domingo, 10 de fevereiro de 2013

Inventar a realidade

|Henrique Manuel Bento Fialho


   Não há nada a fazer. A dor é a dor e com músculos rasgados não se brinca. Trabalha-se. Não sei quem foi Gustave Caillebotte. Nunca me preocupei em aprofundar as suas dores. Não trabalho a arte como quem afaga o chão, sou de distracções brutas no que toca a pormenores e acabamentos. Pior que isso, sou da preguiça. Sou do não querer saber mais, do ficar a olhar e sentir, vindos não sei de onde, uma série de comichões internas que, por vezes, se tornam tão insuportáveis como uma distensão muscular. Os meus amigos ladrilhadores não conhecem o quadro. Já lhes tenho dito: em 1998, quando estive no Museu d’Orsay, vi-vos por lá. Eles não acreditam. Como lhes digo estas coisas em momentos de bebedeira, pensam que estou a alucinar, que é mentira, que é mais um dos meus delírios pseudopoéticos. Mas eu não deliro com quadros de Caillebote. Eu deliro com corpos femininos e citações de Nietzsche: «a arte não é apenas imitação da realidade da natureza mas precisamente um suplemento metafísico da realidade da natureza, e a ela adicionado com o fim de superá-la» (O Nascimento da Tragédia, trad. Teresa R. Cadete). Trata-se, é certo, de uma citação inicial, mas tão luminosa quanto Os Afagadores de Soalho, de Gustave Caillebotte.

   Falemos, então, de citações. As primeiras epígrafes do livro inicial de Fernando Guerreiro são de Hermann Melville, Joseph Conrad, Charles Baudelaire. Os albatrozes tinham ficado para trás, assim como «o grosso pelicano dos mitos». «A metáfora chega onde sangra o real». «Há que economizar calorias, alegrias, em estação de escassez» (Livros Iº e IIº, 1977). São poemas atravessados por marés, estações, povoados de aves em pleno voo. Um pelicano junta-se às gaivotas e aos albatrozes numa ilha onde os veleiros ainda vão naufragar. Ninguém sabe destas ilhas nem de seus faróis ilusórios. O leitor pressente uma tempestade, a chuva intensa disparada contra os vidros, pressente a trovoada, caem mísseis no vazio, rebentam sons, não abrem fendas. Rilke é arrastado pela ventania como se de uma folha em queda se tratasse. Eis que parte do ofício se explica: escrever é inventar a realidade, levar o relâmpago aos olhos do leitor, mostrar-lhe «pequenos quadros / velhos, guaches pendurados nas paredes, que um pintor, afogado / nos seus símbolos, metonimicamente transfere, inverte e corrige». As possibilidades de sentido serão tantas quantos os sujeitos posicionados perante o objecto. Não se trata tanto de relativizar a relação sujeito-objecto, como de promover no acto de observar uma dimensão de (re)criar, ou seja, de atribuir significado a. O sentido e o significado, enquanto enigma em processo de continuada (re)construção é o que está em causa nesta teoria da literatura.

   Afagadores de Soalho foi a imagem que Fernando Guerreiro escolheu para a capa dos Poemas Interiores (1980). Regresso ao quadro de Caillebotte e não consigo abstrair-me daquela garrafa e daquele copo, dos instrumentos de trabalho espalhados pelo chão, dos corpos, sinto o cheiro dos corpos, o suor do trabalho, sinto a metafísica de um corpo que trabalha. Aquela garrafa é a metafísica do quadro, toda a metafísica do quadro está naquela garrafa periférica. Sobretudo se pensarmos o objecto como corpo que simula e representa um outro corpo (ausente-presente na forma de fantasma). É uma impressionante garrafa fantasmagórica. E o impressionismo é um conceito que jamais me dirá tanto quanto me dizem as lascas do soalho de Caillebotte, pois «textos, obras, poemas, etc., são preciosos Faróis ─ sinais de iminente perigo interior ─ que ladeiam os caminhos tortuosos da História e defendem os homens dos malefícios da Noite e das Trevas…» A questão é: como podem as palavras reproduzir um objecto? Será possível justificar o corpo da literatura? O que perpassa nos ensaios de Fernando Guerreiro é uma Teoria do Fantasma: «A Literatura apresenta-se assim como uma máquina de produzir fantasmas» (Italian Shoes, 2005). Esses fantasmas são simulacros de uma dupla realidade: corpos que expandem o corpo que o gera. A literatura é, neste sentido, «disseminação do real», produção de novas realidades que refazem permanentemente o mundo.

