quarta-feira, 3 de agosto de 2011

“O mundo não tem fim por isso hoje não ponho data”*


|Luís Filipe Cristóvão

a)
A minha voz e a parede da igreja, mais logo, assim seja, pedras e pedras – um luar. Queria contar-te como na aritmética, seria mais fácil, dois três um, mas no olhar, fechado como um cancro, eu tenho trinta e um dentes. E tu?

b)
O outro caso eram as macias romãs deixadas (por ti) em cima do balcão da cozinha e quando eu acordei tocava o telefone, a rádio ainda e sempre na antena dois. Escorreguei com os pés sobre o soalho – rangia, dizias tu que talvez os construtores – e uma minha mão sobre o teu colo, o balcão da cozinha e o meu pijama azul manchados para sempre antes de tomar banho.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Endechas a um amigo perdido


|André Simões

À  memória do Rui 

Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner

            I. Mater Dolorosa
           
            Vergada sobre a montra. Os olhos inchados de lágrimas perpétuas. Não sei o que olhava. Nada. Desesperada. Ali estava. Imóvel. Em que pensaria. Parei uns segundos. Para lhe perguntar por ele. Como estava. Soubera-o naquele mesmo dia. Não tive coragem de a acordar. Vergada sobre a montra. Não olhava para nada. Estátua de sal. Das lágrimas. Mater dolorosa.

            II. A flor
           
            Estavas sentado, em silêncio, como tantas vezes. Apreciávamos a companhia um do outro, sem necessidade de palavras. Bastava-nos a presença do outro. Tinhas pegado numa folha de papel, abandonada sobre a caótica mesa do meu quarto. Dedos ágeis. Minutos depois era uma flor, pequena. Estendeste-ma. Coloquei-a num copo de shot. Ali amareleceu com o tempo e o fumo dos nossos cigarros.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Poemas de Arnaldo Antunes


|Arnaldo Antunes

Pensamento que vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.
Pensamento a mil por hora,
tormento a todo momento.
Por que é que eu penso agora
sem o meu consentimento?
Se tudo que comemora
tem o seu impedimento,
se tudo aquilo que chora
cresce com o seu fermento;
pensamento, dê o fora,
saia do meu pensamento.
Pensamento, vá embora,
desapareça no vento.
E não jogarei sementes
em cima do seu cimento.

domingo, 3 de abril de 2011

A cidade dorme


|Luiz Ruffato

Xuxa despertou, golpes de cassetete na cabeça no tronco nos membros, assustado o grupo espalhou-se sacos-de-aniagem pendurados dos ombros Ai ai caralho! Quê isso porra?! o Zé imaginou interpor-se ao peeme, latiu preventivo, um coturno arremessou-o contra as grades do parque
        
O velho despertou, os tiros nasciam da televisão ou de lá de-fora? Os meninos sempre Aparece não, pai, pode dar problema mas o que ainda a perder? Nervos abalados nem diazepan remedeia. Da ninhada de sete, quatro tombaram à desgraça, incluindo uma filha-mulher. E a esposa, coitada, de desgosto há muito
        
O tenente despertou Caralho, Ivo, pra onde Quieto aí, Valtinho, agora é com nós, anunciou, fedendo a suor, a cara branca do soldado Castilho. E a viatura, engalfinhada com a treva, seguiu rumo a outras cinco, que, amotinadas, aguardavam ansiosas entre galpões abandonados. Em pânico, o Tenente Válter.

quinta-feira, 3 de março de 2011

4 poemas de Luís Maffei


|Luís Maffei

CONTRARIEDADE

Cruel, frenético e exigente é o
tempo,
poeta,
tu não.
Tu és morto e ele
a mim
arma de armas e bagagens e
instrumentos de fuga rumo
(a morte é depois,
é outra coisa)
ao que dura
pouco
dura
menos que o tempo
próprio fosse
justo fosse e ainda à mão
de um dedo à mão
da parte nova que
do tempo
escorre para o mais longe do
tempo tempo fosse.

E a vocação, poeta,
se a morte é depois, se
é outra coisa
é um tempo vivo e tão vivo
que
a mim
sorve de escombros
de coisa nova
beira uma finda
antes da
finda antes do
tempo antes do
abismo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Marta Tchizúri


|Paulo Bandeira Faria


Na altura já escrevia e ela dizia-me: Não percas tempo com isso. Então, dava-me a mão e levava-me do fim até ao início. Conseguia-o num espaço de tempo que nunca lhe bastava, mas a mim me deixava exausto, lavado em suor e a tremer. Depois descíamos até à rua e íamos a uma esplanada frente ao mar beber uma cerveja atrás de outra e comer marisco. Aos garotos que se aproximavam, ela enxotava com palavras que nunca entendi. As águas espalhavam destroços pela praia e as palmeiras estavam pintadas de branco até meio, creio eu que para não subirem os bichos. Não sei. Nunca entendi isto – eu estava aqui apenas de passagem.
O dono da empresa tinha-me dito: Se fores até lá tratar da barragem, sobes mais depressa que os outros. Aquilo é esquisito, mas tu tens cuidado, não vás para a cama sem protecção e vais ver que voltas inteiro. Foi isso que disse. E acrescentou: Para mais, vamos pagar-te em dólares e ali és um rei. Que te parece?
Pareceu-me bem.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O Peso


|Pedro Eiras

           A partir do camião, o caminho é curto: alguns passos cegos e chego. Deposito e volto (um corpo que não sou eu, um corpo que carrego). Subo ao camião, sinto frio. Se atravesso o passeio, contorno as pessoas, pessoas vivas que passam (animadas, as pessoas com as suas pequenas almas).

            É uma manhã de Janeiro, choveu toda a noite, as poças abrem as bocas, mas o céu está escuro, eu atravesso carregado (é cedo para pensar, tenho sono, não sinto o peso, acordo de repente, aqui e agora, sou eu, atravesso o passeio), chego. O Fausto estacionou em segunda fila e deixou os piscas acesos, não vá o diabo tecê-las, por menos do que isso já o Lucrécio foi multado (o mundo acontece, sem parar, ninguém pode parar).

            É uma manhã (frio, o plástico encharca-me de suor, bate-me na testa, beija-me), ainda é cedo mas o trânsito começa (donde? e como se concentra? presto atenção para não ser atropelado). Faz frio (o plástico arde à minha volta na sua brancura suja), se tenho de subir ao camião sinto mais frio, talvez mais frio do que o ar? talvez mais frio do que o ar.