quinta-feira, 14 de março de 2013

Um pouco fora do lugar


Entrevista a Susana Sánchez Aríns – parte dois

|Eduardo Estevez



 Logo interessa-me saber se, para além dos propósitos concretos de cada livro, há na tua obra uma intencionalidade mais global. Pergunto-te com isto em concreto pelas tuas preocupações vitais (o papel da mulher na construção do discurso, a ideia ou as ideias de nação, este tipo de coisas) mas também por como vês o teu papel ou o papel da tua escrita no tempo que lhe toca desenvolver-se.

Sou assim tão ingénua que ainda, apesar dos tempos que estamos a viver, acredito na possibilidade de deixar um mundo melhor para as gerações vindouras.
A terra da que se alimentam as minhas raízes foi semeada, irrigada e estercada por outras pessoas, algumas sabidas, a maioria anónimas. Deram forma a uma língua, uma cultura, uma comunidade. Língua, cultura e comunidade que hoje estão em perigo de extinção. Ao tempo, tocou-me em sorte nascer mulher, mas o acaso colocou-me numa região do planeta onde a questão de género implica menos perigos: pude estudar, sou uma pessoa independente social e economicamente e posso erguer a voz sem medo da represália.

Sinto-me em dívida com aquelas pessoas que me precederam ou que não compartem a minha fortuna; e só posso pagar a dívida com a participação social, cultural. Isso implica oferecer e partilhar com a sociedade o melhor de cada uma de nós. Fazendo democracia a pé de rua e a pé de verso. Como já te contei antes, sempre escutei que o meu melhor era a escrita, e eis que a ponho à disposição da minha comunidade. Ajudo a dar diversidade e riqueza à língua que é minha, à cultura da que faço parte, às pessoas com as que partilho o planeta; e coloco uma voz de mulher a abrir-se oco entre omnipresentes falares masculinos.
Neste mundo onde só parece importar o capital, a propriedade, o lucro e a utilidade reivindico a comunidade, o bem comum, o lazer e a inutilidade. Porque já sabemos que a poesia nom vale para nada. Quero contribuir a que a poesia volte a ser popular e tradicional. Afastá-la da torre de marfim em que foi encadeada por interesses espúrios.

  
Concordo com essa concepção materialista do processo de produção literária. Ora bem, entendo que se trata duma noção recente na história da literatura. Já que logo, costumo questionar-me como puderam configurar-se obras poéticas nas épocas em que o poeta era considerado um eleito (pelo mundo mas também por si mesmo), um iluminado.

Com dizem as avós galegas; o papel segura tudo quanto lhe escrevamos...

Eu não penso que seja uma concepção assim tão recente. Melhor dizer que só recentemente prevaleceu sobre outras (ou não, se atendemos a como agromam sisudas intelectuais que nos tratam ao resto da humanidade com funda condescendência).
A minha preocupação não está nas obras que foram escritas mas na ideia de poesia/literatura/cultura que é inoculada na população para vaciná-la contra a tentativa de fazer-se dona da(s) sua(s) voz(es). A história da literatura, como todas, é uma história de luta entre ideologias. E entre nós quase sempre imperaram as elitistas -a única vez que uma outra ideia de cultura chegou ao poder, foi arrasada por uma ditadura canibal e fascista. Se só uma eleita pode escrever versos, só outra (ou só a mesma) iluminada pode interpretá-los em toda a sua imensidade. E isso deixa-nos fora ao 99% das mortais. Mais, a iluminação fecha as portas a qualquer possibilidade de aprendizagem.

A poesia é uma velhota que toda a vizinhança respeita mas com a que ninguém pára a falar. Eu estou na escola no ensino secundário e reparo como os meus alunos herdaram essa ideia. Sei que é importante mas eu não sei entendê-la; para mim não é, eu não valho para este tipo de escritos; apõe-me menos o romance. É a mesma atitude com que são recebidos os meus livros polas pessoas do meu entorno que não fazem parte do universo leitor/escritor, enorme orgulho e medo a abrir a página: e se não percebo?
Obrigar-nos a encarar a obra de arte com medo, ou, quanto muito, prevenção é a grande vitória das ideologias elitistas. Comigo não o conseguiram no campo das letras, mas sim no da música, por exemplo. Esse cifrado estranho do que só umas escolhidas possuem a chave faz-me simpatizar com todas as pessoas iletradas ou alheias aos códigos literários.

