terça-feira, 30 de abril de 2013

4 poemas e um vídeo de Joana Santiago

|Joana Santiago


I Lucidez

Se parar é morrer, nós nunca parámos
parece que esta cruzada se espalha por pântanos
lugares onde se afundam nas águas serenas
os nossos corações que ardem em chamas

de volta ao nosso espaço, construímos um quarto
com paredes de marfim, enjoamos como barco
acompanhados de vazio e partes divididas
já fomos e voltámos e estamos sempre de partida

ás vezes sonho que caio pelo abismo sem nexo
preencho o espaço de uma folha e proclamo escolha
como uma distração indesejável, perco a inspiração
é que se a cabeça se manifesta, perde-se rumo a casa

arrasto comigo um amanha, estava prometido irmão
agora é teu, aproveita a sombra que deixo
segue as mesmas passadas e no espelho, existe
assume fisicamente a tua forma de deus e acena

sopra a tinta no balão e acusa a lucidez,
se parar é morrer, nós nunca existimos
parece que esta cruzada foi apenas sonhada
e os pântanos de que falava, são buracos de nada

*

II  Oração a Orfeu

Por favor senhor, deixa-me orar por ti,
acredita na minha fé. Em todas as horas que te neguei,
perdoa a minha ofensa. A força que tens por dentro é infinita
vejo-a em todos os cantos da minha mente,
Senhor, é tempo de te aceitar no meu coração,
que sejas a última das esperanças aqui na terra.
Deus da palavra, da poesia e dos amantes.
Acalma, silencia, toda a minha ira e fraqueza.

Que a cidade envelheça sem mim.
Que os seus vícios se consumam
e levem com eles tudo o que de podre aqui fica.
Que tudo são muralhas que não me deixam ver além.
As planícies onde crescem livres os homens.
Nesta prisão de betão, um coliseu de lunáticos.
A cidade está doente. E nós estamos condenados.
Acorrentados, não somos mais do que desperdício.


 Eu tinha um plano, um plano perfeito.
Mas neste ponto, o meu sonho é outro.
Ainda há espaço, para alguém como eu
na hora mágica, serás tu o meu Orfeu?

Por favor, deixa-me orar por ti
deixa-me confiar-te o meu rumo
nas tuas mãos, as minhas palavras
serão aladas, serão sagradas.

Na hora mágica, foi o que disse
na plenitude da planície, vive-se
na rota do sol, escrever com amor
por tudo isso, senhor, aceita-me.


III   Ama Lia

Uma  nota quando bate, sozinha é pouco
É sinal de que alguém, já abandonou o posto

E o destaque instala-se, como fogo posto
e na outra face, estão todos os outros


se não me entendes eu explico, bem devagar e fluído
sou laboratório no infinito, teste melódico e impreciso

e preciso de universal, e de uma gota de sal
e de uma roupa que sirva e de uma voz que a vista


melódico frenético, do zero ao inferno
quantas vezes já sentiste que o chão não te resiste?

serás tu quem decide? és escolha ou improviso
se dás luta se resisto, sou teimosa só contigo

batemos certo como verso solto,
encaixamos um no outro, e sabe sempre a pouco

silêncio...do silêncio faço um grito
ela disse que o céu... hoje já foi recolhido

aqui faltam estrelas...na solidão das vedetas
adeus oh amargura, que é no palco que está a luta

e é na rua que ela se cruza, que é do povo que ele abusa
e do silêncio se alimenta, oh grito, fala mais alto que o medo!!


que tudo pare à nossa volta, que se misturem as notas
agora é que eu percebi, que a paz não está nas horas

nas vagas, nas mortas, nas rápidas, nas lentas
que é no entretanto, enquanto me foge o tempo

mãe terra, deixa me estar, eu fui plantada à beira mar
numa gaivota, rua deserta, numa encosta ou à janela


Um sonhá cantá num palco, um estréla corrê na céu
e eu fui atrás do meu, como se sem ele nunca nasceu

amar ao verso, não tem regresso, vicio qué vitalício
corre na veia, é como teia, ele respira, nós é o ar

vai dar tempo pra crescer, entre um verso e um som disperso
vai ter espaço pra arrumar, vai ser bom é como amar


é agua morna de salgada, cada asa que na mágoa se deita
se hoje é fria, sem esperança, amanhã encanta porque romântica...semântica..mágica!!

*

IV  Expresso da Madrugada

É o Expresso da madrugada
sobem passageiros            
assassinato de um conhecido
vêm jornalistas e curiosos
muita notícia especulativa
alguém matou gente
arma branca, esventrou garganta
no peito, uma facada afiada
o motorista fugiu pela calada
e o bófia faz de conta, que é nada


É o expresso da madrugada
     
vitoria corretiva
Cosmofobia, raposa velha
o cego e a venda
o leitor e a legenda
avante na ponta da lente
Quem lá passa não leva nada
Quem lá passa não leva nada
que a desgraça, pesa tonelada
é tragédia, em terra sem rédea
notícia sem sílaba verídica
medida que peca por tardia
cosmética para magistrados
o crime tem novos retratos

memoria coletiva, vitoria corretiva
Cosmofobia, raposa velha
a venda
o leitor e a legenda
avante na ponta da lente

Espero por ti, sigilo, zeloso
arranjos ou concertos,
trabalhador, honesto, procura, executa,
vidente ataca ladeira,
semanário, quadro idílico,
mediação, cabecilha,
100 km de fuga, perdeu-se, controlo
é crime, calote,
eu número, de sorte
fantasma, assinatura de um crime
lei pouco severa
enforcou amigo e saiu para comprar vinho
Assassinato de um conhecido


Deixo no Páteo uma carta
na teia de uma tarântula
Eclética, Esquelética
da cartola sai fonética
canais, temáticos
pombas, macacos, palhaços mágicos
sigilos, bancários, vasto património,
negócio fechado

É o expresso da madrugada
quem lá passa não leva nada ( objeto usado)
É o expresso da madrugada
quem lá passa não leva nada


Séculos e Artigos, e uma garrafa de plástico
ampulheta invertida, lógica do guardanapo
veio a coca-cola e o hambúrguer no prato
e a vermelho o passeio, silêncio temperado
o inimigo está entre nós, falemos de perigo
contágio, suicídio, contacto
oremos pelo consumismo, longa vida ao capitalismo
um brinde ao sensacionalismo,
isto sim é jornalismo


Jantamos aqui, ao lado, aquário peixe-mecânico
os anjos respondem, querida entupi o processo
de fato e gravata, casamos, nesta quarta
amante, filho e sarilho, ao fundo da página
isto sim é vida prática

É o expresso da madrugada
querida mãe da velha guarda
onde escondeste a chapa
da máquina que movia batalha


Joana Santiago, aka MC Santiago, é escritora, poeta, Mc e artista. Vem do coração do Alentejo e vive em Lisboa, Portugal. Publica regularmente no seu blogue