quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Não posso viver aqui sem escrever sobre essa vida


Entrevista a Luis Henrique Pellanda – parte 2

|Carolina Vigna-Marú



Na segunda parte da entrevista a Luis Henrique Pellanda, começamos por falar da sua literatura, passamos pelo jornalismo e acabamos por entrar na intimidade do autor, buscando  aquilo que é o seu posicionamento perante o ato de escrever.

 Em O macaco ornamental, o único conto que não é escrito na primeira pessoa é “São Menécio”, que narra, justamente, um homem com a capacidade de sentir a dor dos outros. A alteridade é isso, sentir a dor dos outros? Ainda, mais ou menos no mesmo tema, na maioria das vezes seus personagens estão lidando com as questões masculinas modernas, pós-feminismo, pós-divórcio, pós-tudo, sem ter um pingo de chauvinismo neles, ao contrário de muitos outros autores brasileiros. Você se preocupa com isso, acha que seus livros podem ser uma contribuição para a igualdade?

Pergunta boa, nem sei por onde começar a responder. Gostaria de ser menos vago, mas acho que vou fracassar. Vamos lá. Em relação a meus personagens, faço uma confissão pessoal: tenho certa tendência a gostar dos outros. Sim, é um defeito, não é? Um tara, sei lá, uma fraqueza. Vai que sou perverso? Mas gosto dos outros (não de todos, é claro), e me sinto bem quando consigo me relacionar com alguém. Comemoro, acho um milagre da boa vontade humana — isso existe? Pois tendo a retratar meus personagens a partir dessa minha maneira de viver em comunidade. Quero também me relacionar com eles, apesar de não concordar com tudo que fazem ou dizem fazer. Talvez eu sofra de algum tipo doentio de delicadeza. Dia desses, o João Gilberto Noll disse que me considerava um “escritor delicado” e até perguntou se o termo me ofendia. Muito pelo contrário, achei ótimo, talvez eu deva assumir isso, como quem se assume viciado em álcool, por exemplo. Sou um bêbado, sou um delicado. Pois assumo (só a delicadeza, deixo claro, pois não bebo faz um bom tempo). Sobre contribuir para a igualdade escrevendo, olha, acho que é algo bonito, importante e bem difícil de se fazer. Não acho que devemos escrever sem alguma motivação relevante para nós, sem um objetivo, sem pretensões. Acreditar nisso me parece uma espécie de falsa humildade, uma soberba doida. Então, se um dia alguém me convencer de que algo que escrevi efetivamente ajudou a diminuir as diferenças entre os seres humanos, e as populações humanas, e as nações humanas, puxa, acho que ficarei bastante feliz. Quem não ficaria?


Mas falamos de igualdade e de alteridade, coisas tão complicadas e distintas. Acho ótimo você ter percebido isto: o único conto em terceira pessoa no Macaco é o que fala diretamente dessa relação nossa com o outro. É exatamente o que eu queria. Quando montei o livro, a intenção era esta: dar essa ênfase a este conto, “São Menécio”. Acho que a alteridade é, sim, em parte, sentir as dores do outro, mas também sentir as alegrias do outro, sem que elas nos ofendam ou diminuam. Mas isso não é tudo, é claro. A alteridade também tem a ver com ideias de integração, aceitação, dissolução da noção de indivíduo etc. Sonhos, em suma. São Menécio sentiu, sim, as dores dos outros, mas essas dores eram os sintomas de males que não o afetavam. Por isso ele não tinha medo delas, as dores, não as temia nem valorizava. Mas quando sentiu na pele dores até menores, só que suas, pessoais, tão misteriosas quanto banais, viu que não estava preparado para a vida. Colocar-se no lugar do outro nunca será a mesma coisa que ser o outro. A pergunta é: isso é mesmo o melhor que podemos fazer?

O fato de você ser jornalista me diz que, ao começar algo, você já sabe mais ou menos o tamanho que terá e quanto tempo levará para escrever. Por outro lado, esse treino louco de criar sob demanda, também dá uma disciplina incrível. É essa a chave para gerenciar essa produtividade altíssima que você tem? Morro de inveja. Aproveitando, se puder, fala um pouquinho do Vida Breve.

