quinta-feira, 11 de abril de 2013

Onde a literatura dos ratos levanta voo graças ao apoio moral dado pelos gerbos.

|Philippe Delerm


Mr. Mouse escreve. Não se trata de alta literatura, descansem. São antes aguarelas, pequenas pinceladas, uns esboços. Ele teria aliás preferido pintar. Cada vez que a Emily tirava as sua paletas de aguarela para fora, os seus grandes blocos de papel de desenho Moulin d’Arches , Mr. Mouse ficava com vontade de fazer qualquer coisa com aquilo: a desarrumação  em si já parecia um sucesso! Os álbuns para ratinhos da Emily são tão belos! Mas não, a sério, é demasiado desajeitado para qualquer expressão gráfica. A culpa não é sua: ensinaram-lhe a escrever com a mão direita, embora seja canhoto. Então, nos serões em que Emily pintava, Mr. Mouse instalava-se no cadeirão para ler. Acreditava que podia embarcar em romances apaixonados, com histórias palpitantes, aventuras, livros para nos atemorizarmos no meio de ondas de dez metros a saborear no canto da  lareira. Mas não há nada a fazer. Mr. Mouse está demasiado velho, sem dúvida, ou então acreditou demasiado nessas histórias quando era ratito – já não tem jeito para viajar assim, desde então.
   Durante algum tempo, Mr. Mouse sentiu-se infeliz com esta enfermidade, e arranjava consolo como podia: fingia seguir o caminho das linhas, mas apenas mergulhava no quase silêncio do terreiro, no arruivado da cerveja e na claridade das chamas. E depois, como que por magia, outros livros chegaram-lhe ás patas. Livros diferentes, livros deliciosos que não falam de grande coisa, mas que se comem e se bebem com o olhar. O primeiro começava assim:

   “Eu e a minha lareira, cabeças brancas e velhos fumadores, moramos no campo. Atrevo-me a dizer que nos estamos aqui a transformar em autênticos autóctones : e particularmente a minha lareira porque ali se afunda  um pouco mais cada dia.”
   Eu e a minha lareira : Herman Melville. Havia alguém que escrevia assim! Foi uma grande felicidade para Mr. Mouse. A capa do livro puxava para o colorido, com uma fotografia de casa debaixo de neve. Podia-se saborear o texto muito lentamente. Era melhor, mais espumante que a melhor cerveja de Mrs. Hamper.
   Mais tarde, Mr. Mouse descobriu outros tesouros com alguns autores de além-Mancha. Um deles, Mr. J.M.G. Le Clézio, tinha escrito um livro muito estranho e muito belo, que não levava a parte nenhuma e conduzia a todo o lado: presente, passado, futuro, espaço. O desconhecido sobre a terra. Aí também, a primeira frase era tão particular:
   “ Eu queria falar-vos longe, longamente, com palavras que não fossem somente palavras, mas que conduzissem até ao céu, até ao espaço, até ao mar.”
   Mas o mais espantoso, é que Mr. Mouse se tornou no amigo epistolar dum terceiro autor, também ele francês: Mr. Alain Gerboise. Mr. Gerboise é nomeadamente  o autor de dois romances deliciosos dedicados ao queijo, o primeiro de atmosfera holandesa, o segundo com um clima de Auvergnat: A Cor laranja e Uma espécie de Azul. Entusiasmado pela leitura destas duas obras-primas, Jeremy Mouse dirigiu uma carta ao editor de Mr. Gerboise, em Paris. Que surpresa e que felicidade  ao receber uma carta de França, menos de um mês depois!  Mr. Crabtree, o carteiro, ficou  duravelmente impressionado, e desde então fala a Mr. Mouse com um toque de respeito. A carta, das mais amigáveis, era do próprio Mr. Gerboise. Aconselhava Mr. Mouse a pegar na pena , na altura, para conhecer as alegrias da escrita.
   Petrificado de agradecimento, Mr. Mouse levou algum tempo a assumir o encorajamento. Para se elevar ao nível desta benevolência, achou  então por bem entregar-se a algumas reflexões filosóficas sobre a vida dos terreiros, sobre a organização social dos ratos ingleses. Passou para um caderno quadriculado os seus rascunhos infames de canhoto contrariado , e dirigiu-os ao seu longínquo amigo. A reacção de Mr. Gerboise foi apenas cortês. Mortificado, Jeremy Mouse lançou-se de forma incontida num romance histórico de paixões desenfreadas. Parecia-lhe que estas rebentações tinham algum porte, mas Alain Gerboise não ficou nada entusiasmado.
   Desesperado, Mr. Mouse disse adeus à literatura. No máximo, continuou por delicadeza a dar notícias suas daqui e dali  ao escritor francês. Pondo de parte qualquer pretensão formal, contou-lhe dos serões, do vinho de amoras, do guisado de carne de vaca com castanhas e nabo  do Lancashire, dos caminhos cheios de neve, das reflexões de Mortimer e de Jennifer, da cor dos seus dias. Sem se esforçar, apanhou  o gosto de se instalar ao serão perto de Emily, espelhando a sua vida para aquele amigo longínquo. Um dia, recebeu de Paris  uma carta surpreendente. Alain Gerboise escrevia-lhe a dizer que nunca tinha lido nada de  tão verdadeiro, nem de tão bonito! Jeremy Mouse começou por se perguntar se não estariam a troçar dele. Mas não. Gerboise insistia, até falava numa eventual edição.
   Mr. Mouse não acredita muito nisso, mas desde então escreve todos os dias. Escreve pequenino: os dias, os céus, as coisas, os cheiros, e a confusão na qual despontam os seus dias . Faz rolar as palavras sob os dedos, as suas páginas parecem-se com ele, e isto é felicidade.
Quanto á edição, tem tempo: um livro assim nunca está completamente acabado.

Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad. Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007