quarta-feira, 15 de maio de 2013

A poesia que nos escolhe


Entrevista a Ruth Ministro

|Clara Henriques



“Todos os poemas são feitos de mar”.

O teu último livro, Dos intervalos das horas – 2011, divide-se em 4 momentos: a madrugada, a manhã, a noite e, por fim, os intervalos das horas. Nasce-te poesia em todas as horas?
De alguma forma, a poesia faz parte dos meus dias e acaba por estar presente em todas as horas, quer eu queira, quer não. A minha paixão pela poesia, como é aliás apanágio das paixões, é algo que não posso controlar, não depende de mim, está para além do consciente e do racional e das horas e dos lugares. Não é que esteja a pensar em poesia a toda a hora, também não é assim, mas há uma propensão para encontrar no quotidiano o seu quê de poesia, embora nem sempre isso queira dizer que consigo escrever um poema. Eu na verdade acredito que é a poesia que nos escolhe para a escrever e não o contrário. A inspiração é qualquer coisa que toca o divino, vem não se sabe de onde e atinge-nos como um raio de luz, independentemente da hora do dia ou da tarefa que estamos a desempenhar no momento, essa até pode ser tão ou mais ridícula e pouco poética como fazer a cama ou lavar a loiça… por vezes é uma palavra que surge, um verso que se desenha em torno dela, outras vezes é algo que vemos e que forma uma ideia poética, depois só temos que conseguir guardar essa inspiração até ao momento de escrever o poema.

Consegue-se, através da tua poesia, ir do sonho à realidade num ápice. Como acontece em ti este caminho que, depois, tão bem partilhas com o leitor?
Agora deixaste-me a pensar… do sonho à realidade? Preferia que fosse da realidade ao sonho. Eu gosto de acreditar que a poesia deve servir esse mesmo propósito, o de nos permitir a fuga à realidade, ao terreno, ao possível, e em paralelo a entrada num mundo onírico, um mundo de impossíveis, criado por cada poeta com as suas próprias regras, de uma forma diferente e única, e depois recriado e vivido pelo leitor. Assim, podemos sonhar de várias cores, descobrir incontáveis universos, consoante os autores e o tipo de poesia que escolhemos ler. Essas viagens da realidade ao sonho e do sonho à realidade são, de facto, aquilo que me permite escrever, eu faço-as a toda a hora, ando sempre com a cabeça nas nuvens.

No último momento do livro deixas o formato tradicional do poema para presenteares o leitor com alguma prosa poética. Curiosamente, este último momento tem o nome que deu o título ao livro. Que relação tem a tua poesia com o tempo?
O título do livro é uma homenagem às horas, ao tempo, à vida. Acho que a partir de uma certa idade e de certos acontecimentos que vão fazendo parte da nossa história, começamos a compreender e a sentir o quão fugaz é o presente, o quão frágeis somos, o quão delicados são os dias, os momentos, o quão importante é aproveitar cada instante que temos porque não sabemos o que nos reserva o minuto imediatamente a seguir. A vida é amor e o amor está condicionado ao tempo, a forma que eu encontrei para o eternizar é a de transformá-lo em poesia.

“Serei sempre eu nos versos que escrevo”. Percebe-se, na tua escrita, uma grande aproximação ao que há de mais genuíno, o que a torna distante de uma poesia ficcionada. É mais fácil escrever sobre o que somos?
Mais fácil, não diria… eu acho que é capaz de ser mais difícil, porque é acima de tudo emotivo, visceral, é, de certa maneira, um processo doloroso. E nem se pode dizer que seja menos criativo, uma vez que o poema não é só semântica, não é só significado, também é forma. Há uma preocupação estética quando se escreve poesia, há um corpo e um conteúdo, tal como nas pessoas, há a beleza exterior e a beleza interior. O que somos, o que vemos, o que vivemos e sentimos, não é sempre e inteiramente bonito, não é organizado, não responde a métricas, não é livre de erros e rasurados, não é vestido de metáforas, é cru, é violento por vezes, é caótico. A poesia mais genuína, como lhe chamas, tem que conseguir encontrar o sentido, o equilíbrio, e fazer nascer a flor no meio do caos. Julgo que isso é tudo menos fácil.

“Amanhã serei eu mesma,
eu outra,
eu reinventada”.


És psicóloga de formação. Que mundo trazes dentro das palavras que escreves?
O facto de ser psicóloga não afecta propriamente as minhas palavras quando escrevo poemas. Pode condicionar em alguns aspectos a minha percepção do que me envolve ou do que sinto, não posso desligar-me da minha formação e fazer de conta que não sei aquilo que sei, mas deixo muito de lado essa condição no que diz respeito à poesia, até porque isso seria desprovê-la da sua magia. Já leio e escrevo poesia há imenso tempo, a nossa relação começou bem antes de me tornar psicóloga. Dentro das palavras que escrevo trago o meu mundo, o mundo que toco e que me toca todos os dias, que me transforma e que eu transformo em poesia. Somos aquilo que vivemos, portanto dentro das minhas palavras existe um mundo de vivências, de experiências, um mundo de sonhos, sonhados e por sonhar, e principalmente um mundo que gira em torno do amor, essa é a fonte que faz correr a tinta da minha escrita.

Pertences à jovem geração de poetas. Como é ser-se poeta numa geração que parece tão desligada do fenómeno poético?
Talvez não seja bem assim. Todas as gerações estão, de alguma forma, ligadas ao fenómeno poético, embora possam reproduzir essa ligação de formas várias. Eu costumo dizer que há muitas maneiras de fazer poesia, de ver poesia, de sentir poesia, e não me parece que a geração jovem esteja tão distante assim da sensibilidade necessária à arte e à poesia, antes pelo contrário, vejo muitos jovens sensíveis e extremamente vocacionados para as artes. O que posso dizer que é difícil, é vingar no mundo dos livros, mas isso não tem propriamente a ver com questões geracionais, mas muito mais com questões socioculturais e até mesmo políticas. Temos que vencer várias barreiras: a do desinteresse dos nossos governantes pela cultura em geral, que é encarada como um luxo, e a consequente falta de apoio e incentivo para a mesma, ou, se quisermos ser mais acutilantes na crítica, a do interesse que possam ter por adormecer intelectualmente as pessoas, retirando-lhes poder, a dos fracos hábitos de leitura e crescentes hábitos de consumo de televisão, a da visão da poesia como algo complexo, abstracto, que não se sabe bem o que quer dizer, e se sabe menos ainda para que serve, talvez porque a abordagem escolar ao estilo poético não seja feita na melhor altura, ou da forma mais apelativa, e por aí adiante, enfim, a estrada é tortuosa.  

Para fechar, poderia fazer-te a pergunta esperada em que questionava um próximo livro. Prefiro, no entanto, perguntar-te em que momento do caminho te encontras agora.
Não sei precisar o momento em que me encontro, o tempo é tão traiçoeiro que não vale a pena termos a pretensão de que somos nós que o controlamos. Todos os momentos do caminho são momentos de exploração, de aprendizagem, de auto-conhecimento, de crescimento, por isso só posso dizer que me encontro algures pelo meio desse caminho. O que posso afirmar com toda a certeza é que sou um pouco como os pássaros, rectifico constantemente a minha rota, mudo de direcção, migro para onde há sol, procurando voar sempre rumo ao encantamento.