Não sei se produzo tanto quanto gostaria. Por outro lado, sei que tenho trabalhado bastante. Lancei meu primeiro livro em novembro de 2009 e, de lá para cá, já lancei outros três trabalhos. Foram quatro livros em pouco mais de três anos. Gostaria de lançar um novo volume de contos ainda em 2013, mas não sei se o terminarei a tempo. O negócio é ir com calma. Por outro lado, até o final do ano, sei que já terei terminado um segundo volume de crônicas. É provável que tenha algo para publicar. Mas trabalho com muitas coisas ao mesmo tempo, e quase todas ligadas à escrita, à leitura ou à pesquisa na área da literatura ou da pura fabulação, e isso me atrapalha um pouco no sentido de que, apesar de ser disciplinado, não me organizo exatamente para escrever literatura. Sobre o tamanho dos textos, não sei se o fato de ser jornalista tem a ver com isso, mas já calculo de antemão, sim, a extensão de cada trabalho. Antes de escrevê-los costumo esboçá-los numa caderneta, ou numa folha avulsa qualquer. Quero saber como devo começar e terminar aquilo antes mesmo de sentar ao computador. Mas é coisa simples, nada de esquemas detalhados. São só estruturas rascunhadas.

Sobre o Vida Breve, está aí uma pedra dura, mas boa de quebrar. Faz bem para os músculos. É uma experiência excelente, que edito em parceria com o Rogério Pereira desde 2009. Já passaram pelo site dezenas de cronistas e ilustradores (você entre eles, é claro!), e temos recebido uma ótima resposta dos leitores. A cada dia, de segunda a sábado, publicamos uma dupla fixa, um cronista e um ilustrador, e eventualmente, aos domingos, temos convidados. Ninguém ganha nada, mas nos obrigamos a produzir semanalmente para um público interessado, real e participativo. Dia desses fui conferir o nosso movimento. Atualmente temos, mais ou menos, 25 mil visitantes mensais. E esse número tem aumentado constantemente. Está muito bom.

Li em algum lugar que você jogou seus textos mais antigos no lixo. Você acha que não tinha edição possível ou simplesmente estava farto deles? Qual a importância dessa limpeza para você? Como você lida com as obsessões, com aquelas ideias que perseguem a gente?

Sim, joguei fora dois “romances”, um (mal) concluído e outro em andamento. Eu os escrevi com vinte e poucos anos e jamais pensei em publicá-los, não seriamente. Não achava que estivesse pronto, tratava-se de material ruim, imaturo, inocente, e também percebi, num dia de sorte e sensatez, que meus “romances” eram, na verdade, um feixe grosso de contos frouxamente amarrados. Minha tentação é narrar curto, e não sinto que me falte o que contar ou falar. Tenho assunto. Só não gosto de me estender muito numa mesma história, pelo menos até agora elas nunca me pediram mais que 50 páginas, no máximo. Sobre minhas obsessões, não sei direito quantas são, nem se são realmente obsessões. Mas, claro, há temas que sempre voltam para o meu texto, em geral ligados à memória, ao sexo e à religiosidade (e aí, é claro, estão incluídos assuntos-clichê como o amor e a morte, nem precisamos mais enumerá-los). São temas que têm a ver com todo mundo, mas também particularmente com Curitiba, com os subúrbios da capital, sua proximidade histórica e geográfica com uma zona rural extremamente católica e preconceituosa. Não fujo do ambiente em que fui criado, e não abandono o lugar onde vivo. Se eu sair dele, não é a minha fuga ou a minha negação que vai melhorá-lo. Vivo numa roça iluminada, que hoje também calhou de ser uma metrópole de mais de três milhões de habitantes, uma cidade que, apesar de tudo, tem aprendido a aceitar sua surpreendente (e comovente) vocação cosmopolita. Vivo, portanto, numa cidade grande e violenta, racista, sexista e socialmente cruel, mas sei que, ao mesmo tempo, aqui há cada vez mais pessoas dispostas e capazes de amar e lutar por uma possibilidade real de justiça. Para mim, isso é coisa séria. Não posso viver aqui sem escrever sobre essa vida.