.
Converso com as aleluias e os louva-a-deus,
Buscando uma santidade que não me foi concebida
E que nunca quis.
Assim sigo...
Recortando asas de insetos e borboletas
Pra atingir os invertebramentos da palavra,
Pra ficar acumulando sons de telhados,
Pra ficar ouvindo meus silêncios,
Sentado em minha escrivaninha,
Que não se cansa de ouvir a Coronel Diogo:
Extensão perdida daquilo que me pavimenta.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O ferro de solda ou o metal de conjuminâncias

|Ricardo Flaitt

Quando meninoera, tempo que sol era apenesfera,
Pedi ao pai um ferro de solda pra concertar dicionários.
Em minha fábrica demendas
Catracava vocábulos coestanho, encavalava letras,
Corrupiava conceitos, emendava chuvas nolfato dos passarinhos,
Sons de uma velha cuíca em pedaços de inverno,
Cerzia serenos em cascos de vaga-lumes
E assim o mundo todo seliquefazia no mais profundemim.
A mãe até hoje não entendeu
Quando fundi um caleidoscópio nosolhos
Prenxegar a vida doavesso.
Mas era dessa forma que a vida ganhava sentido
E era assim que minha alma contornava a serra de Cajuru,
Sebanhava no Canoas, cingia o Rio Pardo
E terminava no bairro da Aparecida.
Eu só-tinha-isso: um metal de conjuminâncias
E um punhado de vocábulos
A fundir dicionários cambetas
Que continham todo o mundo dos meus pensamentos,
De minhas sensassâncias, meu sentir:
Mistura de sentimentos com infinitos e distâncias.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Ricardo Flaitt - Biografia



Ricardo Flaitt é historiador e jornalista. Seus primeiros versos surgiram aos 15 anos sob a influência de Álvares de Azevedo e outros românticos.
Aos 16 passou a publicar seus pequenos tratados românticos em jornais e revistas literárias. Com o desenvolver do tempo literário Flaitt descobriu a máquina do mundo por meio de Gabriel García Márquez, Guimarães Rosa, Pablo Neruda, Manoel de Barros, Octavio Paz, Getulio Cardozo, dentre tantas outras vozes.
No mesmo período começou a participar e a conquistar vários concursos literários no Brasil.
Destaques para o ano de 2000, quando conquistou o Prêmio Literário do Mapa Cultural Paulista, evento promovido pela Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, com “O Domesticador de Silêncios.
Em 2002, nova conquista no Mapa Cultural Paulista, porém agora na Categoria Composição Musical, ao ver seu poema “Meridianos” ganhar os acordes de Kico Zamarian e a voz de Márcia Tauil.
Em 2006, foi premiado no concurso literário da Universidade Federal de São João del-Rei.
Atualmente mora em São Paulo, e agora está reaprendendo a vida pelos olhos de Lara.

Saiba mais no site oficial: http://ricardoflaitt.com.br/

domingo, 12 de janeiro de 2014

DO INFINDÁVEL AMOR QUE NÃO ACABA NEM COM REZA FORTE

|Cláudia Assis



Porto, segunda-feira, 25 de dezembro. O despertador toca às 8h da manhã, como já era hábito naquela casa. Contudo, ela já estava acordada há algum tempo, contando as voltas que os ponteiros do relógio davam, vezes sem conta. Já tinha percebido, inclusive, que chovia torrencialmente lá fora. Pior: chovia torrencialmente cá dentro do peito! O despertador insistia com o seu barulho habitual, numa tentativa vã de expulsá-la da cama. Mas a verdade é que ela não queria sair dali, de debaixo das cobertas. Era como se ali estivesse, de algum modo, protegida. Silêncio. Finalmente o despertador calou-se e, ainda de debaixo das cobertas, ela apenas virou, encolhendo-se em posição fetal. Não é preciso ser grande conhecedor de psicanálise para perceber que ali, deitada daquele modo, ela só queria proteger-se. Chovia muito lá fora. De repente, se deu conta que as suas mãos, pousadas sob o rosto, estavam molhadas. “Está chovendo cá dentro”, divagou consigo mesma, num pensamento quase surrealista. E muito rapidamente a menina se deu conta de que sim, chovia cá dentro. Os seus olhos eram uma tempestade só! O despertador tocou outra vez, dando-lhe conta de que já havia passado longos 10 minutos. “Mas como, se eu sequer pisquei meus olhos?”, questionou-se. Pobre menina, a sua tristeza até a impedia de ver o tempo passar.

