quinta-feira, 3 de outubro de 2013

“Não parti. Mas já não sei voltar.”

|Filipa de Lima

O sol tingiu de tons laranja o céu, e reflectiu a sua luz por todas as superfícies brilhantes que existem na Terra. Lá fora, do lado exterior do nosso carro, o mundo é caótico com o trânsito parado no tempo, suspenso como numa película fotográfica. Cá dentro, no nosso mundo, a atmosfera é composta por milhares de partículas que apenas se movem pela nossa respiração. Qualquer som é inaudível, tu conduzes alheio a todos os sentidos e eu olho a minha janela, dando-te as minhas costas, não vás tu aperceber-te dos meus olhos brilhantes, das lágrimas que amarfanho num nó insuportável que se prende na minha garganta.
Estás alheio a tudo, continuas a tamborilar os teus dedos no volante a um ritmo constante, que hoje, no silêncio absoluto em que nos encontramos, assume um volume ensurdecedor e extremamente assustador. Estás sempre alheio a tudo, nunca prestas atenção a nada. Nem daquela vez que cheguei a casa tarde e desalinhada, não me perguntaste onde estive, com quem estive, porque cheguei tão tarde. Ignorância tua que teimaste em continuar a ter, arrogância minha em manter a clandestinidade de uma relação que não conhecias. Ou como daquela vez em que tirei as nossas fotografias do escritório, e tu nem deste conta. Fi-lo, não por já não me seres nada, mas porque não sabia se eu ainda te era alguém.
Hoje, como tantas outras vezes, olhava a minha janela para que não desses pela minha presença, pensava que sendo discreta não davas por mim e talvez não me mandasses já embora. O trânsito avançou finalmente e um outro carro parou do meu lado, o condutor, um homem de ar cansado, olhou-me os olhos e acho que percebeu que o brilho dos meus olhos não era um bom augúrio. Fiquei-lhe grata não só por se ter apercebido mas também por ter desviado os seus olhos no segundo a seguir.
Tenho os olhos vermelhos e não posso pestanejar, não vá eu perder o ponto de equilíbrio e as lágrimas desabarem. Tenho o choro estanque, preso por um dique como numa barragem em que o rio é impedido de correr eternamente contornando os obstáculos por que passa, mas não quero que me perguntes nada. Dói-me os dedos de apertar a mão com força em volta da maçaneta da porta, estou pronta para correr mal percebas os meus olhos vermelhos. O ar começa-me a faltar, as costelas apertam a minha caixa torácica onde sinto o meu coração a bater com demasiada força, e demasiado lentamente.
O trânsito continua parado, as luzinhas vermelhas desfocadas parecem-me balas directas a mim, um sinal divino, uma deformação da visão, não me interessa. Sei que tenho um colete-de-forças invisível que me impede de abrir a porta, tenho a boca presa e não te consigo pedir para parares. Para me deixares ali que eu vou a pé. Apanho um táxi, preciso de sair, vou ter a casa depois.
E por milagre, o trânsito avança e eu não consigo suportar mais a revolução que tenho presa dentro de mim. As minhas lágrimas transbordam silenciosas e alagam os meus olhos, descem a minha face, caem sorrateiramente pelo meu pescoço.
Desbravo e finalmente choro enquanto tu regulas a sintonia do rádio, e por sorte não dás – nunca dás – por nada.