sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Passageiro do fim do dia


Excerto do livro Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, que será apresentado hoje nas Correntes d’Escritas.

|Rubens Figueiredo


Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo — e até meio sem querer. O que também ajudava. Motivo de gozação para uns, de afeição para outros, ali estava uma qualidade que, quase aos trinta anos, ele já podia confundir com o que era — aos olhos das pessoas. Só que não bastava. Por mais distraído que fosse, ainda era preciso buscar distrações.

Pedro abriu com a unha a tampinha da parte de trás do rádio minúsculo e trocou a pilha. A música foi devolvida, tão forte quanto os chiados e mais alta do que os barulhos da rua. Ele tinha enfiado os fones nos ouvidos. Estava de pé, num fim de tarde, colhido numa diagonal rasante por um sol cor de brasa que se recusava a ir embora e se negava a refrescar. Um sol quase colado à sua testa e também à testa de todos os outros, que se mantinham em ordem numa fila, à espera do ônibus no ponto final.

Não havia nada entre o sol e as cabeças de todos ali, a não ser a parte mais alta do poste de concreto e os fios bambos de eletricidade ou de telefone, que lá em cima irradiavam para os dois lados numa simetria de costelas. A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar — Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.
Pensando bem, não era tanto uma questão de hábito nem de mimos. Acontece que toda hora é hora de avançar na escala evolutiva, subir mais um degrau. É mesmo impossível ficar parado e, qualquer que seja a direção em que as pernas começam a andar, o chão logo toma a forma de uma escada. Além do mais, é preciso reconhecer: sem mal-estar, sem adversidade, sem um castigo sequer, como se pode esperar que haja alguma adaptação?

Pedro, talvez por causa da música engasgada nas orelhas, demorou a perceber que um ônibus se aproximava por trás, pela rua, rente à calçada. Vidros meio soltos nas janelas e placas frouxas de metal trepidavam dentro e fora do ônibus. A tampinha que protegia a boca do tanque de combustível tinha sido destravada e, a cada solavanco das rodas, o pequeno quadrado de metal estalava com força de encontro à lataria. Por um momento, a sombra alta e retangular do ônibus cobriu a sombra da fila na calçada. Mas o ônibus, em vez de parar, passou direto, deixou a fila para trás e foi estacionar no ponto seguinte, vinte e cinco metros adiante.

Era um ônibus de outra linha. O motorista desligou o motor, ergueu o corpo, saltou por cima do capô e desceu os três degraus da porta aos pulos, com toda a força. Cada pulo fez balançar a carroceria inteira. Depois, afobado, o motorista contornou o ônibus pela frente. Escondido das pessoas que aguardavam em várias filas na calçada, urinou a céu aberto — de costas para a rua, o corpo virado para a roda, quase encostado ao pneu dianteiro.

Com a chegada do ônibus que não servia para ele, Pedro percebeu como sua fila vibrou de uma ponta à outra, numa corrente de impaciência. Algumas cabeças viraram para trás, em busca do ônibus atrasado. Desconhecidos trocaram resmungos. Corpos mudaram o pé de apoio, calcando com rancor os buracos da calçada.

Mas até aí nada do que estava acontecendo chegava a ser novidade. Havia alguns meses que toda sexta-feira, à mesma hora, Pedro ia para aquele ponto final, tomava seu lugar na fila. Já conhecia de vista vários passageiros. Sem nenhum esforço e sem a mínima intenção, já sabia até alguma coisa a respeito de alguns — já contava com a irritação desse e com a resignação de um outro, por causa da demora do ônibus. Às vezes, sem perceber, chegava a brincar mentalmente, testava como as reações deles eram previsíveis. E por esse caminho misturava-se àquela gente, unia-se a alguns e, a partir deles, aproximava-se de todos. Mesmo assim, mesmo próximo, estava bastante claro que não podia ver as pessoas na fila como seres propriamente iguais a ele.

Passageiro do fim do dia
Rubens Figueiredo
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