quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Dois poemas de Jorge Velhote


|Jorge Velhote 


FERNANDA GARRIDO: O BREVE LUGAR DAS SOMBRAS

É um lugar a mais a queda incerta
e o medo é o que dás a ver se a luz te fere o olhar
e alucina como brancas são as palavras que depositas
entre a reminiscência dos segredos e o breve lugar das sombras

é uma doença que o sofrimento assinala silencioso
uma máquina dormente que desprende
a fronteira do horror e mutila a desmesura
incessante que acumulas rudemente

é uma paragem onde se adensam sinais
crescem bússolas convergem fracturas        
ou rompimentos a dureza ácida dos mortos
que devoram intermináveis a distância

é em abandono que o olhar se ausenta
e o corpo nos seus meandros se agiganta
 –  mão que ergue a luz e seus vestígios
deslocando espelhos delicadamente

é a esvair-se que se interrompe o escuro
em penumbra e o pólen diurno deflagra em cor
ou grafite que avança em espessura
o ruído amável a desabrigar a casa

é um enigma essa luz jacente fogo ou prece
incólume a queimar a boca intacta
escombros pomares ressequidos
o sílex da cinza que estende os nomes

é perverso o jogo da transparência e da tristeza
que sobre os vidros se abate em lavra
incontida como se na penumbra uma gramática
de dor catalogasse inéditos rumores

é em sufoco e oculta vigilia a fuga
hesitante a crueldade do abandono ou espera
mensurando o insaciável  é uma luz ruindo sobre o futuro
em combustão como lágrimas em lugares improváveis

é com a mão que perscrutas o lume inacabado
a maestria do traço brandamente translúcido
e na textura dos lábios vigias a âncora nítida
o cintilante labirinto do vento aprisionado 

é no olhar que afinas todas as palavras
e oscila o sal até à explosão impensável
e de súbito ergues arbustos e tapumes
e nas cicatrizes despes a mudez como a nudez nos lençóis

é  em cada um que transportamos a morte
e reconstruímos a criança pura rasurando
a ternura incerta e as crateras milenares
da água da melancolia como ofício

é a alegria um epigrama absoluto e rouco
o fulgor do mundo adormecido nas vísceras um inferno
uma toalha de cal e musgo como chão ou barco
um tanque medindo a sofreguidão do tempo

é a eternidade que se abriga quando interrompes o vento
desenhas o gume da ruína ínfima a árvore que resvala
na sua cor a folhagem do céu onde deus
acolhe a noite e murmura

é no silêncio e na febre que redimes
o enigma insuportável da luz
e afastas o esquecimento

Senhora da Rocha, Agosto 2012

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Mesa do Canto – Lições avulsas de literatura


|Alexandra Malheiro 

Escrevo-vos da mesa do canto do meu café. O meu café é na baixa do Porto, tem uma montra larga de onde vejo o sol, ou a sua ausência. Daqui vislumbro a granítica sombra da cidade seguindo com o olhar a  esquina onde o eléctrico curva chiando o seu doce gemido, lembrando-me que é pouco mais que uma memória actualizada para turista ver.

A minha mesa de canto é onde me sento e medito, riscando estas palavritas e ideias que convosco conto ir partilhando. Assim a musa, a pena (que a bem dizer é esferográfica) e a memória me ajudem, dar-vos-ei conta do que vejo e sinto desde a montra do meu café. Contar-vos-ei também dos que aqui passam, entre eles alguns amigos que, sentando-se à minha mesa, partilham cafés, torradas e ideias.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Quatro poemas de Rui Tinoco


|Rui Tinoco

nesta fotografia sou
eu, sentado em frente
do poema. era novo:
a ingenuidade desfazia
os meus versos como
se fossem brinquedos
de criança. ainda
assim, quis a recordação.
ficar na imagem foi
uma forma de continuar
nesse presente.
é por isso que regresso
aqui, auxiliado pelo
olhar fotográfico,
para reviver as emoções.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ray Loriga

|Rui Malheiro

"Gosto de Jean-Luc Godard e de Ingmar Bergman. Não gosto de grão-de-bico. Gosto de Espanha. Não gosto de Espanha. Gosto muito de França, porque a conheço muito pouco. Gosto da comédia, inclusive por cima do respeito, porque como dizia Larry Flynt, famoso pornógrafo, o nosso sistema está criado para assegurar as liberdades dos piores de nós. Gosto dos meus amigos. De ler e de beber com os meus amigos. Não gosto nada que o Papa vá num papamóvel, porque se Cristo tivesse tido guarda-costas não teria existido Cristianismo. E falando de Cristo, Lenny Bruce, o irreverente e tristíssimo cómico norte-americano, dizia que se Cristo tivesse nascido no Texas no século XX, e não em Jerusalém há dois mil anos, os católicos usariam cadeiras eléctricas à volta do pescoço em vez de cruzes"
(Ray Loriga)