[...] Após alguma insistência do abominável aparelho responsável por mantê-la acordada às horas, levantou-se. Parou por alguns segundos diante do seu telemóvel. É que havia um lembrete a piscar: “Hoje é 25, dia de celebrar o amor. Vamo’bora levantar, pretinha!”. O lembrete tinha sido escrito por ela mesma. Era um modo de não permitir que a sua memória pouco confiável deixasse que tal data caísse no esquecimento. Afinal, tratava-se de uma celebração. Não, não era ao Natal que o lembrete referenciava, mas sim ao amor que veio para transformar os seus dias. E por alguns segundos, uma espécie de filme da sua própria vida passou diante dos olhos. Ela sorriu. Lembrou-se daquele domingo em que a sua vida mudou por completo, do menino que viria para fazer os seus dias mais felizes, de passear a tarde inteira, entre uma provocação e outra, porque, afinal, estava nervosa e era um modo de não deixar que ele percebesse. Mas ele percebeu! E no momento EXATO, calou-a com um beijo. E do beijo fez-se o amor. Quase que instantaneamente. “Adoro a tua pele!”, dizia ele, enquanto passeava as suas mãos, como se quisesse mapear as costas dela. Ela, por sua vez, tentava relembrar um soneto de Vinicius. Mas sua memória... ah!... a sua memória nunca foi o seu forte. Ela sorriu novamente. E depois chorou por lembrar o quão difícil foi deixá-lo partir. Teria percebido claramente que a sua vida jamais seria a mesma. E não foi!

[...] Não havia volta a dar, hora de levantar. Era preciso encarar o mundo e a sua dura realidade. Já de pé, ela decide parar tudo e escrever uma carta de amor. Possivelmente a derradeira. “Que seja! É dia de celebrar o amor e assim será!”, resmungou a menina outrora mulher-tempestade. Papel e caneta na mão [que carta de amor que é carta tem que ser escrita à moda antiga], ela ensaia as suas primeiras linhas. Mas não tarda muito até por em causa aquele feito: “Isso nunca estaria à altura dele. Como poderia eu impressionar um escritor?”. Triste consigo mesma, amassa uma, duas, muitas folhas de papel. Pensa em desistir. Mas desistir também não era do seu feitio. Nunca foi. Algo a faz congelar: os seus ouvidos detectam aquela que passaria a ser a canção deles. “And i'll be anything you ask and more. You're going hey hey hey hey hey hey hey... It's not a miracle we needed. No i wouldn't let you think so. Fold it, fold it, fold it, fold it...”. Inevitavelmente a sua memória viaja no tempo, relembrando-a do dia em que dançaram de rosto colado na sala-cozinha do seu pequenino apartamento. Tantas foram as vezes que fizeram amor ao ouvir aqueles versos... Tão inevitável quanto acordar aquelas memórias foi sorrir com elas. Era impossível não sorrir ao lembrar do menino que se vestia de azul só para impressioná-la. “Sabia que ficas mesmo bonito de azul?”, disse ela uma única vez, sendo o suficiente para que ele não perdesse a oportunidade de lhe roubar sorrisos apenas por se vestir ao gosto dela.

[...] Com o findar da música, a nostalgia que reside no fim dos amores eternos fez-se presente, fazendo-a chorar. Descompassadamente, chorou! Percebeu que seria impossível escrever mais uma carta de amor. Não por faltar amor, muito pelo contrário, mas por ainda haver amor em demasia no seu peito. Era por perceber que já não o veria mais vestido de azul a fazer cenas bobas rua à fora que chorava. Era duro perceber que o seu menino-amor já não estaria mais ali para dançar com ela no meio da rua, como se o resto do mundo parasse para os ver. “Vam'bora arrastá' pé, pretinha!”, dizia ele com um sotaque abrasileirado, só para vê-la derreter-se em seus braços. Pretinha... nunca mais o ouviria dizer “és a minha pretinha”. Não tinha como não chorar. “Como é possível ser indiferente ao amor depois de ter sido tocada por ele?”, perguntava a si mesma, em voz alta, numa espécie de protesto ao universo, o mesmo universo que lhe havia pregado esta peça [fez-lhe provar do amor, fez-lhe ver o amor através dos olhos dele, arrancando-lhe depois isso das mãos, e dos lábios, e do corpo, mas não do coração.

[...] O tempo passa mesmo a voar. Era preciso ir tomar um banho que, afinal, não se podia atrasar para o trabalho. Sem se dar conta, os seus pensamentos vagueiam e ela relembra um dos momentos mais fantásticos e inesquecíveis dos dois: um banho quente em sua banheira tão pequenina quanto o seu apartamento. Mas eles tinham tanto amor um pelo outro que de nada importava onde nem como, desde que estivessem juntos. Encaixados um no outro, naquela mistura morna de água e sais de banho, ele acariciava carinhosamente o corpo dela e, vez ou outra, sussurrava-lhe algumas obscenidades. Especialmente no que tocava à “Sagrada Bunda”. Religião ele não tinha, já a bunda dela... ah!... a bunda dela era por ele cultuada com algum fanatismo, é certo. Sem notar, ela está dando uma suas gargalhadas por relembrar que ele a fotografava despudoradamente. E ele costumava gostar das suas gargalhadas.

