sábado, 2 de março de 2013

Mesa do Canto – Sobre chuva miúda e a “memória possível” de Gomes Ferreira


|Alexandra Malheiro

Os dias vão correndo estranhos também no meu café. A chuva miúda teima em pegar-se aos vidros e, com ela, se esvai a nitidez para lá da montra. A mim mói-me por dentro este chuviscar constante.
Leio uma coisa aqui e outra ali, avulsas, sem conseguir traçar entre elas uma credível teia que possa alinhavar-se em crónica, uma que possa partilhar convosco. O Carnaval é um penumbroso tempo de chuva, esquecido de um feriado que nunca o foi bem, os foliões recalcitrantes guardam as fantasias nos guarda-fatos derivado ao mau tempo, enquanto palhaços bem vestidos continuam a perorar no horário nobre da televisão. O Papa renuncia ao seu pontificado enquanto no mesmo dia um fotógrafo capta um raio a atingir a Basílica de São Pedro. Na rua onde o meu café está instalado há vários indigentes mendigando uns trocados, a miséria é a de sempre.


Enquanto o cimbalino me aquece leio o VI diário dos dias comuns do enormíssimo José Gomes Ferreira – “ Memória Possível” é o subtítulo do volume agora dado à estampa pela D. Quixote. Não façamos confusão, por favor, falo do autor de “Poeta Militante” e não de qualquer palrador de economês politiquense. E, se dúvidas eu tivesse em relação à extraordinária clarividência daquele homem e sua capacidade até de antever futuros, tê-las-ia desfeito neste pedaço de prosa qua a páginas tantas surge, a propósito da sua descoberta de um jogador de futebol que levava o seu nome, “Gomes Ferreira” e, levando em conta a existência de pelo menos dois professores com esse nome, um mau desenhador e um locutor, todos portadores desse nome, o Zé Gomes acabava concluindo à laia de auto-consolo: “Ao menos assim, na lista telefónica perco-me numa multidão, sempre escondido atrás de mim mesmo. Anónimo e livre. Com um perfil que, afinal, só eu conheço. Ou desconheço.”

Ler José Gomes Ferreira é um vício que adquiri há muito, tudo se aprende nesta escrita diarística que vai descrevendo desde as suas coisas mais pequenas e afectivas à forma como constrói e desconstrói poemas. São também, estes diários, compêndios de história próxima. Ainda nem cheguei a meio e já nos reconheço tão profundamente, a nós, portuguesinhos apertados pela mesquinhez salazarenta, 48 anos de miséria inculta e deseducativa da qual nunca nos recompusemos verdadeiramente. Se hoje estivesse connosco, a viver os tempos troikianos, o Zé Gomes escreveria ainda sobre o mesmo miserando portuguesismo despolitizado e imbecil, fruto de uma educação que anos e anos de Salazarice nos legou. Dizia ele sobre o ditador “Quanto ao povo queria-o como quando o conheceu em criança, nas Beiras: humilde, curvo, chapéu na mão, cabeça baixa, pontapés no rabo… Hospitais? Maternidades? Para quê? Para aliviar os familiares do sofrimento? – acusava ele numa entrevista parola”. E eu a remoer um amargor de alguma coisa que me lembra o presente.

De tudo o que já li neste diário, o corolário vitorioso, porém, é este com que fecho a crónica. Atentai, pois:
“Agora mesmo, sintonizei por acaso a estação clandestina “Portugal Livre” (oriunda de Praga, suponho), onde uma rapariga com voz de exaltação quase histérica incitava aos gritos os portugueses a virem para a rua combater, lutar, morrer, construir barricadas…
Mas isto é connosco? – perguntei a mim mesmo, pasmado com estes heróicos revolucionários emigrados que ignoram o facto comezinho da despolitização geral do nosso povo, que não se quer bater por coisa nenhuma. 
Liberdade, sim – mas oferecida numa bandeja. E mesmo assim com a condição de saber a tirania disfarçada!”