quinta-feira, 23 de maio de 2013

Ele

|Luís Filipe Cristóvão


Um deles amava mulheres feias. Ninguém acreditava que fosse possível amar tantas mulheres e tão feias como aquele fazia. E o que tornava de ainda mais difícil compreensão aquele fetiche era o facto de ele ser tão bem parecido que, com relativa facilidade, encontrava mulheres bonitas muito interessadas nele. Ali, num canto do bar, ele bebia mais um copo de whisky e falava das suas mulheres. Das mulheres feias.

Por exemplo, a Fátima. Doze anos mais velha que ele, à porta dos quarenta. Os dentes encavalitados uns sobre os outros, quase todos aninhados por pequenas cáries ou outros vestígios de indiferença. Um nariz fino e pequeno onde pousavam dois olhos esbugalhados, de um castanho sem graça. As sobrancelhas carregadas, uma pele desleixada. O cabelo oleoso, sempre mal penteado. Um amor sem igual, segundo ele, a mais sincera relação que duas pessoas podem ter. Algo que, sendo incompreensível ao mais mediano dos humanos, para aquela mente iluminada pela beleza das mulheres feias, representava o mais alto esplendor de luz divina.

Muitas vezes eu e outros amigos tentámos compreender o que o tinha feito assim. Muitos lembravam uma tal Dina ou Lina, um amor de adolescência, uma mulher brilhante, de doces feições, que o arrebatou cruelmente e ao fim de dois meses o trocou por um outro jovem, quiçá mais treinado nas particulares manhas do amor adolescente. Diziam que isso quase o tinha levado ao suicídio, tendo-o traumatizado de tal forma que nunca mais se houvera aproximado de um qualquer rasto de beleza.

Era difícil de compreender, sem dúvida, e esta história melancólica e distante parecia resolver de certa forma a ansiedade que nos tomava a todos, sempre que o víamos, o maus belo dos homens sós daquele bar, entrar acompanhado pela última novidade dos horrores femininos. Vânia, Tânia, Luísa, Teresa, Armanda, Leopoldina (esta juntando ao pacote um nome também ele horrível), Ana Maria, Maria José, Alexandra… Um rol de tristezas para os nossos olhos.

Outra das histórias que se contavam sobre aquele belo e estranho personagem era a de uma Mariana ou Margarida que, aquando dos seus vinte e poucos anos, lhe teria roubado o coração. Era uma espécie de deusa grega, divinal nos seus traços de mais bela dos humanos. Um ano inteiro de um amor arrebatado que terminou, tristemente, numa noite em que o nosso amigo a interpelou beijando outro terráqueo, um ex-namorado do liceu.

Todos percebiam que tais desventuras só poderiam levar a um temor irreflectido perante as mulheres, mas daí a procurar só senhoras de pouco tranquilizante aspeto era um demasiado longo caminho. E por isso vivíamos perturbados com as infelizes escolhas daquele que designávamos como o mais belo dos nossos. Quando a madrugada já ia longa, eis que ele saía do canto escuro do bar, embalado na garrafa de whisky que se desfizera em seus lábios. Mesmo com todo aquele álcool, ele mantinha a pose de general, as costas direitas, o olhar penetrante. Belíssimo, sem dúvida. Saía do bar e vagueava pelas ruas molhadas. Sem que ninguém o percebesse, era esse amor pelo estranho que o fazia mover-se ainda.