segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A intervenção divina no roque português

|Luís Filipe Cristóvão

No dia em que é lançado o novo álbum de Samuel Úria, O grande medo do pequeno mundo, a Revista Literária Sítio associa-se a esse acontecimento com a recuperação de uma conferência apresentada no Congresso Poéticas do Rock, no dia 8 de abril de 2009, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 


1 – Igrejas Cheias do Domingo

Não é muito comum encontrar numa faixa de um álbum de roque português o refrão “Igrejas cheias ao domingo”. Aliás, mais que incomum, durante muitos anos, acharíamos intolerável que isso acontecesse (acredito que boa parte de vocês continua a achá-lo intolerável e pergunta-se, talvez com alguma propriedade, porque é que eu estou aqui, porque é que eu estou a falar disto). Mas, partindo do princípio filosoficamente indiscutível de que Deus está em todo o lado, não poderíamos pensar que ele deixaria de imiscuir-se num meio tão dado a endeusamentos como o roque português. Então, o que torna possível repetir este refrão em concertos por todo o país? Tiago Guillul. Foi ele o primeiro músico a assumir um posicionamento religioso no seu roque. Mais do que assumir, alias, parece claro, desde o primeiro álbum, que tentou aperfeiçoar um projecto de afirmação do universo Flor Caveira, enquanto uma produtora musical independente e protestante, nos princípios e na mensagem (embora sem exclusividade). Logo, mais tarde ou mais cedo, já deveríamos saber que isto acabaria mesmo por acontecer.

  
2 – A minha dor de trono

Na semana passada, numa entrevista a um suplemento que constitui, quase por completo, a bibliografia secundária desta apresentação, o autor brasileiro Carlito Azevedo dizia que há uma grande diferença entre uma coisa ser produzida por um poeta ou por um teórico. Gostaria de tomar este aspecto como um dos princípios do que vou aqui falar: eu sou um poeta. É por isso que faço a minha aproximação ao universo da Flor Caveira, projecto de produtora dos músicos que vou referir, do ponto de vista da poesia, das letras das canções, mais do que partir à procura de um enquadramento teórico para o fenómeno. Do ponto de vista do poeta, interessa-me saber o percurso tomado para se chegar ao álbum IV, de Tiago Guillul, o álbum central do projecto iniciado ainda nos anos 90. Interessa-me também explorar como esse álbum é uma súmula das ideias de Guillul e de como serve de base teórica para a música de Samuel Úria.


3 –Isto é folclore

Tratemos de tentar enquadrar as influências musicais notadas na música de Guillul, ao mesmo tempo que iniciamos uma pequena viagem pelo seu percurso musical. As suas primeiras bandas, Bible Toons e A Instituição, revelam-nos os dados primordiais do que virá a constituir a sua estética. Uma base punque, como elemento pedra da sua música, conjugado com um crescente interesse pela linhagem da música tradicional portuguesa, sendo aqui o tradicional uma intersecção entre roque e pópe. Em “Canção para Rodrigo”, uma homenagem ao ambiente do Liceu de Queluz como ponto de partida para a aventura punque de Tiago, podemos ouvir o seguinte:

“Em 92 levaste/ um moicano para o Liceu de Queluz/ se na altura começava a ouvir o Kurt Cobain/ ainda hoje é o punque roque que me seduz”.

No fundo há uma declaração de influências atribuídas ao moicano, despertando o interesse musical de um roque comercial para um roque mais intuitivo e largamente explorado por inúmeros projectos de bandas no início dos anos 90 em Portugal. Em contra-ponto ou conjugação com este lado (porque em Guillul nunca há contra-ponto, há sempre aglutinação de elementos vários para a constituição da sua individualidade), encontramos uma música intitulada “Isto é Folclore”, que não por acaso é a primeira faixa do álbum IV. Nesta faixa, a letra é construída numa aparente desordem que é, no entanto, bastante significativa para o nosso argumento. Observamos uma confusão entre campo e cidade, a tentativa de junção da “chuva de Londres/ao bom tempo de Cancún”, a apresentação de uma ideia de “revolução que não fosse subtil” e tudo isto enquadrado no refrão “que se dane o roque-enrole/ isto é folclore”. Apesar da aparente contradição, parece-me haver aqui a proclamação de um objectivo atingido (ou a atingir com o lançamento de IV): recuperar uma possibilidade de roque português.



4 – Arranja-me um jumentinho

Os primeiros três álbuns de Guillul demonstram qual o seu método de gravação (e o que poderia parecer uma limitação tornou-se, afinal, num princípio fundador do seu estilo). Fados para o Apocalipse contra a Babilónia (2002), Mais dez Fados Religiosos (2003) e Tiago Guillul quer ser o Leproso que agradece (2004), são todos eles gravados em low-fi, ora na Igreja, ora em casa, ora no carro, recorrendo a vários objectos como instrumentos, apostando numa sonoridade crua, explorando todos os recursos e valias de uma gravação amadora. Na música “Arranja-me um jumentinho”, Guillul demarca um espaço de afirmação, onde recorrendo à simbologia de Sansão e Dalila, faz notar que “em todas as costas cabe uma sela/ e para cada guedelhudo pode haver Dalila”.

