sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Editorial: Da vida e da morte num país que acaba

|Luís F. Cristóvão

Muito antes de este ser o dia de visitar os mortos, eu acordava bem cedo com a excitação de ter um saco do pão, em pano, pronto, para sair de casa em busca do “pão por deus”. Era um hábito forte e enraizado na aldeia do meu pai, onde o feriado do primeiro de novembro também marcava o aniversário do grupo desportivo, e juntava toda a gente da aldeia, em bailes populares pela noite e jogos de futebol no campo pelado durante a tarde. A manhã, essa, era das crianças, à solta pelas ruelas, ao “pão por deus”.

Foram dezenas e dezenas de rebuçados, bolachas, broas, chupa-chupas, línguas de gato… Na casa de algum primo, uma moeda de 25 escudos, um verdadeiro tesouro prateado, porta para uma série de outras guloseimas ou pequenas compras durante o resto do dia. No café, lembro-me também do “pão por deus” significar uma ou duas carteirinhas dos calendários da bola, onde bigodudos jogadores apareciam prontos a ser colecionados religiosamente, guardados numas capas que estavam sempre perto de mim, no meu quarto, ao acordar.

Muito antes de este ser o dia de visitar os mortos, este foi o dia de festejar a vida. Depois crescemos e saímos de casa para caminhar por cemitérios, em silêncio, em busca de palavras que imaginamos ecoar pelas copas das árvores que, nestes dias, nos protegem mais da chuva do que algum raio de sol envergonhado.  Mas isto, também era dantes.

Hoje ficamos em frente aos computadores, a exercer o mesmo trabalho de um qualquer outro dia. Hoje ficamos presos nas repartições, nas salas de professores, nos balcões das lojas. Hoje não há vida, nem morte, que nos valha. Por algum tipo de negociação que nos custa a perceber, apagaram do calendário um dia que, para mim, não era religioso no sentido canónico de uma qualquer Igreja, mas que fazia e continuará sempre a fazer parte da religião da minha memória.

Hoje ficamos apenas por aqui. Num país que acaba.