sexta-feira, 12 de abril de 2013

Onde o nosso herói confessa sem vergonha excessiva uma tendência gulosa para se ver ao espelho.

|Philippe Delerm


Mr. Mouse costuma ver-se ao espelho. Este hábito pouco ou nada se alterou ao longo dos anos. No entanto, Jeremy Mouse domina, qual filósofo, os elementos da análise: trata-se de um reflexo adolescente. O ratinho não se observa, nem o rato velho. Mas o ratolas começa a procurar-se nos espelhos, por receio de agradar e desejo de existir, ou então o inverso, enfim… Mr. Mouse baralha-se um bocado. A perturbação insinua-se – algo lhe diz que, se tiver a sorte de envelhecer, haverá sempre de se ver com vaidade no fundo dos tachos reluzentes, na superfície do Charco-dos-Salgueiros…
   Será que Mr. Mouse tem necessidade de agradar? Necessidade, talvez não. Vontade, é outra coisa. A ver se nos entendemos. Mr. Mouse não anda, desde há muito, a deitar olhares lânguidos, à população feminina da vizinhança. Com as mais jovens, passaria por sátiro, e é demasiado amigo das da sua idade para se atrever qualquer pestanejar com um inefável vago na alma. Aliás, não há nada de vago na sua alma, e se estiver apaixonado, é pela Emily Mouse, cada dia um pouco mais – sim ; não há assim tanto tempo quanto isso, algumas outras ainda lhe pareciam desejáveis, mas agora conhece-as melhor, a vontade diminui, ou então aumenta o amor, vá-se lá saber, ou então tem um bocadinho a ver com a idade.
   Não, as espreitadelas ao espelho de Mr. Mouse não se destinam à avaliação objectiva das suas virtualidades sedutoras, não têm qualquer velada intenção estratégica propriamente dita. E também não é um tique. Mr. Mouse recorda-se. Quando era rato jovem, receava sempre achar-se feio. Ia depressa ver-se num pedaço de vidro e isso tranquilizava-o: na verdade, não estava mal de todo. Mas três segundos depois, voltava o desejo de confirmar esta serenidade, e um novo olhar no espelho reconduzia-o à angústia original. Que inferno!
   Hoje, os seus olhares são apesar de tudo mais sossegados. Reconhece-se quase sempre, com as suas roupas de cavalheiro-campestre-elegante-confortável, o seu grande focinho do South West, a sua figura ainda aceitável, gentilmente guarnecida pela sabedoria dos anos. Mas se Jeremy Mouse estivesse assim tão seguro de si, será que continuaria a não deixar escapar a menor oportunidade de reflexo? Tem vergonha de o confessar, mas até já tem dado por ele a olhar-se nos vidros dos quadros pendurados na parede do terreiro.
   Mr. Mouse sacode a cabeça; em menos de nada, o seu pensamento torna-se niilista. Nunca se é completamente sábio, nem completamente si próprio, nem completamente nada. Ou então talvez seja menos grave: é preciso amedrontar-se e esquecer-se, e depois rapidamente festejar o reencontro.

Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad. Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007