quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Uma métrica especial


Entrevista a Luis Henrique Pellanda – parte 3

|Carolina Vigna-Marú


Terminamos a publicação da entrevista a Luis Henrique Pellanda falando da sua música e da banda Woyzeck (na foto, Pellanda aparece em primeiro plano). Ficamos também a conhecer uma das músicas produzidas pela banda que conta com Pellanda na voz.

 Qual a diferença, além das questões técnicas, é claro, entre escrever um roteiro, um conto, uma música? Exigem momentos de vida ou emocionais diferentes ou é apenas um cumprir de agenda: agora preciso/quero fazer isso, amanhã faço aquilo?

Acho que a música sempre foi algo mais emocional. Já escrevi bastante música, mas com ela nunca me senti envolvido num trabalho profissional ou mesmo intelectual. Não estou dizendo que os músicos não trabalham com o intelecto, por favor. Comigo é que era assim, uma espécie de desafogo alegre, algo teatral, envolvendo voz e movimento, dança e corpo, algo que exigia minha presença física num palco e certa desenvoltura de ator, uma máscara, no bom sentido. Não era eu, era o que eu gostaria de ser naquele momento de celebração. É um troço prazeroso, mas cansa. Cansa, mas quando você para, faz falta, e isso é evidente, pois tudo que nos dá prazer, quando acaba, faz falta. Hoje não trabalho com isso, apenas me divirto com isso, e muito raramente. É questão de prazer, não envolve agonias produtivas.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Não posso viver aqui sem escrever sobre essa vida


Entrevista a Luis Henrique Pellanda – parte 2

|Carolina Vigna-Marú



Na segunda parte da entrevista a Luis Henrique Pellanda, começamos por falar da sua literatura, passamos pelo jornalismo e acabamos por entrar na intimidade do autor, buscando  aquilo que é o seu posicionamento perante o ato de escrever.

 Em O macaco ornamental, o único conto que não é escrito na primeira pessoa é “São Menécio”, que narra, justamente, um homem com a capacidade de sentir a dor dos outros. A alteridade é isso, sentir a dor dos outros? Ainda, mais ou menos no mesmo tema, na maioria das vezes seus personagens estão lidando com as questões masculinas modernas, pós-feminismo, pós-divórcio, pós-tudo, sem ter um pingo de chauvinismo neles, ao contrário de muitos outros autores brasileiros. Você se preocupa com isso, acha que seus livros podem ser uma contribuição para a igualdade?

Pergunta boa, nem sei por onde começar a responder. Gostaria de ser menos vago, mas acho que vou fracassar. Vamos lá. Em relação a meus personagens, faço uma confissão pessoal: tenho certa tendência a gostar dos outros. Sim, é um defeito, não é? Um tara, sei lá, uma fraqueza. Vai que sou perverso? Mas gosto dos outros (não de todos, é claro), e me sinto bem quando consigo me relacionar com alguém. Comemoro, acho um milagre da boa vontade humana — isso existe? Pois tendo a retratar meus personagens a partir dessa minha maneira de viver em comunidade. Quero também me relacionar com eles, apesar de não concordar com tudo que fazem ou dizem fazer. Talvez eu sofra de algum tipo doentio de delicadeza. Dia desses, o João Gilberto Noll disse que me considerava um “escritor delicado” e até perguntou se o termo me ofendia. Muito pelo contrário, achei ótimo, talvez eu deva assumir isso, como quem se assume viciado em álcool, por exemplo. Sou um bêbado, sou um delicado. Pois assumo (só a delicadeza, deixo claro, pois não bebo faz um bom tempo). Sobre contribuir para a igualdade escrevendo, olha, acho que é algo bonito, importante e bem difícil de se fazer. Não acho que devemos escrever sem alguma motivação relevante para nós, sem um objetivo, sem pretensões. Acreditar nisso me parece uma espécie de falsa humildade, uma soberba doida. Então, se um dia alguém me convencer de que algo que escrevi efetivamente ajudou a diminuir as diferenças entre os seres humanos, e as populações humanas, e as nações humanas, puxa, acho que ficarei bastante feliz. Quem não ficaria?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Não me preocupo com a naturalidade


