segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

5 poemas de Cláudia R. Sampaio


|Cláudia R. Sampaio

ninguém conhece o infinito

A culpa é tua se dizes sempre
o mesmo nome
se tens sempre a mesma idade
e a mesma casa, se quando
revelas a tua identidade
é impossível que o céu te exploda
e que te acudas de incertezas
e de novos buracos.
A culpa é tua se ainda não
morreste, se nunca te
atrincheiraste à espera
de uma bomba que te mude os olhos
se nasces sempre no mesmo dia.
Não te aflijas.
Estás sempre a tempo de não
dormires na mesma posição
(com a mão aberta em esmola)

Também me custa
sobreviver a estes dias
mas o que ainda não chegou
é infinito.


*

Serotonina

Deveríamos escolher ir para a esquerda
ou para a direita
é que sempre em frente, desalinhados
não chegaremos nem mais um passo
os teus pés nunca me acompanham
dizes tudo como nada, nada importa
eu sempre mais atrás.

Agora há horas a mais e as portas
batem-me na cara
andamos em redemoinho, uma centrifugação
de comida estragada
azedámo-nos
já não nos fazemos a digestão, andas
aqui para cima e para baixo como os
pimentos
não entras nem sais, não me dás
casa
vivo na rua desde que me puxas os lençóis
mudamos de abrigo e aposto
que chegas lá primeiro
eu fico sempre para trás
a ver o que perdemos.

Vou, mas fico
a autocomiseração é mais indigesta
que os teus passos à frente
e eu também preciso de me alinhar
bater continência à vida e alargar a boca
para os lados, coisa que não
me tem acontecido.

Tenho tudo pronto.

Andei a varrer os restinhos de serotonina
que nem me enchem um saco
vieram misturados com cabelos e
pequenas farpas de madeira das
portas que batem, mas espero que chegue
deixo-te à entrada os meus sapatos
que nunca estão ao teu lado na rua,
sempre um metro mais atrás, como
a distância da minha vida à tua


vou descalça

*

erro de sintaxe

De comunicação não percebo nada
gosto é de genocídios de palavras
de caçar coelhos só com sílabas
disparar sobre tudo
apenas com uma junção de letras
até ficar sozinha, só eu
e a minha incompreensão
que nunca é a dos outros, que
usam sempre outra sintaxe.

Não sou capaz é de silêncio
não dá lucro, não faz viver
o silêncio incorpora sempre
uns braços cruzados, uma desistência
pendurada na lingua
um ar de lesma muda, sem opinião
e eu até posso perder
mas aos pulos, de socos no ar
montada num canhão de bandeira
hasteada a disparar a minha sintaxe
não a dos outros, que é deles
não quero nada que não me pertença, nunca quis
e das poucas coisas que tenho
é o que me sai da boca
que mesmo que já mastigado
não me deixa a barriga vazia.


Se não me faço entender
é porque nem sempre é fácil admitir que
sou a primeira a render-me
tantas vezes que nem aqui estou
que nunca sei quando venho
tantas vezes não quero desistir
que nem chego ao começo
já sei que é uma ousadia querer compreensão
de nada serve,
cada um tem uma, muito própria
e a subjectividade é inabalável

Seriam precisos infinitos livros para
me exprimir, para chegar por palavras
à compreensão, à minha.
Mas mesmo assim,
nunca seria a dos outros.

*

genocídio poético

Pudesse eu arrebatar-vos
com o que escrevo
ver-vos em fila a tombar que nem
tordos
queda em dominó à escala mundial

pudesse eu espetar-vos os dedos nos olhos
cegar-vos, mutilar-vos
arrancar-vos uma unha em cada sílaba
dilacerar-vos em cada letra
comer-vos um dia de vida à dentada por cada

pensamento meu
que vos explodissem as almas, as casas
e os carros
os empregos e as contas, o sexo
e o nexo
que vos acabasse o rumo, a certeza
a gentileza e a boa vontade

que se transformassem todos
num limão ainda mais amargo que eu
e que depois me espremessem
vocês, este mundo e os outros,
até ao meu infinito.

*

Realismo

Tinhas a mesma vontade que eu
de louvar a imperfeição
de chamar as coisas pelos nomes

mesmo as que nem chamar se chamam
e o desatino do extremo cansaço.
É por isso que a nossa felicidade,
a que nem sabemos se é
(mas podemos fingir)
está na tristeza que aclamo, logo ao despontar do dia
e na rotina que me despejas, por vezes,
ao fechar da noite.
A minha fé está na dedicação
com que arrumas a loiça lavada
e a tua,
está na emoção com que ajeito os lençóis
antes de fechar os olhos.

Não existe mais nada para além deste querer
Querer sentar-me contigo
e contar-te o desnorte amargo das
minhas palavras
querer
continuar a adorar-te, apesar da dor de estômago.

Não te escondo que já me doeram todas as coisas
a vida, a não vida,
a voz, os cabelos, o pão
mas ao saber-te sentado no momento em
que abrir a porta
deus da secretária de madeira
pai-nosso, amor-meu!
tão existente quanto despojado das
grandes coisas
não há mundo nem ponta de estômago por
mais inflamada que esteja

que me impeçam
de não-doer.


Cláudia R. Sampaio vive em Lisboa e mantém o blogue Genocídio Poético