No entanto, o aspecto fundamental desta música é o seu refrão. Recorrendo uma vez mais a aspectos bíblicos, Guillul apresenta a sua ambição: uma “entrada triunfal para Lisboa”. É neste tema que se começa a delinear o aspecto revolucionário na estética guilluliana, que partiu da cave da Igreja Baptista de Queluz, laboratório fundador do universo Flor Caveira e, através de pequenos concertos, das gravações citadas, e utilizando formas de divulgação pessoal contemporâneas, chega até a uma dimensão nacional.



5 – Não ponhas pó de talco na minha quarta-feira de cinzas

A especificidade do universo de Tiago Guillul leva-nos, muitas vezes, a depararmo-nos com o que poderá parecer um desencontro dos seus elementos constitutivos. Aliás, esse mesmo gesto é encenado pelo autor, como se alimentasse o jogo entre um eu-ficção e um eu-real, onde para cada um desses eus existisse um mundo e uma dimensão diferentes. Talvez essa confusão se possa gerar a partir daquilo que logo no início foi enunciado, a dificuldade de encontrar par, no roque português, para uma expressão religiosa e pessoal. Na verdade, “ o punque que há na teologia” de Tiago Guillul expressa-se, nos seus álbuns, na equação exactamente inversa: uma imensa teologia no seu punque.

A religião aparece nas letras de Guillul como motor de uma revolução moral. Não só em músicas como “Igrejas cheias ao Domingo”, em que se faz a apologia de uma futura recuperação do homem através da fé (até ao ponto em que seria enterrado “o machado, o escudo e a lança” da revolução guilluliana), mas também em músicas como “Pior que gente devassa é um clero com preguiça” onde há uma crítica a determinadas acções do clero, demarcando assim o perfil do bom revolucionário moral. Interessante é que esta exaltação da divindade se faça através de um jogo de palavras pertencentes a um universo mais comum, da cultura popular. O beijo do Sapo, o Padre Vieira, mas também os topes, o verdadeiro artista (remember Tony Silva?), as telenovelas brasileiras, o Intendente.

É neste aspecto que se faz, na minha opinião, a dimensão universal de Tiago Guillul, o gesto em que se afasta genuinamente de um Padre Borga para se aproximar de um António Variações: o que importa, na sua estética, é a palavra. E se a palavra lhe é querida enquanto contacto com a divindade, pela sua função de pregador, é a palavra poética que aparece em grande fulgor nas suas músicas. Temos assim a religião, a moral, o punque, a cultura popular, a tradição do roque português, mas temos acima de tudo uma poesia que torna Guillul símbolo de uma geração, onde mais importante do que acreditar, é ter a noção de que somos livres. Julgo que nada poderia agradar mais a um protestante do que ouvir dizer isto: que a sua música é um agregador dos admiradores do livre-arbítrio.




6 – Oiço chamar o meu nome

O álbum IV tornou-se assim a peça central do projecto do universo Flor Caveira, claramente dominado pela figura de Tiago Guillul enquanto elemento que idealiza as linhas mestras de acção. Ao ser o primeiro álbum da Flor Caveira a merecer uma atenção mediática, acabar por cunhar ainda mais forte esse acto inaugurador e fundador da Flor Caveira, vários discos depois do seu início. Assim, IV é assumidamente um disco de maturidade, as várias experimentações, que para além dos três discos anteriores em nome próprio, passaram pelos Lacraus, os Borboletas Borbulhas, os Ninivitas e as colaborações com Samuel Úria e as Velhas Glórias, trouxeram-no até ao ponto em que está à vontade para arriscar somar as várias influências, tomar posição, tomar partido, e declarar abertamente, por sua parte, a influência que espalha a quem o rodeia.

Sigamos então a ordem das faixas no álbum. Na faixa um, “Isto é Folclore”, o manifesto que pode/deve ser lido em conjugação com os seus álbuns anteriores: o que se quer instaurar é uma nova ordem, uma nova tradição, a partir do existente anteriormente. Faixa dois, “Beijas como uma freira”. Foi o single de estreia do álbum e tem uma função dupla, já que é uma faixa que não encontra mais nenhum par em todo o resto do álbum. Uma das visões que lhe pode ser dada, é como contra-manifesto (jogando com os elementos anunciados na faixa um, mas reabilitando o roque-enrole). Outro ponto de vista indicaria a necessidade de um single para despoletar o processo de divulgação, como rastilho. Isso explicaria o facto de ser o tema pópe deste álbum, sendo até curioso, na segunda edição (aquela que teve distribuição comercial), o facto desta música ter uma versão acústica, nas faixas extra, que vem, do meu ponto de vista, fortalecer a ideia de elemento estranho com um objectivo, dentro do álbum. A partir da faixa três, seguimos uma sequência lógica, entre temas que dão maior visibilidade à estética punque (faixas três, cinco, sete), e temas onde é mais impactante o discurso religioso (faixas quatro, seis, oito). O tema nove, “tu és o inimigo”, será uma pausa, aproveitando para fazer uma conjugação entre punque e teologia, numa faixa onde a letra é um pequeno poema de três versos, uma só frase, várias vezes repetida, “tu que falas uma língua estranha/ e não foi o Espírito Santo que te a deu/ tu és o inimigo”.