Entrevista a Luis Henrique Pellanda – parte 1

|Carolina Vigna-Marú



Luis Henrique Pellanda é escritor, músico e jornalista. Ou seja, é alguém que pode ser encontrado de todos os lados da barricada onde a palavra está presente. Numa entrevista que se prolongará por três dias, quisemos saber um pouco de cada uma das vertentes do seu trabalho. Assim começamos pelo cruzamento da entre conto e crónica, fugindo rapidamente para o que acontece com a literatura na internet.

Seu primeiro livro, O macaco ornamental, tem “contos” escrito acima do título. Já o Nós passaremos em branco, foi publicado na coleção “Arte da crônica”. Então, tenho grande esperança de você resolver uma pendenga que sempre surge em conversas sobre literatura: qual a diferença entre conto e crônica?

Não sou bom nisso de corresponder a esperanças. Acho que fico devendo, pois vem se tornando cada vez mais difícil fixar diferenças dessa natureza, ou mesmo estabelecer um pequeno conjunto de regras que sirva a todos os autores, cronistas ou contistas, da mesma maneira. Até o romance tem enfrentado suas crises de identidade: o texto mais ligeiro, nem cem páginas de fragmentos, já está apto a ganhar prêmios específicos para o gênero. O que difere, hoje, o romance e a novela? Pelo jeito não há nem régua nem estatuto universal. Falando do que faço, o que posso garantir? Que vejo distinções muito claras pelo menos entre os meus contos e as minhas crônicas. Nestas, o narrador obrigatoriamente se confunde com o autor; ou seja, sou eu. Cronista, apesar de usar recursos narrativos próprios da ficção, converso diretamente com o leitor, outra entidade real, até prova em contrário. Já nos contos, mesmo quando em primeira pessoa, dialogo com outro personagem inventado. E o narrador obviamente não sou eu. Nas crônicas, falo de eventos cotidianos ou pequenos (tudo é pequeno, na verdade), mas prefiro encontrar neles alguma característica de exceção, mesmo que essa exceção esteja na minha maneira de interpretar ou dirigir o que narro. Nos contos, não busco o cotidiano, nem a rua, a praça, a cidade. Sou um contista de personagens, acho, quase um autor de monólogos literários.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

5 poemas de Cláudia R. Sampaio


|Cláudia R. Sampaio

ninguém conhece o infinito

A culpa é tua se dizes sempre
o mesmo nome
se tens sempre a mesma idade
e a mesma casa, se quando
revelas a tua identidade
é impossível que o céu te exploda
e que te acudas de incertezas
e de novos buracos.
A culpa é tua se ainda não
morreste, se nunca te
atrincheiraste à espera
de uma bomba que te mude os olhos
se nasces sempre no mesmo dia.
Não te aflijas.
Estás sempre a tempo de não
dormires na mesma posição
(com a mão aberta em esmola)

Também me custa
sobreviver a estes dias
mas o que ainda não chegou
é infinito.

A intervenção divina no roque português

|Luís Filipe Cristóvão

No dia em que é lançado o novo álbum de Samuel Úria, O grande medo do pequeno mundo, a Revista Literária Sítio associa-se a esse acontecimento com a recuperação de uma conferência apresentada no Congresso Poéticas do Rock, no dia 8 de abril de 2009, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 