[...] Ela sai para o trabalho. Atrasada, mas com a ideia fixa de que tem que lhe escrever uma carta de amor. A derradeira, possivelmente. Mas tinha de lhe escrever mais uma vez. Mais um dia havia sem saber nada sobre ele. “Como será que ele está? Será que no trabalho correu tudo bem? Terá feito para o jantar aquele frango com caril que eu tanto adoro? E sorvete de chocolate para sobremesa? Terá ele se lembrado, ao menos uma vez, que o dia de hoje deveria ser o dia de celebrar o amor? Terá sentido saudades minhas?”, questionou-se menina-mulher-tempestade.

[...] Já em casa, e depois de muito hesitar, não desistia da ideia de lhe escrever uma carta de amor. A derradeira, afinal. Mas logo apercebe-se que, por mais que muito quisesse, que desejasse intensamente, não havia palavras capazes de representar o medo que sentir por estar sem ele, a tristeza de ver a sua história de amor escapar-lhe por entre os dedos, sem que ele ao menos soubesse quanto amor ainda havia dentro daquele velho peito. Ainda assim, ela sorri ao lembrar das juras de amor que costumava ouvir dos lábios dele, das tonteiras e promessas de “juntos serem mais”m tão característico dos enamorados. E que força que tinha aquele amor! Eles eram capazes de sacudir o mundo, se preciso fosse, pois para além de tudo, eles tinham um ao outro. As abundantes lágrimas caem infindáveis, borrando mais uma das muitas tentativas de carta de amor. Ela chora porque não entende que ele prefira lembrar dos dias mais sombrios que ambos enfrentaram que dos muitos momentos de cores, cheiros e sabores que experimentaram. Ela não entende e não aceita. É que o amor gigante de outrora ainda reside em seu peito e ela só deseja ter um final feliz AGORA que é bem melhor que ficar eternamente à espera do PARA SEMPRE.

[...] Ela olha para para o relógio e se dá conta de que era meia noite em ponto, lembrando-se de que dizem que este momento do dia é um bocado mágico. Ela juntas as mãos espalmadas, fecha bem os olhos, e reza seja lá para o deus que for, desejando só mais uma vez, antes de deitar e dormir, que o sonho mau acabasse e que os seus dias voltassem a ter como destino os [a]braços dele. Ao contrário dele (cético como mais ninguém que já tenha conhecido), ela acredita em milagres, em finais felizes, no poder do amor e coisas ditadas por era forte. Ele costumava adorar isso nela. Ela olha para a mesinha ao lado da sua cama e vê a fotografia dos dois, a silhueta de um beijo congelado no tempo e no espaço. Sorri docemente e diz: “te encontro nos meus sonhos, pretinho. Beijo nosso, infinitos e mais além!”.

[...] Ela se deita, suspira fundo, fecha os olhos e, então, adormece, porque em seus sonhos ela ainda pode ter a sorte de amanhecer nos braços dele.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Saltos Altos

|Olinda P. Gil

Quando a minha irmã ficou desempregada, ainda se arranjava como se fosse para o emprego durante muito tempo. No emprego que tinha antes era necessário ir sempre muito arranjada, fato de saia ou de calça, saltos altos, pintura sóbria e cabelo arranjado. Depois começou a cansar-se de se arranjar assim só para ficar em casa. Abandonou os saltos altos, deixou de se pintar e de arranjar o cabelo, e por fim deixou de vestir fato de saia e casaco. Aliás, chegou a uma altura em que só vestia fato de treino, porque só se sentia confortável assim.
Depois de enviar muitos currículos e de responder a muitas propostas de emprego, a minha irmã é chamada para uma entrevista. Vai ao armário e todos os seus fatos lhe estavam largos, pois tinha emagrecido desde que ficara desempregada. Escolheu um, mas teve de o mandar apertar, para que lhe servisse.
No dia da entrevista voltou a vestir-se como antes, arranjou o cabelo, pintou-se solenemente e calçou uns sapatos de salto alto. Quando está a chegar à paragem de autocarro, o que precisava de apanhar estava pronto a sair. A minha irmã teve de correr um pouco para o tentar apanhar. Foi nesse momento que caiu e partiu um pé. Já não foi à entrevista.
Estou a contar isto tudo para vos explicar o que aconteceu já depois dela ter regressado a casa com o pé engessado. O marido e os filhos foram-na encontrar sentada no chão, junto do armário onde guardava os sapatos, a cortar todos os saltos. Depois os sapatos tiveram de ser jogados para o lixo, pois ficaram um pouco estranhos, como barcos naufragados.



sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Xadrez Alcoolizado

|Olinda P. Gil

Ainda hoje não sei. Se gostei ou não daquela prenda que me deste num aniversário. Não sei se gostei porque não percebi a intenção.
Está certo que o meu xadrez era velho. Tinham‑mo dado em criança, para eu aprender. Eram peças de plástico, já gastas pelo tempo e amolgadas pelo uso. Tomara‑lhe um amor fiel. Por isso nunca tinha comprado um novo, tirando o do computador que dava para jogarmos juntos pela net quando estávamos longe.
Ultimamente tens sido o meu único parceiro de xadrez.
Se tiver sido por isso, agradeço a intenção de me dares um xadrez novo. Nesse caso gostei da prenda.
Mas poder‑me‑ias ter oferecido outro xadrez. Um em madeira, de fabrico artesanal indiano, ou um antigo, comprado num antiquário, peça de museu. Há uns muito giros, de que sempre gostei, com as peças em ónix branco e preto. Até me podias ter dado um em louça da Vista Alegre.
Se me querias dar uma coisa de valor.
Agora um xadrez em que as peças são pequenos copos de cristal com as figuras pintadas.
Explicaste‑me o uso: enchiam‑se os copos. Cada peça fora do jogo era um copo bebido por quem a perdia. A ver quem perdia pela embriaguez. Podia ser que um dos dois caísse antes do xeque‑mate.
Até se podia encher os copos com conteúdos diferentes. Vinho branco e tinto. Martini rosso e bianco.
Disseste que eu gostava de Martini.
Não achei graça nenhuma ao teu comentário. Mas tu riste‑te sozinho.
Por acaso estarás a chamar‑me bêbedo?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Clube de Teatro

|Olinda P. Gil

Quando entrou para o Liceu não passava de um rapazola franzino, caixa‑de‑óculos, com um ar desconfiado e bom aluno. Era apenas mais uma face com borbulhas entre outros que preenchiam os corredores. O Liceu era de renome, cujos alunos eram filhos de famílias bem posicionadas, com a obrigação de dar continuidade aos pais. À parte disso, eram como todos os da sua idade: procuravam as raparigas mais simpáticas, elas procuravam‑nos. Começaram a sair à noite juntos, faziam brincadeiras, exageros, crueldades.
Nunca era convidado para estes convívios. Não ficava bem num grupo um rapazola magro, apesar de às vezes lhe darem simpáticas palmadas nas costas. Davam‑lhe o seu devido valor e respeito por ser bom aluno.
No Liceu havia um clube de teatro, no qual ele se inscreveu. Levaram‑no a curiosidade, o desejo, o bater das palmas e as luzes sobre a maquilhagem que lhe permitiam ser um outro numa outra vida. Iam representar Shakespeare – Romeu e Julieta, peça escolhida por inquérito na escola. Calhou‑lhe o papel de mensageiro.
Estudou‑o afincadamente. Leu Shakespeare todo. Decorou as falas de todas as personagens. Treinava‑as ao espelho. Lia estudos, a biografia, as curiosidades.
No dia antes da representação a “Julieta” adoeceu. Só ele sabia a fala.
Foi constrangido, sem dúvida. Ter de ficar com ar de menina. Mas não tinham antigamente os homens de fazer os papéis de mulheres?
Quando os colegas o reconheceram nem queriam acreditar. Pensavam que ele seria o mensageiro. A princípio riram‑se. Mas depois notaram a importância da personagem. E a paixão com que a representava. Um bom actor representa qualquer papel, mesmo que este seja o de mulher.
No final sentiu‑se que os aplausos iam apenas na sua direcção. Fora do palco, todos os colegas lhe vieram dar os parabéns.
Tudo isto se passou no primeiro ano de Liceu. Depois os colegas reconheceram nele mais que um rapazola franzino. Começou a sair com eles à noite, a fazer desporto, arranjou namorada. E, claro, continuou a fazer teatro. No ano seguinte iria ser Édipo.
Quando, passado tempo, estava já no último ano de Faculdade, e se fez no Liceu um encontro para antigos alunos, foi com alegria que se reencontrou com os seus colegas. Quem diria?! O rapazola agora ultrapassava os colegas em altura. Dava abraços fortes e calorosos, falava com segurança e simpatia. O desporto dera‑lhe presença. E o teatro: ensaiava agora Filodemo.



quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires

|Olinda P. Gil

Pediu para me ir encontrar com ela na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires. Jamais a tinha tido por religiosa. Nem eu o sou. Pelo que nem sequer sabia onde era o templo.
Mais tarde fiquei a saber que era apenas por desconhecimento meu. Que passava à porta dele vezes sem conta e acaridava muitas vezes os mendigos que lá costumam estar. Sem, no entanto, já lá ter entrado. Deus não é propriamente o que procuro na minha vida.
Estacionei o carro não muito longe. Ela tinha tido a inteligência de marcar o encontro de manhã, quando o movimento era menor em ruas comerciais. Fora por isso que achara lugar tão depressa.
Entrei no Largo do Chiado. Cumprimentei Pessoa. Observei os transeuntes insólitos que por ali costumam andar. Avistei o centro comercial. No quiosque ao pé da Basílica comprei um jornal desportivo para saber as últimas do futebol, subi as escadas e dei esmola a um cego que tocava maravilhosamente música francesa num acordeão.
Já o contei. Nunca lá tinha ido. E senti o que sinto quando entro em qualquer igreja. Uma confusão por entre as imagens que sou incapaz de reconhecer. A agonia que aquela luz de semi-penumbra vermelha das velas me faz, e o cheiro que me enjoa. À direita, ajoelhada, uma velhota rezava um terço de contas brancas.
À esquerda, ela, perto do altar, observando uma parede. Simples como sempre: uns jeans, uma blusa preta demasiadamente decotada para uma igreja, os ténis, o cabelo solto. Tão longo... Como tinha crescido desde a última vez que a vira. Cada vez mais magra.
Tentei dar um passo para me aproximar, mas antes que o pudesse fazer ela deu pela minha presença. Fazia‑me sempre isto, como se fosse capaz de sentir o meu cheiro.

Beautiful as a goddess
Ugly as a witch

Sorriu‑me. Linda e feia como sempre. E senti‑me triste de por vezes me esquecer que ela existia. Cheguei perto dela, toquei‑lhe suavemente nos ombros e cumprimentei‑a:
Achas que me podes tocar? Quando foi que eu te dei autorização para tal? – A sua voz estava zangada e agressiva, sem que no entanto perdesse a suavidade e sensualidade de uma mezzo.
Nunca. Ela nunca me dissera que a podia tocar. Nem nunca mo deixava. Olhei os lábios dela. Quem seria que os poderia beijar?
Sabes quem pintou este quadro? – Passara agora para um tom de mudança de conversa, como se não me tivesse dito aquilo.
Olhei em frente e vi o que estava a observar. Era uma bela pintura da Última Ceia de Cristo. Não lhe respondi. Por não saber, e também porque pensei tratar‑se de uma pergunta retórica. Mas com ela eu estou sempre enganado...
Eu também não sei. Mas gostava de saber quem teve a ideia de o fazer.
Uma simples ideia religiosa. – Comentei eu Quantas representações da Última Ceia de Cristo haverá neste mundo?
Ela olhou‑me. Primeiramente ofendida. Mas depois o olhar tornou‑se caridoso. Eu era afinal um simples ignorante.
Já reparaste por acaso como Jesus está representado? Com aquele brilho em volta da cabeça como se fosse uma auréola de glória, o pão levantado ao nível do peito parecendo a imagem do Sagrado Coração de Jesus.
Olhei para o quadro. Eu não conseguia perceber o que ela estava a dizer. Porque eu não entendia nada de religião. E agora parecia também não entender nada de arte.
Suspirei. Estava a deixar‑me levar pela sua subtileza. Afinal ela também não sabia nada. Estava apenas a fingir, como, aliás, sempre faz, só para me impressionar. Nem sabia quem o tinha pintado. Dirigiu‑me para um dos bancos.
Porque quiseste que eu viesse ter aqui contigo?
Porque queria! – E deitou‑me um sorriso malicioso de criança. E foi então que percebi tudo.
Deveria conhecer bem o sítio. Apenas estava a representar a sua própria ignorância. Sabe que assim pode jogar comigo e magoar‑me.
Ao mesmo tempo levou‑me para ali porque ela sabe o desejo que lhe tenho, e sabe também que não lhe posso resistir. Num local sagrado, onde sabe que por norma eu não devo tentar persuadi‑la a nada. E até veste um decote para me provocar.

