sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Algumas lições das Substâncias Perigosas

| Pedro Eiras

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Onde se defende que a vida é sonho

            Algures na Poética, Aristóteles sugere que a tragédia permite a catarse, ou purificação, de sentimentos opressivos. Na verdade, não sei se compreendemos Aristóteles: porque já não vivemos na Hélade, porque não podemos assistir às estreias de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, porque às vezes pensamos os aristotélicos antes de pensar Aristóteles. Quanto à catarse, correram rios de tinta, e mais ainda depois de haver Freud, e a sublimação, e o psicodrama…

            A verdade é que ninguém pode saber muito bem de que se trata aqui: a tragédia é “imitação de uma acção de carácter elevado (...) que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito uma purificação dessas emoções”, Poética dixit. E dixit com génio, claro.

            Mas, no fundo, pergunto-me se a tragédia, a poesia, a literatura servem tal apaziguamento. Que senti ao ler O Rei Édipo? E Crime e Castigo? Suscitaram em mim terror e piedade, sim, mas não sei a que posso chamar “purificação”. Porque esse terror, essa piedade – carrego-os comigo desde o instante em que li Sófocles e Dostoievski. Nenhum regresso a um estado purificado, um estado sonolento original.

Freud, defendendo que o sonho é só uma perturbação necessária do sono, um ajuste de contas com as pulsões e os dias, pressupõe esse estado neutro, vazio, alheado, que seria a pacificação absoluta pós-literatura.

            Todavia, a crer em Calderón, a vida é sonho, não sono.

            Talvez a literatura não purifique. Talvez deixe o leitor naquele estado de maldição a que a antropologia chama tabu. E desta vez nenhuma quarentena o pode recuperar para uso social. Fica indelevelmente impuro.

            Mas não há que lamentá-lo. O leitor procura formas de loucura inoculáveis, é capaz de pagar por elas, não dormir por elas – até matar por elas. Quer tornar-se capaz de literatura, conhecer o terror, a piedade, pranto e ranger de dentes, ser digno de ser vítima do livro. Não é pequena missão.

            Escolhendo na estante, o leitor pergunta: será este o livro que me trará o terror e a piedade? será este o livro que me trará a morte? poderei sobreviver-lhe? E sabe que a solução da sobrevivência tem de ser inventada de cada vez, porque a doença inoculada é única, nunca existiu. O que ele procura não é a purificação. É o insustentável. Quer tornar-se digno do insustentável. Só deve ler se for capaz de viver o livro até morrer por ordem dele.


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Pedido

            …uma tragédia que enraizasse o terror, um poema que incendiasse a piedade…

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Medidas anti-pedagógicas

Há ainda outro modo de dizer o mesmo.

            Estou a pensar num livro de Daniel Pennac que encontrou muitos leitores há alguns anos. Defendia algo a que chamava, como numas novas tábuas da lei, os dez direitos do leitor. Enumero alguns, de cor: o direito de saltar páginas, de deixar um livro a meio. O prazer do leitor ficava salvaguardado pela liberdade contemporaneíssima de dispor do livro como entender – podendo até abandoná-lo. Eis como partimos o mar da literatura em duas metades e passamos pelo meio, soberanos Moisés em busca da terra prometida.

Mas Moisés morreu sem chegar ao seu destino.

            Reivindicar os direitos do leitor, eis a última emancipação. O escravo quebra as grilhetas. Mas então, porquê só dez direitos? Por que não também o direito de usar os livros como calços de mesas coxas?

            Pelo contrário, entendo que o leitor não tem direitos nenhuns. A sua única soberania consiste em obedecer. E não é pouco. Não pode abandonar o livro, nem saltar páginas. A leitura é monacal: inventa um claustro, regras, votos. Exige ao leitor que morra para o mundo, que se emparede entre as páginas.

            Se fizer com o texto o que me apetecer, limito-me a cumprir o meu desejo. Não leio, só existo tal como sou. Mas ler é deixar de existir.

            Sob pretexto de libertar o leitor, Daniel Pennac destrói-o, educando terroristas da leitura que vão apagando as descrições em Eça, saltando as digressões em Musil, simplificando o vocabulário em Aquilino, “corrigindo” a pontuação em Saramago. Pelo contrário, acredito que o texto pode quase tudo, e o leitor quase nada. Ler é obedecer. Se Daniel Pennac mata o leitor, é porque, ao dar-lhe todas as liberdades, o condena ao tédio. Apenas vive o texto que nos contesta.

            Aonde quero chegar? Aqui: se soubermos ler, sabemos que a literatura pode tudo sobre nós. Incluindo matar-nos. Devemos tornar-nos dignos da ameaça.



Substâncias Perigosas, Pedro Eiras, Livrododia Editores