1 – Igrejas Cheias do Domingo

Não é muito comum encontrar numa faixa de um álbum de roque português o refrão “Igrejas cheias ao domingo”. Aliás, mais que incomum, durante muitos anos, acharíamos intolerável que isso acontecesse (acredito que boa parte de vocês continua a achá-lo intolerável e pergunta-se, talvez com alguma propriedade, porque é que eu estou aqui, porque é que eu estou a falar disto). Mas, partindo do princípio filosoficamente indiscutível de que Deus está em todo o lado, não poderíamos pensar que ele deixaria de imiscuir-se num meio tão dado a endeusamentos como o roque português. Então, o que torna possível repetir este refrão em concertos por todo o país? Tiago Guillul. Foi ele o primeiro músico a assumir um posicionamento religioso no seu roque. Mais do que assumir, alias, parece claro, desde o primeiro álbum, que tentou aperfeiçoar um projecto de afirmação do universo Flor Caveira, enquanto uma produtora musical independente e protestante, nos princípios e na mensagem (embora sem exclusividade). Logo, mais tarde ou mais cedo, já deveríamos saber que isto acabaria mesmo por acontecer.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Poetisas como poetisas


Recensão do livro Mulher Ilustrada de Maria Sousa.

|Manuel A. Domingos



Quando se caracteriza determinada forma de poesia com o adjectivo de feminina, isto é, poesia feminina, muitos são aqueles que saltam nas suas cadeiras. A poesia não tem género. É como os anjos, dizem. No entanto, a realidade é muito diferente: existem poetas e poetisas; quer se queira ou não, isso reflecte-se na poesia que escrevem. É claro que há poetas que escrevem como poetisas e poetisas que escrevem como poetas. Há, ainda, poetas que escrevem como poetas. E poetisas que escrevem como poetisas. Maria Sousa (1969) pertence a este último grupo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Aprendi a escrever na Póvoa

| Michael Kegler



20.02.2013, 10:00 - Frankfurt - Porto. Não é o mesmo voo de há dez anos, quando fui convidado pelo, então, pequeno festival “Correntes d’Escritas” num lugar a norte do Porto, de que já tinha ouvido falar.

Por sugestão do Rui Zink, tinham-me convidado para falar numa “mesa” sobre a divulgação da literatura em língua portuguesa no exterior, o que, na minha qualidade de tradutor e dono de um website de crítica (melhor dizendo, divulgação) literária, realmente fazia. Mas, hoje, à distância de dez anos, eu com mais cabelos brancos e o festival já com renome a nível mundial, vejo como aquilo que fazia na época era pequeno  e como as coisas foram evoluindo a partir daí.

Passageiro do fim do dia


Excerto do livro Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, que será apresentado hoje nas Correntes d’Escritas.

|Rubens Figueiredo


Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo — e até meio sem querer. O que também ajudava. Motivo de gozação para uns, de afeição para outros, ali estava uma qualidade que, quase aos trinta anos, ele já podia confundir com o que era — aos olhos das pessoas. Só que não bastava. Por mais distraído que fosse, ainda era preciso buscar distrações.

Pedro abriu com a unha a tampinha da parte de trás do rádio minúsculo e trocou a pilha. A música foi devolvida, tão forte quanto os chiados e mais alta do que os barulhos da rua. Ele tinha enfiado os fones nos ouvidos. Estava de pé, num fim de tarde, colhido numa diagonal rasante por um sol cor de brasa que se recusava a ir embora e se negava a refrescar. Um sol quase colado à sua testa e também à testa de todos os outros, que se mantinham em ordem numa fila, à espera do ônibus no ponto final.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Uma clareira no mar


Entrevista a Aurelino Costa

|Luís Filipe Cristóvão


Em semana de Correntes d’Escritas, decidimos procurar uma das figuras emblemáticas deste encontro. Aurelino Costa é um autor da Póvoa de Varzim, que desde o primeiro momento tem feito parte do programa do encontro, funcionando, tantas vezes, como um um representante informal do poder que este evento tem na cidade.

Nascido em 1956, Aurelino Costa é poeta e diseur, sendo que na edição de 2013 voltará a estar nas Correntes para apresentar o seu novo livro, Domingo no Corpo, da Deriva Edições. Procurando encontrar as origens deste encontro e as sensações que ele desperta nas pessoas que mais intimamente o vivem, não será de estranhar, para quem conhece Aurelino, que a entrevista rapidamente se transformou, ela própria, num poema. Como sublinha o autor, a certo passo, “os encontros podem criar uma clareira no mar”.