   As «dúvidas quanto à literatura» acabam a postular a Voz enquanto indiciadora, mais que “significadora”, de um Sujeito que emite um discurso. Quem estiver familiarizado com a poesia de Fernando Guerreiro, facilmente entenderá esta noção de literatura que coloca tudo no seu devido lugar: «a poesia, enquanto estado vibratório do real e da linguagem, pode ser entendida como música (i.e. ritmo): simultaneamente disseminação do real e produção de simulacros». Recordemos o ciclo iniciado com Teoria da literatura (1997) e continuado com os livros Outono (1998), Gótico (1999), Grotesco (2000) e Caminhos de Guia (2002). O que nestes livros adquire um corpo singular já vem duma metamorfose antiga que se iniciou com Livros I.º e II.º (1977). Na sua relação com o real, a Literatura/Poesia é o corpo que dá realidade ao real, que o nomeia. Mais do que reproduzir o real, a Literatura/Poesia produz real. Projecto: «Uma literatura de imagens que faça vacilar a imagem de literatura».

   Todos os volumes que integram esta série vieram a lume na Black Sun Editores, projecto editorial dirigido pelo próprio autor. Gótico valeu-lhe a atribuição do Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia em 1998, o qual foi prontamente rejeitado. A discrição de Fernando Guerreiro é por demais conhecida, manifestando-se, desde logo, no facto do seu nome não aparecer, por exemplo, na capa dos livros que compõem o ciclo aqui evocado. Esta discrição, que não deve ser confundida com arrogância, nem pode, neste caso, explicar-se por um qualquer tipo de marginalidade voluntarista, é uma característica dos autores que vivem a poesia para lá das recepções, dos encómios, da visibilidade mediática – sempre tão discutível num país de 10 milhões de habitantes e 300 leitores de poemas. Ela foi-se tornando evidente desde a primeira obra do autor, profusamente rasurada e anotada à mão, numa singela impressão, em off-set, da qual foram feitos apenas 250 exemplares (distribuídos pelos amigos ou vendidos ao preço unitário de 100 escudos, segundo consta no cólofon).

   Mas a discrição não impediu o crescimento da obra de Fernando Guerreio, quer da obra poética, quer da obra ensaística, nem conteve o seu reconhecimento pelos aficionados da poesia e por alguns diligentes analistas do meio literário português. O ciclo de obras que agora relembramos foi especialmente marcante no contexto dessa afirmação, mostrando um poeta onde a cisão com o filosófico era, de algum modo, eliminada, muito à maneira do que sucedia com os idealistas alemães. O próprio título Teoria da Literatura remete-nos para um campo teórico há muito afastado da poesia portuguesa, um campo de interrogações várias sobre o putativo fim da literatura e o sentido da poesia: «Para quê escrever poesia?»; «poder-se-á considerar a Filosofia um efeito / da Literatura?»; «De que catástrofe, na sua memória, / emerge ainda a poesia?»; «O que se pode exigir da poesia?»; «Qual o valor real dos símbolos?»; «O que se pede da poesia?» Todas estas interrogações foram sendo desenvolvidas nos volumes subsequentes, em poemas onde impera um discurso narrativo, formalmente desinteressado, justaposto a um esforço filosófico sem limitações estilísticas a circunscreverem-lhe a acção.

   Os poemas de Outono inserem-nos numa fase crepuscular, repleta de enigmas, incertezas, paradoxos, lançam-nos no território resvaladiço da poesia, pelo menos quando ela transcende a barreira que separa o pensamento dos sentimentos, desafiam-nos os preconceitos ao mesmo tempo que nos introduzem no lugar daquele que escreve: «Quem / escreve lembra-se apenas de um Outono ─ / cujas folhas, por entre as palavras, / não nos deixavam sequer aperceber / as cores tintas do crepúsculo». O Outono é a estação mais propícia à literatura, é a estação da queda, o nascimento, por assim dizer, da morte, é uma estação transitória, tal como outra coisa não pode ser a literatura. Ao interrogar-se sobre o sentido da literatura, Fernando Guerreiro interroga-se igualmente sobre o sentido do Ser. A história deu-nos a provar o sabor do caos, descerrou o corpo da ruína. Já não olhamos para o passado com nostalgia, olhamo-lo como quem vê a morte anunciada, a prova irrefutável de que caminhamos para o abismo. Que sentido, então, para a literatura? O sacrifício do belo, uma dança de fantasmas, a ruptura dos consensos: «um passeio distraído entre o destino e a mágoa em que / só os mais simples, para dele nunca mais regressarem, / sem reservas mergulham» (Gótico, p.54).

