quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O voo ignorado

|André Domingues

Na manhã gelada de 4 de Fevereiro de 1912, um conhecido costureiro austríaco, reúne vários amigos e personalidades da época diante da Torre Eiffel. Também lá estão os jornalistas e duas câmaras de cinema instaladas em sítios estratégicos, prontas a registar o momento e a proporcionar-lhe uma vida infinita depois, pelas artes mágicas da reprodução. Reichelt sobe ao primeiro piso da Torre (cerca de 60 metros de altura) para, por fim, pôr em prática a validade exaltada do seu invento, uma espécie de pára-quedas inspirado na perturbante anatomia do morcego que, segundo os seus cálculos fiéis, o traria de regresso a terra, alegre e ileso, com a gentileza de uma pena e a segurança gloriosa da eventualidade. 
Ao contrário daquilo que à primeira vista poderíamos pensar, o desfecho que se segue constata, paradoxalmente, o seu sucesso sonegado. Reichelt falha redondamente a ansiada aterragem perfeita, a sua invenção jamais seria adoptada e melhorada pelo mundo e pela indústria dos pára-quedas, mas acerta em cheio no seu segundo propósito, e talvez o mais sério, que era morrer. No fundo, Reichelt desvia todas as atenções sobre o seu suicídio, porque aponta os holofotes para uma façanha ignorada. Para poder manter-se na sombra do seu verdadeiro êxito, mesmo com o mundo inteiro a olhar para ele, Reichelt impõe uma única perspectiva dos acontecimentos. E o mundo só vê a desgraça e a queda acidental de Reichelt. 
Porque, como dizia Wittgenstein, sobre aquilo que não se pode falar, devemos calar. 
E Reichelt calou sempre.