Enciclopédia da Estória Universal – Arquivos de Dresner


Excerto do livro Enciclopédia da Estória Universal – Arquivos de Dresner de Afonso Cruz, que será apresentado hoje no Correntes d’Escritas

|Afonso Cruz


Magalhães estava errado
Gomez Bota foi um famoso explorador do século xix, que viajou por todo o mundo descrevendo com informalidade povos e costumes. Morreu já no século xx, num hospício em Inglaterra, depois de uma vida inteira dedicada a reunir provas de que a Terra não é redonda. Estes são alguns extractos do seu diário, que foi publicado com o título Magalhães estava errado:

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação


Excerto do livro O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação, que será apresentado hoje no Correntes d’Escritas

|Luís Cardoso


Prenda
– Eu sou a tua prenda
Carolina teria ouvido essas mesmas palavras se me fosse dada voz, mas as sandálias foram feitas para ficarem mudas e todavia levam-nas para todo o lado como se fizessem parte de um corpo inteiro.
Eu sou a do lado esquerdo, onde bate o coração, falo também pela minha irmã gémea, a do outro lado, que dizem ser a da sensatez. Deve ser por isso que se mantém silenciosa. Ralha-me e manda -me calar com uma voz oculta a que chamam consciência.

Correntes d’Escritas 2013 – o programa



Mesas de debate, lançamentos de livros, cinema, teatro, entre muitos outros momentos a não perder, entre hoje e o dia 23, constituem o Correntes d’Escritas 2013, evento que conta com a participação de cerca de 60 escritores de expressão ibérica.

Já esta noite, as atenções concentram-se no Hotel Axis Vermar, onde será apresentado o primeiro livro do certame, O Ano em que Pigafetta completou a Circum-Navegação, de Luís Cardoso (do qual publicamos um excerto na Revista Sítio), seguido de Palavras em Desassossego, uma leitura de poemas pelo Colectivo Silêncio da Gaveta.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quem vencerá o Prémio Literário Casino da Póvoa? – 2


Apresentamos hoje os outros quatro nomeados para o Prémio Literário Casino da Póvoa. Fique a conhecer um excerto da obra dos poetas José Agostinho Baptista, Armando Silva Carvalho, Luís Filipe Castro Mendes e Bernardo Pinto de Almeida.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Quem vencerá o Prémio Literário Casino da Póvoa? - 1


Esta semana damos destaque à programação do Correntes d’Escritas, Encontro de Escritores de Expressão Ibérica que decorrerá na Póvoa de Varzim entre 21 e 23 de fevereiro. Hoje e amanhã visitamos os oito nomeados para o Prémio Literária Casino da Póvoa. Os primeiros quatro nomeados, de cujas obras a concurso apresentamos um poema, são Ferreira Gullar, Manuel António Pina, Hélia Correia e Fernando Guimarães.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

O coice da Baikal


Recensão do livro Maria dos Canos Serrados de Ricardo Adolfo

|Luís Filipe Cristóvão


Ricardo Adolfo já havia mostrado não ter par na literatura que é publicada em Portugal. Primeiro que tudo, habita um território demasiado perigoso, onde a maioria dos editores não costuma demonstrar coragem para entrar. Depois, porque a literatura suburbana que nós conhecíamos, não se escrevia assim.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Moose

|Flávia Rocha


O vento estático de uma pintura de floresta de pinheiros,
a desolação de um posto de gasolina sob chuva fina,
o gelo negro camuflado no asfalto, a estrada ao longo
de um canyon estupidamente magnífico: floresta, chuva,
gelo, canyon: a minha floresta, chuva, gelo, canyon.
Um alce alto como uma igreja talvez atravesse perto
do meu ônibus na névoa, e tudo parecerá bem.  

