segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Memento mori

|André Domingues

Eis a memória do teatro-anatómico, a comédia desenganada dos nossos actos. Um artista, um performer, um homem atlético e saudável, cheio de qualidades, aliás, interpreta o papel da vítima de um colapso. Está deitado na bandeja do asfalto, repousa motu proprio, inanimado, no chão. Faz-se de morto. Deixa-se trespassar pela curiosidade mórbida de quem passa. A rua é muito movimentada. Em breve ele fabrica ao seu redor o círculo apócrifo do socorro ignorante. Até que alguém perfura subitamente o círculo e grita que é médico, a única fórmula de socorro autorizado.
O homem que grita que é médico também é um actor. Ajoelha-se ao lado do homem deitado, mede-lhe o pulso, olha para o relógio, depois para as nuvens, depois para a multidão, novamente para o relógio.
A menos de cinco metros de distância outro homem cai desamparado no chão. Abre-se um novo foco de curiosidade. Repetem-se os mesmos passos: gente aflita em redor, alguém que surge da multidão capaz de atestar a gravidade do colapso.
Em pouco tempo aquela rua enche-se de homens caídos no chão, gente à volta, médicos impostores, falsos diagnósticos de morte súbita confirmados. Alguns espectadores não aguentam a violência do espectáculo, ficam feridos na sua sensibilidade e começam realmente a desmaiar. Também há gente à sua volta. As pessoas reagem maravilhosamente ao furor do espectáculo. Pela primeira vez, no entanto, entra em cena uma equipa de médicos verdadeiros. Os médicos verdadeiros imitam os médicos impostores, mas o seu talento para a representação é frágil. O espectáculo torna-se redundante, o público aborrece-se, a multidão começa a dispersar.