terça-feira, 23 de abril de 2013

No dia em que morri…

|Paulo Bandeira Faria


No dia em que morri
Um operário aqueceu as mãos numa fogueira antes de ir trabalhar
Duas pombas procuraram o sol para descansar
Uma nuvem só partiu sozinha
E uma árvore só quebrou a monotonia
De um horizonte gelado.
No dia em que morri
Uma ria esteve intensamente azul pela manhã
Mais cinzenta pela tarde
E à noite uma miríade de luzes aconchegadas no sopé da colina
Esparziram-se pelo espelho negro da água até esta margem.
No dia em que morri
Uma senhora bebeu um café já frio
À espera do amante que não veio.
Uma amiga tinha-a confrontado com esta pergunta:
– Já enganaste o teu marido?
– Já.
– E então?
– Da primeira, chorei; na segunda, não; na terceira, ri-me.
No dia em que eu morri
Ela saiu do café morta
Por chegar ao umbral da sua casa
E aí poder chorar livremente
Antes de entrar
E confrontar-se com um marido
Que nunca a beija.
No dia em que ela morreu, morremos ambos.
Um pai levou um filho pelas ruas num triciclo
Empurrando-o e sorrindo por o ver agarrar tão bem o volante
Um estudante olhou uma vez mais o exame
Aprovado, diante do pequeno-almoço que a mãe
Lhe preparou tão contente
De vê-lo com o curso quase terminado.
No dia em que morri nasceram muitas crianças
E outras mais podiam ter nascido, uma das quais
Com os meus olhos e o meu sorriso.
Na manhã desse dia
Muito longe, um homem enganou uma mulher que lhe vendeu
Um maço de tabaco numa rua cheia de lixo e movimento
Exigindo-lhe o troco do valor de uma nota que não lhe tinha dado.
Era fumador inveterado.
Na tarde desse dia, ia eu a conduzir,
O homem voltou a dar 20 à espera de exigir troco de 50,
Mas a vendedora só largou o maço depois
De lhe exigir que dissesse o valor da nota em voz alta.
Deu-lhe então o troco de 20 e o maço
(fazia eu uma curva fora de mão)
E disse-lhe:
– Quando o tiver terminado, estará morto.
O homem riu-se e acendeu o primeiro cigarro
Mas à medida que avançava o dia em que eu morri
Cigarro a cigarro, aumentava nele o medo
E logo um pavor irracional, e logo um pânico injustificado
Que lhe arrancava o sorriso cínico dos lábios
E a segurança de qualquer afirmação.
Na tarde do dia em que morri
Num café de idosos serviram uma água a um rapaz
Que telefonava para um hotel em frente.
O frio das pedras suportava
Eternidades de intempéries. Raios de luz
Repetiam-se em infinitas esperas
Uma cama esperava por ser desfeita
Um corpo esperava
Por beijos num canto da boca
E logo noutro canto da boca
E logo no centro da boca
Numa entrega sem restrições.
Na tarde do dia em que morri
Uma música de P. J. Harvey chamada One line
Tocou pela primeira vez nas rádios
Mas eu percebi On line e pensei escrever um texto dramático
Que deixarei para o início de outra vida.
No fim da tarde em que morri
Pela primeira vez telefonei para a rádio a pedir
Que a repetissem
E subi escadas até ao número de um quarto
Batendo duas vezes à porta
E a porta aberta trouxe a luz que já faltava
Ao fim da tarde desse dia em que morri
Contigo
Pela primeira vez.
– Desde então tenho morrido por ti todos os dias
Sem nunca saber se alguma vez nascerei para ti um dia...
Diria a mulher ao marido que nunca a beija
Porque já não pode dizê-lo ao amante que não veio
E um homem perdido
Atirou o maço com três cigarros à baía
E a chorar procurou a noite toda
Essa mesma noite em que eu morri contigo várias vezes
Para pedir a alguém que aceitasse o troco roubado no dia anterior.
Durou quanto tempo?
Durou quanto tempo a memória da noite em que
Em ti
Morri?
Durou quanto tempo a procura do homem
Desesperado por um cigarro,
Que na manhã seguinte foi encontrado
Numa rua com lixo e quase sem movimento,
Ao som de One line de P. J. Harvey,
Por uma humilde vendedora de cigarros avulso
E maços para os mais endinheirados
– ou os que já nada tinham a perder –
Com uma facada nas costas?
A noite em que morri
Uma infinidade de vezes
Matou-nos uma infinidade de vezes, cigarro a cigarro
Em impotências, equívocos e mentiras,
Sem noites em que chorasses comigo e outras em que te risses
Sem, simplesmente.
Passou um mês. Quantas vidas vivemos desde então?
Quantos fomos e sonhámos ser
Desde a manhã em que o operário começou o dia aquecendo as mãos
E terminou com alguém percorrendo as ruas em busca de perdão
Recebendo apenas uma navalhada
Longe, longe, mais longe que nós
On Line?

Um dia perguntaram-me:
– Quando sabemos que um poema deve terminar?
Na altura respondi:
– Quando está tudo dito.
Não está certo, vejo-o agora: um poema como este termina
Quando temos a certeza absoluta
De que nada está concluído
E tudo o que foi dito foram dúvidas.
Não saberei nunca quando termina este poema
Mas garanto-te que a recordação da noite
Em que contigo, em ti e por ti morri
Permanecerá para sempre.