quinta-feira, 20 de junho de 2013

A casa que fala

|Rute Castro


Emília,

três vezes, as bocas das coisas caladas, quando tudo susteve a respiração, a água parou o reflexo, também a minha voz por falar, também eu por dizer, mas três vezes, as mãos, os pés, nós, os dedos nos dedos, a solidão por me acompanhares, o peso gelado de uma noite sem fim, os olhos abertos à escuridão, o coração, preso, o coração, mãos nas mãos, escada abaixo,

Emília,

a mão estendida ao reencontro, a palidez do momento, as folhas estáticas lá fora, suspensas, por viver, os rostos dos vizinhos, as rugas de espera, os gritos interrompidos entregues ao espanto da casa, hirta, a engolir a memória, minutos caíam de esperança em gotas que alcançavam a terra, a mão estendida ao reencontro, três vezes, o toque, eu a fugir de mim, o meu corpo primeiro do que eu, o confronto dos tempos que se tocam, pelos dedos, o contágio abraçado pela solidão, a mão estendida, três vezes que ouvi,

Emília,

e eu a aproximar-me, como se me aproximasse da dúvida, a confusão a estremecer a vontade, as plantas a crescerem em volta da casa, como cresceram os séculos, os séculos em que não vi, o rosto, os meus olhos, a casa, três vezes, por detrás da porta, translúcida, as mãos nas mãos, as plantas a enlearem-se por dentro, horas que seriam séculos,  o tempo transportado à ilusão, a voz que me aproximava, a música das montanhas a embalar a morte, aproximei-me,

Emília,

nos meus olhos, na resignação dos animais , na rua deserta, no cansaço dos vizinhos à janela. As dálias, as orquídeas, as rosas, por toda a casa, os buracos abriam-se à possibilidade, três vezes, juro que foram três vezes, antes do sol, eu à minha porta, os dedos nos dedos, o tecto pedinte de chuva, as plantas, o caminho só de ida.
Percorremos a memória, o pertencer, mãos nas mãos, eu ao meu ouvido, o caminho que não volta, o reencontro, a memória como que plácida a apertar-me por dentro, de maneira a que me encolha perante mim, a que me esconda dos meus olhos, da porta, da mão estendida, da história da casa que fala.