Strong as a soldier
Fragile as a child

Ela sabe que, como um copo de cristal, eu lhe posso tocar e que nesse momento se desfaz em cacos.
Porque me fazes isto? Não vês que eu sofro por não te poder tocar? – Mas ela esboçou novamente o seu sorriso.
Nunca mais te quero ver. – A voz dela parecia repleta de gozo e de prazer. Soltou uma pequena gargalhada que ecoou na igreja. A surpresa e a tristeza devem‑me ter ficado estampadas no rosto. Levanta‑se e vai‑se embora. Na igreja eu não podia correr atrás dela. Seria falta de respeito. Pelo espaço sagrado. Pela oração silenciosa que a velha senhora fazia. Fico.
Provavelmente será melhor assim. Ela é irreal como uma fada. Não pertence ao meu mundo. O melhor será esquecê‑la. Ou viverei eternamente sem entender quando ela está a falar a sério ou a rir de mim.
Talvez tudo isto agora fosse apenas uma brincadeira. Um teste para descobrir as minhas reacções. E ela esteja à porta a sorrir à espera que eu saia.

Sem entender porquê dirijo‑me de novo para o quadro. E tento compreender o que ela me queria dizer. E vejo que, com o pão elevado à altura do peito, mais parecia que Jesus tinha o seu próprio coração nas mãos. Um temor apodera‑se de mim. Naquele momento Ele sabia que ia morrer. Segurava a Sua Morte e oferecia‑A aos seus discípulos.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Liberdade de Escrita

|Olinda P. Gil

O lápis sabia escrever melhor que ninguém: melhor que a esferográfica, que a caneta de tinta permanente, que a antiga pena de outros tempos.
Era um campeão. Vencia todos os concursos organizados pelo papel. Sabia mais sinónimos, adjectivos e verbos que todos os outros...
Conseguia construir mil e uma situações nas suas histórias que provocavam os mais variados sentimentos nas mais variadas pessoas. Fazia os poemas mais belos alguma vez ouvidos, que se perdiam, voando e dançando por entre árvores e canaviais quando ele os declamava.
A antiga pena tinha imensa inveja dele, porque se julgava detentora de toda a sabedoria: por ser mais velha e por ter passado pelas mãos de todos os antigos autores. Era sábia, certamente, mas era a inocência e ingenuidade do lápis que conquistava os corações do mundo. A pena poderia escrever bem e com sapiência, mas jamais como o lápis.
A caneta de tinta permanente era vaidosa e julgava que, por as suas letras serem as mais belas, os efeitos no papel serem os mais esplêndidos, o seu escrever ser o mais suave, era ela quem tinha mais valor. Mas quando as suas palavras se liam toda a beleza que a sua tinta e risco continham desaparecia. Jamais escreveria como o lápis.
A esferográfica, de origem humilde, julgava se ser a maior escritora por ser a detentora de todos os sofrimentos. Porque era uma simples operária ignorada e mal tratada pelos seus patrões, escrevinhava os seus sentimentos num papel rasca. Mas escrevia sempre as mesmas coisas, as mesmas ideologias, as mesmas lutas que todos já estavam fartos de ler. Quanto mais valia a pureza e infantilidade do lápis! Jamais o talento do lápis seria ultrapassado!
Ora houve um dia que as invejosas escritoras se juntaram para difamar o lápis. E resolveram então fazer um concurso inédito: um concurso com um tema: a liberdade. O papel aceitou por não saber o que queriam as malvadas escritoras cegas de inveja. A liberdade era um tema complicado, e o lápis, habituado a coisas simples e com a fraca sabedoria simbólica de uma criança atrapalhar se ia.
A pena falou da liberdade que tinha quando voava nas asas de um pássaro. A caneta de tinta permanente falou da liberdade da água durante o percurso do rio e comparou a à sua tinta escorrendo de dentro de si. A esferográfica falou na liberdade política, na liberdade de ideias que tanto estava habituada. E o lápis não escreveu absolutamente nada. Estava nervoso, chorava, partia se lhe o bico, e porquê? A pobre criança não sabia o que era a liberdade. Deixou então de escrever.
E o tempo foi passando, pouco a pouco, e ele, desesperado por não saber o que era a liberdade, já nem comia, nem dormia. Andava sempre perdido por entre os campos, escondido na escuridão e nas sombras da noite. E tinha vergonha de não saber o que era a liberdade.
Estando o lápis um dia a meditar (que coisa tão estranha para uma criança!) aparece uma pomba que poisou perto dele.
– Sabes o que é a liberdade? – Dirigiu se lhe – Era o modo como vivias antes, feliz e fazendo o que querias: a partir do momento que te impuseram algo, um tema, tu perdeste a liberdade.
Então o lápis deu se ao trabalho e escreveu sobre a liberdade seriamente, analisando a como ainda ninguém tinha feito. E a pena, a caneta de tinta permanente e a esferográfica descobriram então que afinal ainda não sabiam o que era a liberdade.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A filha que tomou conta da casa

