domingo, 14 de abril de 2013

O tipo e a noite

Recensão de os peixes melancólicos de Carlos Veríssimo

|Manuel A. Domingos




Nos últimos três anos tem havido o ressurgir do gosto pela tipografia com caracteres móveis. Exemplo disso são os projectos editoriais Oficina do Cego, Pianola e 50kg. Todos nós gostamos de sentir, no papel, a pressão das letras. Os objectos que nos chegam são preciosos: é o tempo de alguém que temos nas mãos, o seu amor à arte. No entanto, é preciso algum cuidado. Muitas vezes são mais apreciados os objectos do que o seu conteúdo, isto é, o texto. E na maioria dos casos, tirando algumas excepções (como é o caso), ainda é o texto que faz o livro.


Como sabemos, nisto da poesia e dos poetas, há sempre a tentação de situar o poeta. O poeta, como sabemos, não é alguém indiferente ao mundo e às suas coisas. O poeta, como sabemos, cumpre horários, trabalha, «tem frigorífico», dorme, come e tem necessidades fisiológicas. O poeta é alguém como nós. Carlos Veríssimo (1974) – para além de ser uma pessoa como nós – pode ser situado como um poeta amante da arte de tipografar. Prova disso é a sua estreia literária: os peixes melancólicos (Besouro, 2013). No cólofon podemos ler que os peixes melancólicos: «foram compostos manualmente, em caracteres de chumbo por rui damasceno, cosidos manualmente por maria do céu ferreira». O livro é composto por oito poemas e cinco fotografias originais, que têm como título o corpo ausenta-se do espaço – que podem ser “lidas” como um outro texto ou como um complemento aos poemas que as antecedem. Sete dos oitos poemas têm nove versos (o último poema tem onze), o que lhes dá consistência e um certo tom elegíaco – que não advém só da quantidade de versos, como é óbvio, mas também do ritmo impresso nos versos.

No entanto, arriscamos, ainda, situar Carlos Veríssimo como um poeta da noite. Contudo, não devemos confundir “da noite” como sinónimo de marginalidade, mas antes “da noite” inicial e onírica; “da noite” antes de tudo: «e o mar ressoa na minha cabeça como uma imensidão/de noites: Ah, as noites pétreas e pesadas/que impossíveis nuvens não sustentam» (poema II). A sombra de Herberto Helder paira em alguns dos versos: «homens que se decompõem verticais/perante o choro esperançoso das mães enganadas/a quem prometeram uma cura por trás de outras/palavras – sempre as palavras – de areia/e de vento e de água e de fogo sobre a terra fértil» (poema III). Em alguns poemas, Carlos Veríssimo assemelha-se a um arauto de um outro tempo. Um bom exemplo disso é o poema número V: «o fogo/esse deflagra com o rebolar dos corpos amantes/e com o sorriso das crianças – como uma grande luz/capaz de se fazer ver e ouvir onde é mais profundo/indolor e com uma inesperada facilidade.» (poema V). O fogo é uma ideia presente e constante. Mas não se trata de um fogo purificador; antes esse que é destrutivo e que apenas deixa cinza como sinal da sua passagem.

Mas Carlos Veríssimo procura sempre questionar, questionar-se: «E como pode existir algo para além de mim? não sei/se alguma vez o chego a saber e acredito/que só o saberei demasiado tarde.» (poema VI). É claro que, na maior parte das vezes, o questionar não origina respostas; apenas o adensar da certeza ou da dúvida: «Sou agora produto da mais recente invenção/do dia-a-dia que patina na engrenagem da consciência/e declino metamorfosear o negro pela luz,/uma empreitada tão cómica, quanto insuportável» (poema VII).

Se Carlos Veríssimo tivesse nascido dez anos antes, talvez pudesse ter figurado na antologia Sião: «Não tenho mais/como ir sem ser comida para os peixes melancólicos/que parecem sorrir, com aquele sorriso meliante/de quem pensa que tem o controlo das coisas./Felizmente estão enganados como todos//os outros//e não somos assim tão poucos.» (poema VIII).

Carlos Veríssimo, os peixes melancólicos, Coimbra: Besouro, 2013.