Depois de uma geração maioritariamente mais culturalista nos 80, alguns críticos dizem que baixar a poesia do pedestal e chega-la à gente da rua é uma das marcas de identidade mais evidentes da chamada geração poética galega dos 90. Seguindo com esta perspectiva cronológica, parece que haveria que enquadrar a tua poesia na geração seguinte, a de começos do século. Esta geração parece querer distanciar-se desta opção, fazendo uma aposta mais intelectual (aprofundando, diríamos, a linha “ferriniana” ou “chuspatiana” minoritária nos 90). Não sei se concordas com esta descrição apressada; depois do que acabas de comentar gostaria de saber se te consideras parte da geração à que por cronologia parecerias pertencer ou a outra e, em todo caso, gostaria saber qual é a tua percepção sobre o conceito de geração literária nuns tempos em que parece que as apostas individuais primam sobre os posicionamentos colectivos.

Eu não me vejo nada ferriniana!! Se é provável que a minha obsessão com fazer-me entender é porque fiquei traumatizada com a leitura de Arnoia Arnoia (era mui novinha, tudo deve ser dito).
É certo que me sinto um pouco fora de lugar com respeito às poetas da minha geração; a minha maneira de evoluir fez que não tivesse contactos diretos com pessoas que andavam a escrever ou a encetar projetos culturais. Toda a minha relação com outras poetas, a nível literário, é uma relação leitora: a umas li, a outras não. Por isso vejo um pouco desnecessária a classificação assim tão cronologista das gerações.
Não é que a minha aposta seja individual, mas é certo que não faço parte de nenhum grupo (eu falaria melhor de grupos) ligado por uns estudos, uma revista, uma associação (A porta verde do sétimo andar) uma editora (Letras da Cal) e muito menos por uma idade comum. Boa parte das poetas com as que trato, dentro do panorama galego, chegaram a mim, ou eu a elas, por caminhos extra-poéticos, não por fazermos parte duma iniciativa comum em relação à poesia.
Além disso, a diversidade atual de vozes faz mui complicado estabelecer gerações. As ligações em muitos casos não são literárias, mas políticas ou sindicais -que acredito mais legítimas, na verdade, pois o feminismo, por exemplo, pode ser reivindicado desde posições literárias mui diversas. Falaria mais facilmente duma geração Prestige, por exemplo, que de culturalistas ou popularistas. Porque essa catástrofe meio-ambiental e a necessária reacção popular mexeu muito mais o mundo da cultura que qualquer manifesto literário.
O conceito de geração é muitas vezes enganoso, e as gerações acabam, em muitas ocasiões, nascendo forçadas pelos estudiosos, necessitados de taxonomizar tudo. Ponho um caso: se alguém pesquisar a minha história pessoal no futuro, daria com que, apesar da diferença de idade -sou lenta em muitas coisas-, fiz estudos de doutoramento com Mario Regueira, Samuel Solleiro, David Pobra ou Lorena Souto, escritoras que eu sim colocaria num grupo ligado aos Violentos Anos Dez, que cantam os Ataque Escampe. Mesmo Mario e Lorena ganharam o mesmo certame poético que ganhei eu, noutras edições. O simples seria colocar-me a mim nesse grupo, quando, apesar de as conhecer, de parte delas integrar a editora que publicou o meu aquiltadas, nunca tivemos, por exemplo, uma conversa comum sobre a escrita, o sentido da poesia ou o nosso possível posicionamento colectivo, coisa que, penso, elas sim têm feito. Aconteceria algo semelhante com María Reimóndez, outro caso. Naquela viagem a Tamil Nadu da que te falei também participou ela, enquanto presidenta da ONG e mediadora. As nossas conversas sobre literatura limitaram-se a nenhuma. Mas é provável que alguém sinta a tentação de colocar-nos num mesmo grupo literário.
Estabelecer gerações, para mais, uniformiza, comunica uma ideia de univocidade perigosa. É como quando somos colocadas as mulheres na mesma sacola da literatura feminina, ou de mulher. Ainda que tenhamos interesses diversos, umas e outras!

Para fechar, falemos de caminhos: ouvi por aí que estás a trabalhar (ou a pensar começar a trabalhar) num novo livro e que, desta vez, vais experimentar a prosa. Conta-me algo desse projecto.

É um projeto que está a ser interrompido continuamente por outras aventuras, em aparência menores, que, no melhor, dão fruto antes.
Outra vez a maldita guerra! Há tempos que queria pesquisar uma história privada relacionada com a repressão de 36. Porém, como é uma história mínima, de pessoas quase anónimas, não posso abordá-la desde o campo da história, que era o que eu desejava, porque não tenho achado quase documentação oficial em julgados ou arquivos históricos. Só conto com testemunhas orais indiretas, de segundas e terceiras gerações. Assim que a maneira que tenho de contar essa história, cheia de lacunas e ocos em negro, é indo pela fabulação do discurso literário. E nisso ando. Mas estou certa de que antes de finalizar esse projeto, outros nascerão e crescerão e florirão, porque aqui a dificuldade é evitar que a fabulação eclipse o facto histórico, que a leitora saiba sempre onde começa uma e acaba outro, mas evitando o pastiche. Para mim, algo complicadinho.