|Olinda P. Gil

- Que é feito daquela revista que trouxe da biblioteca? – perguntou ao marido numa segunda-feira de manhã.
- Deve estar na pilha de revistas e jornais.
Mas não havia nenhuma pilha de revistas e jornais em casa. Pelos vistos, a filha tinha resolvido, durante o fim-de-semana, dar uma das suas arrumações, e a pilha de livros e revistas fora para a reciclagem.
- A revista era nova! O que digo agora na biblioteca? Fizeram-me especial favor em deixar trazer a revista para casa.
Não havia resposta para isso, portanto o marido não a deu. Deixou-a atarantada na sala, mudou de divisão. Talvez tenha ido para a casa de banho.
Sempre se dera bem com o marido. Paixão de juventude, sempre serviram de exemplo de casal feliz, entre as outras pessoas. Mas ultimamente ele deixava-a sem resposta, principalmente em conversas em envolvessem a filha. Esta adquirira a mania das arrumações e das limpezas, e dava volta à casa como se fosse dela. A mãe, que não era muito dada aos serviços domésticos, andava a sentir-se à parte das decisões familiares. Podia não ser arrumada, mas ainda era a mãe daquela casa.
- Quando é que ela sai de casa?
- Mas tu queres a tua filha fora de casa?
A resposta do marido demonstrava raiva. Não era bonito desejar que a filha saísse de casa. Enquanto lhe apetecesse estar, deveria permanecer. Assim ditam os costumes meridionais. Mas a verdade é que a rapariga tinha conseguido encaminhar bem a sua vida de adulta. Mas decidira que só sairia de casa quando encontrasse marido. Mas que ideia mais retrógrada! Assim, nunca sairia de casa! Não haveria homem que a quisesse se ela continuasse obcecada com as arrumações.
- Não te importas que ela mexa nas tuas coisas? – Ainda perguntou ao marido. Este respondeu-lhe que não se importava. Mais! Até gostava. Adorou quando ela lhe selecionou a roupa interior, e lhe deitou fora aquilo que já estava muito velho. Também gostou quando ela lhe guardou em separado a roupa de verão e a de inverno, ou quando lhe ordenou as camisas, no roupeiro, por cores.

Não havia como falar com ele a este respeito. Ele estava do lado da filha. Pegou na carteira e foi à rua. Passou num quiosque, comprou um exemplar da revista que desaparecera, para assim tentar remediar o assunto com a biblioteca. No quiosque, um jornal de classificados chamou-lhe a atenção. Talvez fosse altura de procurar um espaço para si própria, uma casa onde pudesse ter a roupa desarrumada e a loiça por lavar.

Olinda P. Gil - Biografia

Olinda P. Gil é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas.

Foi colaboradora do DNJovem, suplemento do Diário de Notícias. Participou com outros colaboradores do suplemento no site na-cama.com e jotalinks. Foi 3º prémio no concurso literário “Lisboa à Letra” em 2004, na categoria de prosa. Mais recentemente foi selecionada no “4º Concurso de Mini-Contos do IST Taguspark”.

Tem textos publicados em várias revistas e colectâneas.

Publicou em edição de autor “Contos Breves”. Está a ser preparada a publicação de um ebook por uma das principais editoras nacionais.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Mesa do Canto – Tchim! Tchim!

|Alexandra Malheiro

Às vezes gostava de não ser tão sensível ao tempo atmosférico, gostava que a chuva não importunasse o que escrevo aqui como se as suas grossas gotas desatassem a empapar-me o papel onde a caneta desliza, gostava de me abstrair, como consigo, embora só às vezes, abstrair-me do ruído do café, mergulhando no meu silêncio interior, esquecendo o som das chávenas sobre os pires, o remoer mastigativo das côdeas de torradas, o sorver das beberagens, nisso há dias em que sou boa, mas nisto da chuva lá fora a entrar-me pela crónica dentro não consigo evitar.

Logo hoje que achei que ia ser uma crónica boa, a primeira do ano, a cheirar a fresco, o meu melhor latão a brilhar, pulidinho, a crónica dos desejos futuros, das premonições anuais, das resoluções irrevogáveis (irrevogáveis?), embora talvez com um nadinha de odor a fósforo queimado, uma perninha a dançar para a melancolia do ano findante, a querer fazer resenhas, os topes mais e menos dos livros, das músicas, dos amores, dos amantes, dos desejos concretizados e os que também não.