"O pior de tudo não são as horas perdidas, nem o tempo por detrás e por diante, o pior são esses espantosos crucifixos feitos com pinças para a roupa". Com esta frase, Ray Loriga (Madrid, 1967) principia Lo peor de todo (1992), a sua primeira novela, rapidamente conotada com a "Geração X" de escritores espanhóis, cujo estilo transpirava álcool, drogas e rock and roll, rótulo que Ray Loriga sempre renunciou, ao afirmar que nunca ambicionou pertencer – ou deixar de pertencer - a qualquer geração.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Ecos


Depois de termos dedicado as primeiras semanas do mês de janeiro a três autores de poesia - Jorge Melícias, Joana Serrado e João Luís Barreto Guimarães - fechamos o mês apresentando “Ecos”, um momento mensal em que abrimos o nosso espaço a múltiplas vozes. Sempre coincidindo com o final/início de cada mês, dedicamo-nos a apresentar algumas propostas que nos vão chegando, bem como a pensar um pouco o momento daquilo que vamos construindo na Sítio.

Esta semana, começamos por convidar Rui Malheiro, mais conhecido como autor de livros sobre futebol, a partilhar o seu fascínio por Ray Loriga, num pequeno ensaio que toca os dois primeiros livros do autor espanhol. Depois lemos quatro poemas de Rui Tinoco, um bracarense que vai marcando presença na blogosfera com o Ladrão de Torradas. Na quarta-feira, Alexandra Malheiro fala-nos da sua “mesa do canto”, enquanto na quinta-feira regressamos à poesia com dois longos poemas de Jorge Velhote.

Para marcar o início do mês de fevereiro, lançamos o nosso editorial, fechando os “Ecos” desta semana com um perfil de Gonçalo M. Tavares pela mão de Manuel A. Domingos. Obrigado por nos acompanharem por esta aventura de construir um “sítio” para a literatura. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Em trânsito


|João Luís Barreto Guimarães

Metaxu

No
terminal principal do aeroporto de Frankfurt
um clérigo franciscano arrisca
por entre o pecado. Pobre
obediente e
casto. Seu hábito cor-de-terra parece
já levitar (preso ao solo
pela mala onde traz
a vida inteira).
Estamos ambos de passagem. Ele
para a eternidade. Eu para
a vida efémera.


In você está aqui, Quetzal

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A marca de João Luís Barreto Guimarães


Recensão do livro você está aqui 

|Luís Filipe Cristóvão

Depois de em 2011 ter publicado a sua Poesia Reunida, João Luís Barreto Guimarães volta aos originais com a publicação de você está aqui, numa edição da Quetzal.  

Um dos poemas que pode ser visto como peça central deste volume traz o título “Bicicleta para o infinito”. Escolhido para destaque na abertura do livro, o poema aparece, na sua forma completa, no final do volume. Neste poema, pressente-se a ideia de que a viagem é um lugar imóvel

pedalo
pedalo
não saio do mesmo sítio.

que se faz na escrita

pedalo atrás do manuscrito

através da observação dos outros

gosto de os ver errar atrás de logros distintos

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Meditação em Váci Utca


|João Luís Barreto Guimarães

Ao Rui Lage

A tarde: passei-a a assistir à guerra
pela televisão. Nenhum dos nossos está em falta
enquanto nesses lugares se contam
desaparecidos. Ninguém
da nossa geração esteve na revolução. Outros
(antes de nós)
fizeram as nossas guerras (quando
chegámos aos dias já a guerra havia sido
chegámos para lutar tinha
o ditador caído). Para nós só sobejou outra
sorte de batalhas (levantar cada manhã o
peso imenso das pálpebras)
correr por um lugar na trincheira
do balcão.
A tarde inteira assisti à guerra
pela televisão (deste lado do ecrã não se
passa frio
ou fome). Sirvo-me um copo de vinho num
gesto despreocupado enquanto assisto em directo
ao estrear de outra batalha. É terrível
quando cai a cor do vinho tinto
no branco puro
da toalha.