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Cruzamento

|Flávia Rocha


São Paulo, 26 de janeiro, 1973


A fome sempre renovada na casa:
biscoito para molhar no café.

A porta dos fundos deixada aberta
pela mão neutra da empregada.

Meu avô na calçada estreita
de uma cidade procurando uma vila.

Meu avô com seu largo guarda-chuva
no dia mais seco do ano.

Meu avô sem um nome
que lhe desse um filho, uma casa.

Depois de dois anos de buscas,
eles finalmente trancaram a porta.

Meu avô atravessa o cruzamento
seguro, na via única do tempo.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Uma espécie de artesanato do espírito


Entrevista a Flávia Rocha

|Luís Filipe Cristóvão

Ao convidarmos Flávia Rocha para o destaque desta semana na Revista Literária Sítio, procuramos encontrar não só a autora, mas também a editora da revista Rattapallax, a antologiadora de poesia, a criadora do Curso de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema. 

No fundo, fomos pela poesia em busca das ideias de quem vive uma experiência total no campo literário. Esta entrevista demonstra, em toda a medida, a abrangência do trabalho de Flávia Rocha, onde expressões de partilha, comunidade e rede estão bem presentes.  


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Quartos habitáveis - III - Na sala de espera

|Flávia Rocha


A claridade derramada
no quarto, como um rasgo—
paisagem de água e pedra

no sol de um dia igual a este,
sem alternativas.Você pressente
o que está para acontecer,

pálida e diagonal. Os objetos
expostos num plano improvisado,
atrás da vidraça— ossos de ave,

pequenos instrumentos fraturados,
úteis –  provisoriamente
esquecidos ali, perto demais—

um deles ao seu alcance
sobre a mesinha, tocando o vértice
de um esboço amarelo, apenas

a metade visível— todo o resto
é preto noturno, enquanto o riacho
de luz transparente

atravessa a iminência parda
da sala de espera.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Quartos habitáveis - II - No espaço de outro

|Flávia Rocha


Metade da sala invertida,
cadeiras viradas sobre gravuras
repetidas, preto no branco—

você caminha por ruas esboçadas
no chão, a sombra exterior
esmagada pelo azul acolchoado

dos objetos— mesas
com algum passado, paredes
com tarefas definidas, restos—

você não está sozinha,
as mãos juntas atrás do corpo
sem rosto, na desordem sem arestas—

repetida, alternando-se
nos espaços da sala, observada
por estranhos, homens e mulheres.

Na profundidade paralela,
dois ensaios em cor, alguém
neste lugar carrega

uma mancha azul no ombro,
à espera, sem desejo.


segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Quartos habitáveis - I - Restos

|Flávia Rocha

O casaco displicente e preto
à porta, caveira de boi
no quarto— você veste

alguma outra cor, menos óbvia,
e deixa os objetos delatores
em casa, sob a pia— no momento

em que lava o rosto e o verde
dos seus olhos absorve o brilho
sombrio de uma lâmpada,

você acorda, sem a perspectiva
exata— a mão ainda dormente
em concha sobre o travesseiro

no chão recebe brisas distantes,
sem assepsias. Estampas
sobre a mesinha de madeira

obscura— a nudez fixa
no espelho irreal, reflexo único.
Caveira de boi à porta—

ágil, decidida, você procura
por alguém que dorme.




Flávia Rocha

Flávia Rocha (São Paulo, 1974), poeta, tradutora e jornalista, é autora de dois livros de poemas, o bilíngue "A Casa Azul ao Meio-dia/ The Blue House Around Noon" (Travessa dos Editores, 2005) e “Quartos Habitáveis” (Confraria do Vento, 2011). Tem mestrado (M.F.A.) em Criação Literária/Poesia pela Columbia University e é editora-chefe da revista literária americana Rattapallax (www.rattapallax.com), que está para lançar em fevereiro sua primeira versão em APP. Editou antologias de poesia brasileira para as revistas Rattapallax (EUA), Poetry Wales (País de Gales) e Papertiger (Austrália), entre outras. É uma das fundadoras da Academia Internacional de Cinema (www.aicinema.com.br), em São Paulo, onde implantou um curso de Criação Literária.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Inventar a realidade

