quarta-feira, 6 de março de 2013

Um poeta pelos pulmões


|Alexandra Malheiro

Agora os dias são mais curtos, não sei se pela força do calendário, a aproximação da Invernia, se por nos teres deixado assim, tão desavisadamente, a olhar o vazio, o buraco negro por onde partiram as palavras. Levaste-as contigo, decerto.

Agora que aqui não estás, o que dizer (ou pensar, que sei eu?) sobre a vaga de frio que vem com o Outono, da gramática que nos falta porque nos faltas, dos poemas todos que ainda estão por escrever?

Agora que a cidade sussurra a tua ausência, as bibliotecas choram-te em silêncio, “porque o resto é silêncio (que resto?)”, elas sabem que não voltarás a dar nome às palavras, nem voltarás a abrir-lhes os livros, que nem Milne, nem Borges nem Céline  te trarão de volta dos mortos agora que talvez tenhas achado  “um lugar onde pousar a cabeça”.

Depois de tu partires têm acontecido coisas estranhas, o sol, que andava arredio, veio espreitar por entre as nuvens, a certificar-se que seguirias o caminho da luz, há amigos que discutem pensos da alma por sms e sonham com garças reais em paisagens de rio, outros que se encontram em estações de serviço de auto-estrada para discutir filosofia e literatura. Talvez estas coisas já acontecessem mesmo antes da tua morte, eu sei, mas não lhes dávamos o devido valor, talvez esperássemos que viesses tu fazer delas uma crónica ou um poema, talvez um poema onde coubesse uma pétala, ou talvez não, talvez um que um de nós despetalasse ou um que nos explicasse como se “entra no amor como em casa”.

“Aos Domingos não se enterram os pobres” disseram, talvez por isso não te enterraram. Esperava que houvesse honras de estado na tua partida, todos os que não te leram, um  presidente da república compungido, um primeiro-ministro lacrimejante, dois ou três ministros de gravata preta e discurso preparado, a bandeira nacional a meia-haste e uma salva de tiros pum, pum, pum, a marcar o evento. Não houve. Não te ofereceram essa ironia final com que glosar. Fiquei com pena pelos tiros que haviam de assustar gaivotas em múltiplas direcções, ficaria mais estranho ainda o céu, com um bando de pássaros perdidos e agitados a esbracejar (têm braços as gaivotas?).

“Aos Domingos não se enterram os pobres”. Dois poemas, teus é claro, antecederam a entrada na pira onde todos os poemas e todas as palavras ardem, como antes ardiam em ti. É apenas isto, nada mais do que isto, pó e cinzas, nada mais.

“É cada vez mais pesada a paz dos cemitérios”, dirias. Afasto-me devagar, a chaminé liberta os seus primeiros vapores, o fumo incomoda-me, faz-me tossir e pela primeira vez dou-me conta que acabara de me entrar um Poeta pelos pulmões.