In você está aqui, Quetzal
Disponível nas livrarias a 25 de janeiro de 2013.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Verdadeiros inimigos


|João Luís Barreto Guimarães

Estou em idade de ter verdadeiros inimigos.
É quase inevitável. Parece-me mesmo
normal. Já erro
pela cidade há demasiado tempo. Estranho
era que ninguém tivesse reparado
em mim. É esta a idade de ter
verdadeiros inimigos
é sabido que possuo predicados invulgares
(sou visita de casa da angústia e
do tumulto
há muito que trato por tu a dúvida e a inquietação)
é fácil que sobrevenha quem sinta invídia
de mim. Cheguei à idade de ter verdadeiros
inimigos (prometo
alimentá-los com novos conseguimentos:)
apenas reclamo para mim um
direito natural.


In você está aqui, Quetzal
Disponível nas livrarias a 25 de janeiro de 2013.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Uma viagem pela palavra


Entrevista a João Luís Barreto Guimarães

|Clara Henriques
    

Em toda a viagem há um momento de pausa. Um lugar onde se encosta a estrada já percorrida e se encara de frente o que há-de vir. Em todo o poema há uma vírgula por mudar, uma sílaba por fazer. Também João Luís Barreto Guimarães sentiu que era altura de parar, olhar e voltar a “re-parar”. É esta a viagem que surge agora relatada no seu mais recente livro “você está aqui”, que chega às livrarias no próximo dia 25.
À conversa com a Revista Sítio, o autor confessa estar numa fase em que se sente, cada vez mais, dentro da vida.
É talvez este o tempo de chegar.


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Bicicleta para o infinito


|João Luís Barreto Guimarães

Ao
assentir os 40 subi a uma bicicleta das que
pedalo
pedalo
não saio do mesmo sítio. Já me disseram:
assim falho a experiência real (o
vento frio na face
o marulhar magnífico) mas
pedalando à janela sobre a marginal de Leça
gosto de os ver errar atrás de logros distintos
(um fato de treino rosa
a juventude perdida) cá de cima eu
pedalo atrás deste manuscrito
(escrevo
rasuro
reparo: ) a meus pés
outro infinito.



In você está aqui, Quetzal
Disponível nas livrarias a 25 de janeiro de 2013.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Um ponto no mapa (ou talvez um poema)


Pequeno pseudo-ensaio vagamente descritivo da obra de João Luís Barreto Guimarães. 

|Alexandra Malheiro

Alain, comentando Válery, diz-nos que "todo o pensamento começa por um poema". Lembro-me disto sempre que leio João Luís Barreto Guimarães, ainda que um pouco ao contrário, acreditando que nele os pensamentos acabam tornando-se poemas. Poemas como pensamentos, como um apontamento que tiramos ao andar pela rua, ao observar. Como se estivéssemos a ler um livro e fizéssemos uma anotação na margem, um sublinhado, João Luís faz o mesmo com o que observa, com as mais comezinhas ocorrências quotidianas como o trilho de óleo que o carro deixa na garagem e faz depois prendê-las ao seu próprio pensamento, com frequência uma divagação sobre uma memória poética, alguma coisa que leu, um quadro de viu, uma cena de um filme. Tem sido assim em todos os seus livros, um jogo metonímico e de linguagem que começa nas cenas quotidianas mas que nos leva muitas vezes por uma via erudita, às vezes de menor compreensão para os menos viajados. Quando falo em viagem digo-o, também, de forma lata aproveitando a amplitude da palavra seja a viagem física que fazemos a outros lugares seja a viagem que os livros, a arte, enfim, a cultura nos proporciona.


sábado, 19 de janeiro de 2013

39ª Maneira de Amar: anunciar (5:8)

|Joana Serrado


Hadewich consegue através do seu crescimento no amor adquirir a plena autoridade para falar, para anunciar as inscrições que leu no rosto do amado. Na sua feminilidade nunca abandonada, a Beguina relembra-nos aqui o seu grande mandamento, essa sua saudação que
também ela é a expressão da sua eterna preocupação para com a comunidade em que está inserida.
      A sua autoridade está conquistada, a sua preocupação é de mestra, de guiar as suas pequenas Beguinas para que elas próprias possam constituir uma vanguarda da prática íntima do amor justo. Assim se constata como é necessário boa companhia para iniciar a peregrinação do amor: a sagrada comunidade, da qual toda a jovem beguina faz parte. Recuperar o que é seu, no direito da dádiva divina, mas também como essa dádiva se opera transversalmente, passando do meu para o nosso.