|Henrique Manuel Bento Fialho


   Não há nada a fazer. A dor é a dor e com músculos rasgados não se brinca. Trabalha-se. Não sei quem foi Gustave Caillebotte. Nunca me preocupei em aprofundar as suas dores. Não trabalho a arte como quem afaga o chão, sou de distracções brutas no que toca a pormenores e acabamentos. Pior que isso, sou da preguiça. Sou do não querer saber mais, do ficar a olhar e sentir, vindos não sei de onde, uma série de comichões internas que, por vezes, se tornam tão insuportáveis como uma distensão muscular. Os meus amigos ladrilhadores não conhecem o quadro. Já lhes tenho dito: em 1998, quando estive no Museu d’Orsay, vi-vos por lá. Eles não acreditam. Como lhes digo estas coisas em momentos de bebedeira, pensam que estou a alucinar, que é mentira, que é mais um dos meus delírios pseudopoéticos. Mas eu não deliro com quadros de Caillebote. Eu deliro com corpos femininos e citações de Nietzsche: «a arte não é apenas imitação da realidade da natureza mas precisamente um suplemento metafísico da realidade da natureza, e a ela adicionado com o fim de superá-la» (O Nascimento da Tragédia, trad. Teresa R. Cadete). Trata-se, é certo, de uma citação inicial, mas tão luminosa quanto Os Afagadores de Soalho, de Gustave Caillebotte.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço (2ª parte)

|João Bentes


não obstante tive a coragem de conhecer o bom cinema
bach e chostakovitch e mais a puta da poesia
descobrir a escrita e deixar de poder conversar
com os meus coleguinhas muito felizes e contentes
percebi o quanto estava tudo fodido depois
de muito haxe dei na branca e no mê-dê
alucinei o que tinha de alucinar e
como se não bastasse fiz-me empregado de check-in
no verdadeiro centro de emprego cá de faro
recusei o sucesso de um contrato de 2 anos
farto de gente imbecil que reclama
agonizando na importância da sua hipocrisia
nunca me hei-de esquecer da palmadinha nas costas
dos que me disseram parabéns sr. engenheiro
tem média de 14 e muito boa sorte
depois de tanta propina ainda tem que pagar
mais 116 euros pelo cabrão do diploma



entre o trabalho decadente e a química abstracta
fui um alegre consumista nos bares criminosos
fiz toda a merda que podia na esperança de encontrar
a lídia mais aflita que me rompesse a timidez
e ainda juntei uns trocos para ir até marrocos
houve pelo menos uma vez de me perder em sevilha
estive até em lisboa uma semana inteirinha
outros tantos dias vagueando pela costa vicentina
o que só me deu mais vontade de desaparecer

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço (1ª parte)

|João Bentes


vim atado à minha mãe com meias voltas no cabeço
julgo que esteja extinto o primeiro peixe que apanhei
quando a água benta me bateu na testa disse areia
no primeiro dia de escola fiz-me condutor de barcos
mais tarde ensinaram-me todos os olhos da amêijoa
o que ganhei foi a deformação do anelar e do mindinho
mais a hipótese de uma hérnia no meio das costelas
e quando o lingueirão se tornou demasiado escasso
disseram-me que isto não era vida para ninguém


tenho a certeza de que só queriam o melhor
e eu sem saber que o que deixava era o meu tudo
aos 17 apresentei-me de calça preta camisa branca
sapato de couro muito brilhante de engraxado
no importante hotel para o desenvolvimento
cá da praia que era o sonho de todos os que queriam
uma vida melhor sem grandes apertos económicos

