segunda-feira, 8 de abril de 2013

Onde se vê que a deterioração do património mobiliário não é mais do que uma perversão da alquimia do prazer.

|Philippe Delerm


    - É bom que se comece a pensar em trocar esse cadeirão!
    Mr. Mouse sabe muito bem porque é que Mrs. Mouse disse aquilo. É por causa deste gesto. Sente-se incapaz de o impedir. Sempre que se senta no velho cadeirão de curvas macias e apetitosas, Mr. Mouse começa por contemplar as chamas da lareira numa perfeita imobilidade. Mas em breve, negligentemente, a sua pata direita começa a deslocar-se no braço do cadeirão, em busca desse rasgão no tecido cor-de-rosa e de algumas palhinhas desgrenhadas. Como lutar contra esta insidiosa volúpia? Mergulhando na palha áspera, agravando a ferida do veludo, Mr.Mouse não procura alívio para uma simples comichão. É muito mais sério, e ainda mais irreprimível: ao enfiar a pata no braço do cadeirão, Mr. Mouse atinge o cúmulo do bem-estar, o ponto frágil em que a sensação de prazer físico se torna tão pura, tão aguda que se casa com a satisfação serena da felicidade.
   Mr. Mouse não está com pressa de trocar de cadeirão. Primeiro, e ele sabe-o bem, serão precisos anos para que um cadeirão novo perca o seu porte afectado, a sua rigidez indigesta, que se adeque à decoração do terreiro. Nas vigas do tecto, em cordões, estão penduradas maçãs, amoras, cogumelos, que secam durante todo o Inverno. Sobre a terra batida do chão, um tapete tão gasto que as franjas se desfiam, as cores dos motivos geométricos apagam-se sob o prazer demasiadamente renovado de acariciar a espessura da lã com as suas patas. Como imaginar a arrogância de um cadeirão novo no meio de tudo isto? Nunca se teria a ousadia de proteger as costas de um cadeirão novo com um paninho de algodão branco bordado com uma bonita cereja. E depois, acima de tudo, Mr. Mouse sabe bem que o seu gesto não é inocente. Quando destrói imperceptivelmente o seu velho cadeirão destruindo a palha do estofo, rasgando o tecido um bocadinho mais de cada vez, Mr. Mouse sabe que obedece a um incontrolável impulso, um pequeno refinamento perverso do seu universo bem-comportado: é preciso brutalizar o bom para ser melhor, é preciso precipitar o fim das coisas antes que o seu sabor  nos escape. Já o terão adivinhado, Mr. Mouse é um filósofo. Absolutamente nada estóico, mas também não completamente epicurista. Mr. Mouse é ele mesmo, e, acreditem-me, é qualquer coisa, isto de se deixar ir ao encontro de si próprio num cadeirão muito velho com ondas gastas por uma doce rebentação.


Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad. Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007