In Guarany, 4águas, 2012.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

tus dedos en mi vísceras

|Joana Serrado


Doem-me os cafés da minha cidade
os que fecham ao domingo
os que fecham para obras
os que fecham para férias
os que fecham indefinidamente
os que fecham por fechar
os que não precisam de fechar e se trespassam trespassando-nos.
Sei que vou morrer com eles
sei que vou morrer sem eles.
Sei que o teu corpo é um corpo perecível
corruptível.
Sinto a tua morte nos meus ossos


e não consigo salvar-te.
Sinto a tua frigidez
a tua alvura apodrecida
a maneira como os teus maxilares se adormecem um no outro.
Só o perfume das violetas que brotam do teu corpo me faz respirar.



In Guarany, 4águas, 2012.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

13ª Maneira de amar: abraçar ou prender (8:3)


|Joana Serrado

O abraço é a condição de possibilidade de toda a união. É a maneira como, a seu tempo veremos, a Amada fica prisioneira da sua própria essência, que é o amor, mas também da Liberdade. É a extrema dádiva do amor que é o corpo – de um corpo que se preparou para o
amor, para a doçura, para o conhecimento total. Não há abandono da criaturalidade, pelo contrário, esta é um imperativo para amar.
Eis-nos no âmago do experienciar amoroso (mística): Hadewijch utiliza dois verbos distintos – abraçar e prender – para mostrar os dois pólos da vida humana: o prazer e a dor. Entre o experienciar – sentir – e o experienciar – provar: toda uma dinâmica experiencial baseada nos sentidos se concatena. Ser-se Cristo na doçura (ou natureza), mas também nas fraquezas, nas imperfeições, as quais, não sendo pecado, mostra o imperioso mandamento de viver e morrer com Cristo. Experienciar é despertar todos os sentidos. É prender, abraçar a criaturalidade.


In Guarany, 4águas, 2012.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Os Estatutos do Amor


|Joana Serrado

1. (Direito à Possibilidade)
Que todo o abraço seja tão contundente como o teu olhar.
Que todo o olhar seja tão emergente como a tua palavra.
Que toda a palavra seja tão urgente como a tua mão nos meus cabelos.

2. (Direito ao Espaço e ao Tempo)
Que haja tempo em bloco e não ruptura de tempo.
Que a minha ilha seja teu porto e teu porto nos seja santo.
Que a comunhão se faça tanto no beijo como no silêncio.

3. (Direito à Fecundidade)
Que do teu umbigo nasçam flores com seiva de primavera.
Que eu possa viver do seu perfume e sobreviver à sua acidez sem as
desflorar.
Que o prazer não precise de extrema – unção mas que a unção do
prazer seja extrema.

4. (Direito à Perfeição)
Que a palavra “amor” nunca seja proferida em vão.
Que o amor venha já feito, perfeito e não por fazer.



In Guarany, 4águas, 2012.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

XXI


|Joana Serrado

XXI
____________:Debaixo do viaduto há uma gráfica e uma loja de latas. Vendem-se mais coisas, das quais nunca percebi a utilidade: jarras, vidros de todas as espécies, pisa-papéis, caixas, objectos que nunca vira nem soubera o nome. A loja arrasta-se para dentro, com estantes e prateleiras às quais não se tem acesso. Há sempre promoções numa moeda que já não existe. A loja pede baixinho para se trespassar. O seu mundo já não é deste reino. A gráfica, por baixo,
dá sinais de vida, ocasionalmente, mas nada perturba o trespasse da companheira de cima. Entro lá como uma criminosa. Compro uma lata verde, onde poderei guardar o meu poema de amor. Poderia também comprar uma jarra ou um pisa-papéis – deve fazer falta, talvez, para guardar uma violeta e impedir que as cartas de amor esvoaçassem pela janela. Poderia simultaneamente salvar a loja do trespasse e escrever um poema de amor? Ou poderia comprar duas, três, cinco latas? Dizer ao dono que poderia transformar a loja numa loja de latas, de todas as cores, para aquela multidão que gritava contra o edifício, para todos eles escreverem e nela guardarem um poema de amor? Mas ele nem sequer me ouve, avia-me o pedido e desaparece por entre as prateleiras quase despidas para nunca mais ser visto.
      À saída está um bêbado (será o velho do jardim?). Vive à porta da loja que vai fechar. Todos os dias assiste à promoção das latas e dos pisa-papéis. 
       E aperto a minha lata contra o peito e corro debaixo do viaduto.