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A pornografia do sistema

Recensão do livro Odes de João Bentes

|Miguel Godinho


Melhor que ninguém, os poetas bélicos sempre souberam munir-se das palavras certas para combater a nossa constante sujeição à vidinha de todos os dias. E porque a poesia é arma da verdade e a verdade é arma da poesia, eis que João Bentes – poeta bélico por natureza – finalmente decide avançar para a publicação de «Odes», o seu primeiro livro de poesia (pese embora a grande maioria dos textos que o compõem tenham sido escritos entre 2008 e 2011), tentando assim marcar a sua posição, dizendo que ele próprio está, antes de mais, descontente com o mundo e, por isso mesmo, sempre esteve e sempre estará na frente de batalha, na vanguarda da insubmissão. E cuidado porque a sua poesia vem equipada de um rigor, de uma sinceridade que nos toma de assalto; uma autenticidade que nos atinge de tão pura, revelada brutalmente da primeira à última palavra do livro, como se ali não se assistisse a outra coisa que não a uma investida musculada contra a pornografia do sistema vigorante, contra o comodismo de toda a gente, contra a hipocrisia do mundo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

crispado como o mar deste inverno


|João Bentes

crispado como o mar deste inverno
lembro-me de coisas ferrugentas
anzóis algures na infância uma noção
de cansaço alegre que a maré põe no corpo
o que as ondas murmuram de poente em junho
o despontar do verde a ria calma o primeiro calor
a fertilidade anunciada na cor atmosférica que muda
o cheiro doce da lama numa manhã incendiada de sol
quando a primeira proa faz rumo a terra correr
correr pelas dunas a chamar a gente de casa em casa
levar o sebo e de joelhos na areia untar parais
pô-los todos de feição e olhar
olhar o gesto afoito de coisas que sempre foram
durante dias a excitação de barcos que avaram à praia
de ser pequeno e querer fazer tudo como um homem
o sangue do peixe espesso como água na seda
o impacto fulgurante das cores escamudas um bailado
escolher mesmo ali o que a ajuda leva e o que se vende

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Isto não é só p’ró inglês ver


Entrevista a João Bentes

|Luís Filipe Cristóvão

Aos 32 anos, depois de participação em duas antologias de poesia algarvia, João Bentes lança o seu primeiro livro em nome próprio.

É a oportunidade para encontrarmos a voz mais segura de um Algarve alternativo ao dos prospetos turísticos e, por consequência, ao Algarve lírico que inunda vários ramos da poesia portuguesa. João Bentes escolhe o título Odes para, num claro tom de ironia, conjugar Ginsberg e vários grandes poetas da literatura portuguesa, apresentar-nos, sem capas nem receios, um Algarve que vive e sobrevive, durante o ano inteiro, independentemente das nossas sedes de veraneantes.



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

porque a televisão poupa o pensar


|João Bentes

porque a televisão poupa o pensar
e o estado zela pela higiene dos dias
garante o teu futuro num curso superior
e vê se te endividas antes dos 30
com tudo o que precisas para a tua felicidade
cumpre as eternas 8 horas do teu dia
afoga as mágoas na cerveja com os teus amigos
cospe cospe rende-te encona-te e trabalha
acima de tudo está o interesse do país
o respeito e a bênção da família
a liberdade que nos trouxe a democracia
quando em 74 aquela coisa dos cravos
liberalizou o acesso ao ar condicionado


Odes, 4águas, 2013

João Bentes

João Bentes, trinta e dois anos, natural de Faro. Foi dinamizador do núcleo de literatura da A.R.C.A. – Associação Recreativa e Cultural do Algarve entre 2004 e 2008. Foi coordenador das actividades do grupo informal Sulscrito – Círculo literário do Algarve, entre 2005 e 2008, entre as quais se encontram a realização dos encontros internacionais de escritores Palavra Ibérica, em Faro e Vila Real de Santo António, em 2006 e 2007, respectivamente, e o publicação dos dois primeiros números da revista Sulscrito. Da sua obra poética está publicada uma pequena parte nas antologias de poesia Do solo ao sul (Arca, 2005) e Poema Poema (Punta Umbria, 2006), tendo também algumas participações dispersas em weblogs e revistas.