Enfim, não fora o chover estupidamente lá fora, que é o mesmo que o chover-me dentro que nisto da chuva a bater contra o vidro da montra do café é coisa contra a qual não me sei defender; não fora, dizia eu, a chuva a ensarilhar-se no papel da crónica, a ensopar tudo, a mudar-me a tinta em borrões azulados, ilegíveis, medonhos; não fora tudo isso e a crónica seria a mais perfeita, a mais bonitinha, a crónica-bébé do Ano a sorrir nos braços da mamã, diria quase um poema, mas… hélas! A crónica, que tinha tudo para ser perfeita, tropeçou no vento, dobrou as varas ao guarda-chuva (sou do Porto, sim, muito obrigada), escorregou numa poça de água e acabou assim, uma folha amassada na beira da estrada. Se por azar a estiverem a ler é porque não chegou a desfazer-se em papas e alguma alminha a salvou da morte certa no bueiro! (Ah! Como eu queria terminar todas as crónicas assim com um ponto de exclamação erecto e feliz, parece uma “flute”, já brindava com ele – ao espanto! Tchim, tchim!)

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Editorial: Um ano

|Luís Filipe Cristóvão

Faz hoje um ano que a Revista Literária Sítio regressou para manter uma existência exclusiva online. Este regresso deveu-se à vontade de um punhado de pessoas, cada uma a partir do seu canto, a imaginar formas de dar espaço público aos autores que gosta de ler. Começámos por procurar os nossos amigos, as nossas ligações, para alargarmos, como sempre foi o destino da Sítio, a demanda para quem acabou por se juntar a nós. No fundo, é para isso que servem as revistas literárias, para encontrar gente que não estava ao nosso alcance conhecer de outra forma.

Mantemos a porta aberta sem grandes pretensões. Não são as linhagens literárias, nem os desejos vazios de ser “alguém” no mundo editorial que nos mantém neste trabalho. É, sim, uma vontade férrea de não desistir do que, parecendo tão natural, vai sendo cada vez mais raro: o viver as coisas pelo simples prazer que elas nos oferecem. Sem deixar que medos nos aterrorizem, sem permitir que ansiedades nos retirem de entre os dedos o que não conseguimos agarrar. A vida segue, na Sítio, dia a dia, com mais uma leitura, mais um projeto de vida de alguém que nos encontra.

Faz hoje um ano, online, fará, em breve, treze anos, que esta caminhada começou. Sempre com a presença do ATV – Académico de Torres Vedras, como base de apoio para uma ideia. Os grandes projetos fazem-se em equipa, mútuo apoio, multiplicada esperança. Há também lugar para ti na Sítio. Bom 2014.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Sem notas de rodapé – Fim de um ano, começo de outro

|Maria João

O fim de um ano e o começo de outro é para mim sempre um momento de balanço. Talvez por feitio, por ser exigente demais comigo e com o mundo, tendo a percepcionar sempre um saldo negativo. Egoísmo, falta de perspectiva, ingratidão. Sublinho a vermelho o que me falta e dou por garantida a longa lista de factores e o curto rol de pessoas que me proporcionam felicidade. Esta é, aliás, uma palavra que raramente pronuncio. Reconheço-a à posteriori, revejo-a naquela situação, invariavelmente passada, pintada com as cores eufemísticas da memória selectiva. Por norma, obcecada com objectivos e cortes de fitas em prazos calculados, grito mentalmente as cinco ou seis determinações que imponho a mim mesma para os próximos 365 dias, enquanto à boa maneira de uma céptica que não quer correr riscos, como as detestáveis doze passas em cima de uma cadeira.

Quis ser diferente nesta passagem de ano. Senti ridícula a Maria João das metas e métodos. Resolução inédita: não ter resoluções. Não pedir a publicação de um livro, uma posição estável no quadro da universidade ou a descoberta de uma pessoa significativa. Sobretudo isto. Resistir à tentação deprimente de pedir felicidade. De gastar, confesso, todas as doze, insuportáveis mas preciosas, passas com este último desejo. Ao invés, sentir-me privilegiada pela noite com amigos queridos. Perante o início de um novo intervalo de tempo que a Terra demora para completar uma volta em torno do Sol, ter a humildade de aceitar que estou a caminho, que ainda estou a caminho. Não vou chegar. Saber que não vou chegar. Perceber que viver é isso mesmo: pôr um pé à frente do outro; conseguir identificar o que de bom nos traz o percurso; lidar o melhor possível com o inesperado e aproveitar a viagem. John Lennon disse-o bem melhor do que eu: “life is what happens to you while you're busy making other plans”. Neste sentido, arriscaria afirmar que a felicidade é o conjunto de momentos que deixamos de reconhecer enquanto permanecemos obcecados pela sua busca. Os meus votos para vós não são, por isso, um “feliz 2014”, mas, sim, os de uma caminhada consciente de si própria, atenta e grata pela sua própria imprevisibilidade.