In Guarany, 4águas, 2012.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

IV - Guarany


|Joana Serrado


IV
GUARANY: Ao descobrir a Avenida, subindo-a ao ritmo da respiração, vi-o. Mesinhas solitárias esperavam por mim. Um empregado velho branquejante se arrastava balouçando o seu disco de metal. O café vazio, as paredes translúcidas – aqui escreverei o meu poema de amor. Mas a segunda vez que lá passei, armada de caneta e papel, o Guarany estava camuflado por jornais. Só o ferro dourado, por entre novidades atrasadas, era indício de ouro. Todas as outras vezes que se seguiram, quando me arrastava para outros cafés, o Guarany continuava fechado, sempre fechado, fechado para férias, fechado para descanso do pessoal, fechado indeterminadamente. Como seria possível? Esperava que os empregados se dirigissem para a porta, retirassem os jornais que cobriam a vitrina, e que tudo voltasse como dantes, por um dia! e que eu lá escrevesse o meu poema de amor. Passados dois anos, hoje mesmo, cambiaram o aviso: Por favor, não afixar cartazes. Agradecemos a sua compreensão. A gerência. Espreitei pelo papel (nunca o deveria!): tintas, as mesas desaparecidas, o balcão irreconhecível, o criado branquínio transformado em pó branco. Tintas. tenho medo. O meu poema em obras: A gerência agradece a compreensão.


In Guarany, 4águas, 2012.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Joana Serrado


Joana Serrado nasceu em Aveiro em 1979 e estudou filosofia, neerlandês e teologia em Coimbra, Porto, Berlim e Groningen. Foi Fulbright Visiting Fellow na Harvard Divinity School em 2010. Desde 2012 é investigadora em História do Misticismo e Teologia Feminista na Universidade de Oslo, onde também ensina Literatura Lusófona. 

sábado, 12 de janeiro de 2013

É chegado o tempo do abate

|Jorge Melícias



É chegado o tempo do abate.

Sobre a liça
disponho a mansidão.

E que o horror não exima a beleza.


felonia, Cosmorama, 2013

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O horror era então a sua própria liturgia

|Jorge Melícias



O horror era então a sua própria liturgia.
E a carne levedava
com convicção nas lanças.

Tempo de uma piedade sem reservas,
anterior a qualquer axiologia.

E sobre a paisagem
ver
não prodigava ainda
a ritualização do remorso.


felonia, Cosmorama, 2013 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A sedição é o meu único preito

|Jorge Melícias



A sedição é o meu único preito.

Sob o induto da temperança
trabalho o aleive,
a lenta orquestração do horror.

À minha frente abre-se a eversiva
contemplação dos séculos.

E toda a cegueira por cauterizar.


felonia, Cosmorama, 2013

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A deus a constância do medo

|Jorge Melícias



A deus a constância do medo,

o modo como a temperança
se divide pelo jugo.

Eu exerço o flagelo.
Calibro os dedos no horror.


felonia, Cosmorama, 2013 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

As pás do remorso não porfiam


|Jorge Melícias

As pás do remorso não porfiam
quando todo o gesto
rasura a compaixão.

É essa a minha arte: fixar sobre a paisagem
o despojamento
que o horror persegue.

E que nenhum indulto ofusque o meu triunfo:
eu a encimar o luto
ponho grinaldas. 


felonia, Cosmorama, 2013

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ergo-me da refrega

| Jorge Melícias



Ergo-me da refrega

e tomo posse sobre o excídio.

Eu vi a minha mão em tudo o
que se demarca da piedade. E comovi-me. 



felonia, Cosmorana, 2013

domingo, 6 de janeiro de 2013

Jorge Melícias


Jorge Melícias nasceu em 1970. É autor de vários livros de poesia, como iniciação ao remorso; a luz nos pulmões; o dom circunscrito; incŭbus; a longa blasfémia; disrupção – 1998/2008 (poesia reunida) e  felonia/agma, este último com data de publicação de janeiro de 2013 e de onde foram selecionados os poemas que apresentaremos esta semana.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Estar de volta


|Editorial

Estar de volta como quem sempre ficou. É esse o pensamento que me traz aqui. Um pé dentro de 2013 e a revista Sítio de volta. Para tanta conversa de crise, de falha, de falência e desistência, voltar a levantar a cabeça e acenar, “ei, estamos aqui!”.

A revista Sítio de volta, não ao papel, à existência. Para não enfrentar sem resistência os custos de vida dos objetos. Abrimos aqui espaço ao lugar onde pretendemos ficar. Para começar, chamando uns quantos amigos à conversa. A Sítio estende os braços e reúne à volta da mesa virtual gente que acrescenta.

Em breve, do formigueiro de ideias que nos ocupa, iremos fazer vida diariamente neste blogue. Venham connosco, fazendo parte de um sítio que é também vosso.