A partir da faixa dez, e falando, por enquanto, apenas da edição original do álbum, datada de 2007, entramos no programa revolucionário de Tiago Guillul: “Canção para Tiago Lacrau” como o anúncio da revolução, a ameaça, “arranja-me um jumentinho” como método a utilizar, “Diogo, és cão” simbolizando a presença do português, não como princípio fundador, mas como ferramenta, “Lou Reed quer ser preto” como presença de uma tradição estrangeira, também adoptada, mas anunciado também como uma linha divergente, visto que o poema anuncia contradições em série, e, finalmente “120 anos” a recolocar o problema da revolução moral, realçando, como no caso de uma das faixas extras já referido, o papel da Igreja (e de uma determinada igreja). No álbum original, Guillul terminava com a faixa “ Canção de Natal”, que funcionava como uma ligação ao início do álbum, permitindo assim que a corrente lógica montada não se quebrasse num momento de repeat.

Para a edição comercial, Guillul foi ainda mais agressivo, juntando ao seu plano, para além da versão acústica de “Beijas como uma freira”, com os efeitos já enunciados, quatro canções que são gritos desesperados contra o sistema no momento da sua aceitação como ícone mediático. Guillul caminha para a forca, consciente da sua missão cumprida com este álbum, e dos seus gritos contra a Babilónia, contra a fome de poder em “Dor de Trono” (onde é explicitamente anunciada a criação de um exército), contra o clero que preguiça, terminando a segunda edição do álbum com “o homem que ronrona”, espécie de hino anunciador de um futuro que é já aqui.



7 – Tigre-dentes-de-sabre

O homem que ronrona podia bem ser Samuel Úria, a máquina romântica do universo Flor Caveira. No fundo, será Samuel Úria quem melhor executa os pressupostos teóricos de Guillul, cumprindo o programa numa atitude radicalizada, seja no que confere aos reconhecimentos e afastamentos da tradição, à forma como assume os seus princípios musicais e morais, à forma como apresenta um manifesto de guerrilha, mas também na forma como reduz a sua música a uma voz e uma viola, numa limpidez suja e imperfeita.

Logo no seu primeiro colectivo, as Velhas Glórias, uma banda que gravou um EP ainda na sua existência punque, Úria declarava que a “gradilonquência do roque enrole está num frasquinho de formol”, apontando as armas não só ao estilo mas também “às forças de bloqueio”, num aviso à navegação que acabaria por levar a que algumas destas músicas que surgiram em formato de punque roque acabassem quase como baladas no formato Úria e uma viola.  

Os seus princípios têm por base também uma aproximação à palavra religiosa, tendo alguns temas que são quase hinos, anunciando ainda que ao “domingo vou à escola dominical”. Tal como Guillul, Samuel Úria é um revolucionário moralista, como vemos em músicas como “Bom-senso” em que Úria declara que “o que o bom-senso reprova o povo nunca detesta”. No seu último EP, Úria leva mais longe o seu desvio, na música “Teimoso”. Afastando-se de todas as possíveis etiquetas, Úria conjuga a revolução moral com a revolução musical, tentando engendrar um novo género que não se afirma pela novidade, mas pelo desprendimento dos géneros anteriores: será um gesto menos iconoclasta que libertário, Úria quer espaço para dotar a sua música com a idealização da Palavra, tal como Guillul defende. Assim, caracteriza-se “teimoso como um moleque”, porque à máquina devastadora fica bem, ocasionalmente, demonstrar a sua possibilidade de ser frágil, como ainda o faz na música “Barbarella e Barba Rala”, cantando que “rimo-nos dos nossos ais, fados pouco casuais. Ou não”, porta aberta para a possibilidade da dúvida, negada já a seguir.

É nas músicas de Samuel Úria que a violência sobre os pares está mais exacerbada, um pouco como o que foi referido em relação às faixas extra do álbum de Guillul. Em dois momentos, Úria posiciona-se como o líder do exército guilluliano. Em “tigre-dentes-de-sabre”, enuncia que “comer homens deixa de ser sancionado/ se se justificar em defesa do fado”. E em “Ossos do Ofício”, traz “o canhão para o comício/ acabou-se o armistício”.

Está declarada a guerra projectada por Tiago Guillul e levada à prática por Samuel Úria. Depois do álbum do primeiro com duas edições (2007 e 2008), Samuel Úria lançará o seu álbum em 2009. Há poucos meses, na capa do Ípsilon, podíamos ler a seguinte pergunta: “Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música adentro?”. Uma coisa parece-me certa, sejam eles quem forem, não são um acaso. Nada acontece por acaso. Muito menos as intervenções divinas.