quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A pornografia do sistema

Recensão do livro Odes de João Bentes

|Miguel Godinho


Melhor que ninguém, os poetas bélicos sempre souberam munir-se das palavras certas para combater a nossa constante sujeição à vidinha de todos os dias. E porque a poesia é arma da verdade e a verdade é arma da poesia, eis que João Bentes – poeta bélico por natureza – finalmente decide avançar para a publicação de «Odes», o seu primeiro livro de poesia (pese embora a grande maioria dos textos que o compõem tenham sido escritos entre 2008 e 2011), tentando assim marcar a sua posição, dizendo que ele próprio está, antes de mais, descontente com o mundo e, por isso mesmo, sempre esteve e sempre estará na frente de batalha, na vanguarda da insubmissão. E cuidado porque a sua poesia vem equipada de um rigor, de uma sinceridade que nos toma de assalto; uma autenticidade que nos atinge de tão pura, revelada brutalmente da primeira à última palavra do livro, como se ali não se assistisse a outra coisa que não a uma investida musculada contra a pornografia do sistema vigorante, contra o comodismo de toda a gente, contra a hipocrisia do mundo.

Uma poesia dura – não poderia ser de outra forma – despida de preconceitos, crua e altamente britada, que recorre sem pudor ao calão, ao palavrão (como se não houvesse outra forma de dizer aquilo que é a verdade mais sentida), mas, ao mesmo tempo, extremamente íntima, carregada (como uma arma) de sinceridade e lucidez; uma poesia local, filha da terra em que é produzida – as areias da praia de Faro, um sítio muito distante – apartado – do mundo das «pessoas brancas» que definham diariamente sem sequer se aperceberem porquê; mas simultaneamente uma poesia universal, porque já todos nós nos revimos, em algum momento da vida, nessa revolta.

Nas Odes de João Bentes é fácil descobrir todo um vocabulário de metáforas ligadas ao mar e à vida marítima – o meio em que o poeta nasceu, cresceu e ainda vive, e que explicitamente serve de antítese à vida urbana onde as pessoas, a todo o instante, aguardam o grande «curto-circuito» decorrente da sucessão dos dias, e tantas vezes assentam a alegria daquele «viver óptimo (…) no delírio  colectivo dos grandes centros comerciais», no televisor que dita a toda a hora o último impulso consumista, na artificialidade da vida quotidiana suportada pelo desejo de subir na «carreirazinha» laboral; o mundo em que as pessoas vivem (tantas vezes sobrevivem, emocionalmente) sem, no mínimo, se questionarem a si próprios.

Todos estes temas aqui tratados parecem surgir com um desígnio claro: «para que o vazio nunca mais seja vazio»; para «acabar com toda a mentira envolvida nas políticas de crescimento»; recorrendo para isso (às vezes parece que imaginamos os textos a serem ditos em jeito de spoken-word), num dos casos, a uma belíssima deformação de um poema do poeta algarvio João Lúcio, conseguindo também assim expor de uma forma extremamente interessante aquilo que é actualmente o Algarve, aqui também ele personagem principal, como que metáfora do nosso ser: uma região que se deixou adulterar por querer construir uma verdade ilusória, vendida num embrulho bem moderno e bonitinho; que assentou os seus pilares numa realidade falaciosa de progresso e que, por isso mesmo, se desvirtuou completamente na sua essência.

Estarei certamente contaminado pelo facto do poeta ser um amigo de longa data mas não hesito um segundo quando afirmo que este é, sem dúvida, um dos livros mais lúcidos e flamejantes que li nos últimos tempos, uma poesia do Algarve para o mundo, publicada numa editora (4águas) que representa uma geração de poetas do sul que, quase a uma só voz e associados a um movimento dotado de uma unidade como não se via há muito tempo, fazem questão de afirmar que, por aqui, ninguém vai em cantigas.