quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sem notas de rodapé - Os homens arrumados em três gavetas

|Maria João

Há cerca de um mês tive oportunidade de conhecer a teoria proposta em 2004 pelo psicólogo americano Barry Schwartz, na obra The Paradox of Choice: Why More Is Less. O autor defende que a garantia da liberdade de escolha associada à multiplicação de opções, sustentada (não só, mas também) pelas plataformas comerciais, transformam o homem contemporâneo, paradoxalmente, num ser mais infeliz. A razão é simples: o universo a partir do qual se elege um ser ou um objecto tornou-se de tal modo vasto que o processo de selecção provoca ansiedade e exaustão, em resultado do aumento assinalável da possibilidade de errar. A hipótese de Barry Schwartz faz de imediato sentido quando nos recordamos do tempo que despendemos a percorrer um longo corredor do Jumbo que albergue todos os tipos de géis de banho ou desodorizantes disponíveis. Por instantes, não vos parece sedutora a ideia de uma prateleira com apenas três variedades de elixires bucais?

Pragmática como sou, decidi tentar simplificar a vida a metade da humanidade, rotulando a outra metade – os homens – em três categorias. Um trio de gavetas, em que os possamos arrumar e retirar de acordo com as nossas preferências, sabendo, previamente, a composição, a posologia e as contra-indicações de cada espécie. Trata-se, é claro, de um exercício de aberrante redução e definição de um campo complexo, com múltiplas variáveis. Embora consciente do seu carácter falível e artificial, não resisti a pô-lo em prática.
Suficiente experiência pessoal e abundantes conversas com ambos os sexos (uma amostra inválida para se extrair uma lei geral, bem sei), evidenciam a existência de três gavetas. A primeira, acessível assim que nos abeiramos da cómoda, ao nível da cintura, abre-se com a maior das facilidades. Lá encontram-se os “cordeirinhos”. Estes homens, geralmente com uma auto-estima em alerta vermelho, dão tudo o que conseguem à mulher com quem estão. Inclusivamente, as «calças». Dependem delas para planear o dia seguinte, são pisados e não ripostam. Ideais para pessoas que se satisfazem com a manipulação, o controlo e o apagamento dos outros, tornam-se, porém, desinteressantes para quem gosta de uma relação equilibrada, com partilha de decisões e um cultivo saudável de agendas pessoais e interesses próprios. Os “cordeirinhos” possuem, com frequência, consciência da assimetria dos contactos que cultivam. Podem, até mesmo, mascarar-se, numa fase inicial, de lobos maus. No entanto, mais cedo ou mais tarde, assumem a única postura que julgam garantir um final feliz: a da auto-anulação. Esta gaveta permanece eternamente vazia ou ocupada.

Sabiam que, quando temos três cartas viradas ao contrário, a maioria das pessoas inclina-se para virar a do meio? De facto, o sucesso da gaveta intermédia deve ser reconhecido. Habitam-na os “bodes”. Trata-se do espécime masculino da cabra, popularmente conhecido por outro vocábulo. A sua associação iconográfica à figura do diabo é estabelecida com firmeza na Idade Média. Não por acaso. Os “bodes” detêm um poder de sedução e conquista de almas comprovado há séculos. Descobriram e praticam até à exaustão o Santo Graal da captação do interesse de uma mulher: o coice, conhecido, na gíria, como o acto de “dar para trás”. Seguras ou instáveis, mais ou menos instruídas ou favorecidas pela mãe natureza, todas lhe vão comer à mão. Até ele deixar de estender, sem aparente motivo compreensível, a sua pata dianteira. Ou até a mulher recuperar amor-próprio suficiente para o mandar pastar. As estatísticas indicam, porém, a clara prevalência do primeiro desfecho. Deduz-se, com facilidade, que nesta gaveta, jamais repleta, se acha sempre alguma coisa, um pouco de tudo e de nada. Multiusos, não pertence a ninguém. Tudo o que couber pode potencialmente ser lá colocado e, regra geral, esquecido.

Por fim, na gaveta mais abaixo, aquela cujo acesso exige algum esforço (pelo menos o de dobrar as costas e, portanto, mudar a nossa linha do horizonte), residem os “cordeiros místicos”. Constituem o exemplar mais raro e difícil de descrever. Ironicamente, uma vez na sua presença, reconhecemo-los de imediato. Balanceiam, com naturalidade, o dar e o receber, a autonomia e a entrega sem reservas, a determinação de quem sabe o quer e o olhar compreensivo perante o mundo. Não receiam ser exigentes consigo e com os outros. Sabem o valor de um abraço. Defendem uma paridade construída dia-a-dia. Fazem desabrochar o que de melhor há na sua parceira.

Infelizmente, esta gaveta apresenta-se, na maior parte dos casos, cheia, comprometida já com qualquer utilização. Poucas vezes bem arrumada, é certo. Os “cordeiros místicos” são traídos pela sua esperança num encaixe perfeito. Insistem em tentar. Nesta gaveta alojam-se objectos grandes ou pequenos demais. Uma gaveta que, quando semi-ocupada, se sente vazia. Uma gaveta que, contendo algo volumoso e conscientemente desajustado, permanece sempre entreaberta, esperando, em segredo e no limiar mínimo da fé, o dia em que uma única peça a complete.

Todos os exercícios de interpretação da realidade desafiam-nos a reflectir até que ponto a nossa contextualidade afecta a validade da grelha conceptual adoptada. Preciso, precisamos todos, de desconstruir as nossas cómodas ou, pelo menos, de reconhecer que não existem gavetas estanques. Um “bode” pode ser um homem que se fartou de ser “cordeirinho”. É possível um “cordeiro místico” ressuscitar de um passado como “bode” ou “cordeirinho”. As experiências moldam-nos e cada pessoa desperta em nós reacções diferentes, por vezes mesmo antagónicas.

Os três substantivos são categorias puras, teóricas, extremadas, impermeáveis. A realidade, essa, é feita de contaminações. Homens – e, acrescente-se, mulheres – já se aproximaram, diria eu, em alguma situação da sua vida, de uma das tipologias referidas. Ainda assim, ao ler a crónica deste mês, o mais provável será sentir que não coincide com nenhuma na perfeição. Catalogar, classificar, etiquetar é a ferramenta mais velha para tentar lidar com o que nos cerca. Falha? Constantemente. E, porém, todos a aplicamos no nosso quotidiano, com maior ou menor consciência. No limite, trata-se de um mecanismo de sobrevivência: depois de atacado pelo primeiro tigre, o homem activa um pré-conceito assim que vê um segundo tigre, mesmo que infinitamente diverso. Talvez a vida na Suécia seja diferente. Na minha, suspeito que na nossa, nem o IKEA consegue oferecer soluções de arrumação convincentes.