Acaba de lançar, já em 2013, o seu primeiro livro, Odes (4águas).

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Reflexões sobre a poesia


|João Camilo


I

Que pretende a poesia? Criar personagens interessantes, em particular e para começar o do próprio poeta, um indivíduo que “escreve poemas”, que através da escrita reivindica um lugar na galeria de “figuras” da nossa sociedade? Assim se sai do anonimato, é certo. Mas talvez se escreva poesia para reconstruir a experiência? Isto é: para fixar o que já se perdeu ou nunca chegou a ser; para pensar, divagar, contestar; para interrogar, protestar, explicar; para investigar, construir, destruir; para corrigir, reinventar - e assim por diante, a porta das hipóteses fica aberta.

Agindo assim contribui-se para a existência de um universo humano com sentido, o sentido que séculos de cultura e civilização foi elaborando. Ao escrever um poema situamo-nos e situamos os outros nesse universo cheio de sentido. Para o aperfeiçoar negando-o ou criticando-o, para nos interrogarmos sobre as razões da sua existência e sobre a sua coerência, para o confirmar e provar que o seu sentido tem sentido, um sentido que se pode discutir, sobre o qual se pode discorrer.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Gonçalo M. Tavares


|Manuel A. Domingos

De todos os novos autores de Língua Portuguesa, Gonçalo M. Tavares (1970) é aquele que melhor consolidou o seu lugar no panorama literário português. Em Portugal recebeu vários prémios, incluindo: Prémio LER/Millennium BCP (2004), Prémio José Saramago (2005) e Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores (2007). A nível internacional recebeu: o Prémio Portugal Telecom (Brasil, 2007), Prémio Internazionale Trieste (Itália, 2008), Prémio Belgrado Poesia (Sérvia, 2009). E foi ainda nomeado para o Prix Cévennes (França, 2009), que diz respeito ao prémio para o melhor romance europeu. Recebeu, ainda: Prémio Melhor narrativa Ficcional da Sociedade Portuguesa de Autores (2010), Prémio Especial de Imprensa Melhor Livro Ler/Booktailors (2010), Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores (2011), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril, Melhor Livro Ficção (2011), Premiado no Portugal Telecom (Brasil, 2011), Prémio Fundação Inês de Castro. Para além de inúmeros livros publicados em dez anos (30 entre 2001 e 2011), que vão do romance e do conto à poesia, do ensaio ao teatro, Gonçalo M. Tavares cedo estabeleceu o seu percurso, isto é, o seu “programa” de escrita. Prova disso é a divisão feita pelo autor da sua obra publicada até à data: O Reino. Foquemos a nossa atenção neste último.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Fazer uma revista


|Editorial

Fazer uma revista é abrir uma porta ao diálogo. Estar mais disponível para ouvir as vozes de quem escreve um pouco por cada canto do mundo. Ter a vontade de entender o que outros, como nós, vão desenvolvendo por aí. Saber de que matéria são realmente feitas as palavras.

Fazer uma revista é também acender uma luz sobre o que se vai fazendo nos livros. Abrir espaços para divulgar as novidades. Conhecer os autores. Aproximá-los de quem procura um livro para ler, sem o saber. Fazer nascer a curiosidade em quem procura uma companhia literária.

Para que isso aconteça, na Sítio, juntámos pessoas que estão espalhadas por Portugal, pela Galiza, pelo Brasil. As portas estão abertas para quem mais se quiser juntar a nós. A partir de cada lugar, os nossos colaboradores juntam autores e palavras para os levar até vocês, numa eterna partilha.

A cada mês, daremos destaque a autores – poetas, ficcionistas, fotógrafos, pintores – abrindo o nosso espaço na semana “Ecos” para uma outra variedade de colaboradores nos mostrar aquilo que vai produzindo. Em fevereiro, o foco centra-se num poeta fulminante, numa história fotografada e num encontro de escritores.

Venham connosco!