quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação


Excerto do livro O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação, que será apresentado hoje no Correntes d’Escritas

|Luís Cardoso


Prenda
– Eu sou a tua prenda
Carolina teria ouvido essas mesmas palavras se me fosse dada voz, mas as sandálias foram feitas para ficarem mudas e todavia levam-nas para todo o lado como se fizessem parte de um corpo inteiro.
Eu sou a do lado esquerdo, onde bate o coração, falo também pela minha irmã gémea, a do outro lado, que dizem ser a da sensatez. Deve ser por isso que se mantém silenciosa. Ralha-me e manda -me calar com uma voz oculta a que chamam consciência.
Às vezes é tão inflexível que apetece livrar-me dela. Lembra -me que sem ela não existo. Ninguém compra apenas uma sandália. Aos pares, foi assim que nos fizeram, uma à imagem da outra
– Somos a tua prenda
(desfaço -me em mea culpa)
embrulhadas numa folha colorida para disfarçar a nudez de uma caixa de cartolina cinzenta dentro da qual nos fizeram a cama com papel de seda, até o dia em que nos devolvem à luz
– Trouxe -te uma prenda, Carolina
disse Amadeu no regresso depois de ter ido à Áustria onde fora com um grupo de integracionistas em missão de serviço. Um dos muitos encontros de reconciliação entre timorenses promovido pela ONU por causa do estatuto do território após a invasão indonésia em 7 de dezembro de 1975.
Amadeu nunca esteve de mal com os seus conterrâneos, nem mesmo com aqueles que lutavam contra a presença dos militares indonésios como o seu amigo dos tempos do seminário de jesuítas de Dare que optou pelo nome de Raio de Luz e a quem dava guarida quando precisava de se esconder das perseguições que os bapaks faziam aos resistentes.
Acontecia albergar em casa ao mesmo tempo o clandestino e os homens da secreta indonésia que vinham pedir ao empresário a quota -parte nos proventos do negócio do café, sorridentes estendiam -lhe a mão
Fifty -fifty, Amadeu
(Amadeu soa a mãos largas)
o suor a escorrer pelo rosto abaixo, ouvia do outro lado a  respiração do clandestino que atravessava a divisória e denunciava a sua presença, pondo em causa a segurança dele e a dos seus familiares. Disfarçava o medo com um sorriso nos lábios e a mão trémula, pronta a estender o envelope milagreiro
Fifty -fifty, bapak
empurrava -os pelas costas para que não se demorassem muito, não fosse um atrevido querer fazer uma vistoria por achar que a oferta não era de todo suficiente. Tinha uma família numerosa em Kalimantan a precisar do seu ordenado e do que fosse ganhando por sua própria iniciativa
Fifty -fifty, bapak
repetia a cantilena enquanto os via desaparecer no fundo da rua. Só limpou o suor quando se certificou de que não mais haviam de o incomodar com os seus sorrisos colados a cuspo nos lábios. Se é que se pode chamar a isso sorriso quando dentes é tudo o que se quer mostrar.
A ida à Áustria foi uma oportunidade para viajar, conhecer outras terras em nome da vigésima sétima província da Indonésia, diga-se também em abono da verdade que achava ser esta a melhor solução para Timor depois da apressada retirada dos portugueses quando estalou a guerra civil. Foi preso pelos militantes do Movimento Revolucionário, que o acusavam de ser agente infiltrado do imperialismo americano por trabalhar como operador de máquinas na sala do cinema do Sporting Clube de Timor e passar filmes reacionários onde quem ganhava sempre era John Wayne.
Foi com apreensão que viu o secretário António Sakunar abrir a cancela do calabouço militar de Taibesi e mandá-lo fugir quando as tropas paraquedistas indonésias entraram em Díli
– Corre, Amadeu, corre
ouviu umas rajadas pelas costas que por pouco não lhe ceifavam a cabeça. Teve a sorte de encontrar uma valeta onde se deixou cair como um morto. Permaneceu assim até ao anoitecer. A coberto da escuridão regressou à casa. Quando atravessou a porta do quintal a mulher
– Quem és tu?
– Sou eu, Julieta, sou eu
a última vez que o visitou na prisão de Taibesi estava com a cara toda desfigurada de tanta porrada que levava por não revelar os nomes dos agentes estrangeiros com quem trabalhava
– És tu, Amadeu?
– Sou eu, Julieta, sou eu
estava irreconhecível como se usasse uma máscara depois de ter caído na valeta dos esgotos da cidade. Ao seu lado um cadáver flutuava no meio dos dejetos. Parecia -lhe ser de um amigo com quem tivera uma acesa discussão sobre as teorias revolucionárias de Mao. Não concordava com a perspetiva dele. Que para aceder à sua verdadeira independência, Timor tinha de passar por uma grande provação como aconteceu com a Longa Marcha quando o grande timoneiro chinês ordenou a retirada para as montanhas, deixando pelo caminho vítimas que sucumbiam ao cansaço, à doença e à fome. Mas de momento era Amadeu quem precisava de ajuda
– Sou eu, Julieta, sou eu
que apesar da sua insistência continuou desconfiada dado que podia ser outra pessoa. E, para confirmar que não havia engano, pediu -lhe que fosse lavar a cara, mostrasse quem de facto era. Não fosse ser ultrajada por um engraçado fazendo -se passar pelo marido. Amadeu eximiu-se de dizer o nome do guarda que o mandou embora
– Corre, Amadeu, corre
que desatou a correr como se fosse a última vez que o fazia em vida. Como quando se solta um cavalo selvagem após meses de cativeiro.

O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação
Luís Cardoso
Sextante