   Vem do primeiro livro a ideia do farol, metáfora pedida de empréstimo a Baudelaire. Mas as epígrafes que há pouco referi têm subjacente um outro problema: «o Ser coincide com a sua imagem (fim), que o estrutura? Ou com a sua falácia?» (Negativos, 1988) Segundo Guerreiro, estas são questões já presentes em Lord Jim, de Conrad, ou em Moby Dick, de Melville. O sentido da literatura é a experiência do terror que aquele que escreve sente ao passear dentro de si, perdendo-se entre os escombros de uma cidade bombardeada, na vegetação de uma floresta obscura, por entre os vales fundos de uma montanha que importa escalar, para depois se desencontrar com o monstro reflectido no espelho. A imagem de si não coincide já com o Ser, o que a página mostra simula apenas um corpo impenetrável. O princípio da poesia é, pois, arrancar uma palavra à morte, permitir que do terror em que mergulha aquele que escreve possa vir à superfície uma palavra que algo mais acrescente ao mundo. Mas será isto possível?

   Não se trata já de tratar a poesia como um elemento decorativo da literatura, trata-se de assumi-la como uma espécie de renovação grotesca da palavra. É o uso simétrico das palavras que a poesia revoga, dando-lhes novos sentidos, novas aplicações, rasgando-as, não as destruindo, arrancando-lhes das vísceras significados ocultos. Daí que a experiência poética seja monstruosa, na medida em que se torna «o lugar onde a linguagem opera o seu extermínio» (Grotesco). «No entanto, que tipo de escrita / é ainda possível quando da vida qualquer experiência se revela / infrutífera?» (Grotesco) Talvez não exista resposta para esta questão, talvez a própria questão se responda ao afirmar, implicitamente, o carácter infrutífero de qualquer experiência. É nesta paisagem desoladora que a poesia cresce. À Teoria do Fantasma corresponde uma Teoria da Monstruosidade. O problema: ser do conhecimento daquele que escreve a impossibilidade de escapar à experiência da escrita, a esse terror, como quem escala uma montanha para, no cume, registar uma paisagem que por lá deixa quando regressa à base. A catástrofe compõe o cenário onde o monstro, aquele que escreve, exerce a sua metamorfose: real-palavra.

   Escrever não é buscar anestesiantes para a dor, não é «a procura de saídas / para o abismo», é antes um suicídio lento, é a transmutação de um corpo num novo corpo, a palavra, é um apelo para a queda. Desmistifica-se, deste modo, a ideia da experiência poética como uma experiência sublime, uma experiência de revelação e de encontro com uma luz que, chegados ao cume da montanha, está sempre para lá do mais alto dos lugares. Chegar a esse lugar é ter a perspectiva do precipício, é sentir a vertigem da queda. Com ironia: «Eis resolvido / o enigma da poesia: para / quem lê, uma cropofagia / das alturas» (Caminhos de Guia). Questionar a poesia através da prática do poema é recorrente. Ninguém o fez tão bem como Fernando Guerreiro, cujos poemas são o osso da literatura a mostrar-se através da carne rasgada da palavra poética. Pena que nos pareça tão parcamente lido por quem mais o deveria ler, os monstros, as estranhas, híbridas e andróginas criaturas da escrita. 

*Este texto foi publicado na Sítio 6*

Henrique Manuel Bento Fialho nasceu em 1974 e é autor dos livros Neoménia seguido de Outros Exorcismos (1997), Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põe (2000), Antologia do Esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas (2006), O Meu Cinzeiro Azul (2007), Estranhas Criaturas (2010), A Dança das Feridas (2011) e Rogil (2012). Tem publicação dispersa por numerosas revistas e mantém o weblog Antologia do Esquecimento