quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A Cura

|Pedro Eiras

Começar a ver os outros como doentes e como mortais foi só metade do meu mal. Desatei a sentir as doenças e a mortalidade também em mim. Descobria sintomas ao espelho, no meu reflexo. Estudava-me agora mais do que aos compêndios, ora porque tinha a realidade presente e clara no meu próprio corpo, ora porque não valia a pena estudar, se ia morrer tão cedo. A morte, cogitava, não acontece só aos outros; aliás, é só a mim que acontece. Dos outros, posso medir uma pulsação que deixa de bater, um cérebro que perde a actividade, mas isso é só uma linguagem, signos, números. E estudava a minha cara fúnebre ao espelho, a tabela das minhas febres, uma mancha suspeita que aparecera na minha mão esquerda.
Claro, já tinha ouvido falar da hipocondria que assalta os estudantes de Medicina. Já me tinham profetizado estes medos; e eu próprio achava divertida a ideia, e declarava-me pronto para o terror. Tratava a hipocondria com a mesma abstracção que me fazia estudar os órgãos desenhados nos compêndios, sem encontrar um elo entre o desenho e a realidade, ou entre a realidade e o meu corpo enquanto coisa real. Antes da experiência, a hipocondria tinha tanta existência para mim como a dor tem relação com a palavra “dor” escrita nos livros. Mas durante a experiência, como acontece àquelas figuras das comédias que só fanfarronam enquanto o perigo está longe, esqueci todos os avisos cheios de teoria e deixei-me afundar no pavor infinito.
Foi então que conheci a Rita e que li o Eclesiastes.


(pp. 10-11)

Mas agora devo falar do meu Mestre.
Um dia, muitos anos depois, comecei a estudar psicanálise com o Professor Wagner. O Professor gostava de ouvir as óperas do seu ilustre antepassado: tinha no gabinete da Faculdade um gira-discos sempre a tocar excertos de Tannhauser, dos Mestres Cantores de Nuremberga, do Parsifal. Media quase dois metros. Deixava crescer os cabelos para lá dos tamanhos tacitamente previstos pela academia, e uma barba grisalha e caótica. Entendia que lhe cabia estabelecer as regras. Quando não faltava inesperadamente, prolongava as aulas muito depois da hora, e ninguém se atrevia a deixar o anfiteatro. Leccionava Psicanálise e Religião, analisava páginas de Totem e Tabu, de O Futuro de uma Ilusão, de Moisés e o Monoteísmo, subscrevendo as críticas mais perturbadoras de Freud ao cristianismo, escandalizando os ouvintes, deixando entrever que achava o próprio Freud tímido na desconstrução do divino. Recusava o microfone: tinha uma voz tonitruante que alcançava as últimas filas. Nos corredores, era fácil adivinhar que o Professor Wagner se aproximava: ao longe, parecia um navio a furar as ondas de alunos; vinha sempre a falar alto com alguns orientandos que mal o podiam acompanhar, explorando um conceito, disparando sugestões bibliográficas. E às vezes, se escasseavam os discípulos, trauteava um tema do Tristão e Isolda.

pp. 47-48


A Cura, Pedro Eiras, Quidnovi Editores