quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Sem notas de rodapé – Sobre o vício

|Maria João

Escrevo-vos em abstinência. Entenda-se: estado de privação de um vício prejudicial a vários níveis. Esta crónica é destinada a viciados e não viciados. Para os primeiros, na expectativa de que se reconheçam e tirem daí as consequências que quiserem. Dirigida aos segundos, na tentativa de que nos compreendam.

Seja qual for a forma que assuma, o vício constitui um espaço – diria um dos raríssimos espaços – de individualidade suprema. Naquele acto está-se consigo próprio apenas. É algo onde mais ninguém entra nem reclama posse. Como um outro eu, a adição possui uma inteligência emocional autónoma. Conhece-nos e sabe exactamente o que precisamos em cada altura. Amplifica as boas sensações. Analgesia os momentos mais solitários. Nela encontramos sempre o que se procuramos. Sem perguntas. Nunca nos obriga a traçar a fronteira entre o certo e o errado. Não nos confronta com o intervalo entre o que somos e o que queremos ser. Alimenta, simplesmente, a necessidade de evasão. É, ao mesmo tempo, um mecanismo de fuga e de suporte da realidade. Anestesia-nos. Como escape que representa, previne o desvio radical. Garante mais uma dezena de voltas submissas, arrastando o peão no tabuleiro da quotidianidade. E perante o cansaço da mesmidade diária, o vício sente-se como um direito. Conquistado, merecido, legítimo.

O que mais me intriga e frustra no vício é o sistema teórico que construímos para o sustentar. Longe de ser um estado transitório de loucura, uma avaria no fusível da sensatez ou um distúrbio mental que nos torna inimputáveis aos olhos da lei, o vício convive com a nossa racionalidade. Temos plena consciência dos seus efeitos adversos. Não somos nem nos sentimos «nós» quando em privação. A dependência é palpável, corrói ainda que possa ser disfarçada. Sabemos as causas e verificamos a degeneração. Odiamos o eu viciado, sentado no canto oposto do ringue. Convencemo-nos a iniciar o combate. Marcamos uma data. Repetimos este procedimento até perder conta das vezes, embrulhados numa guerrilha travada interna e diariamente. Fracassamos. Quebramos promessas com auto-desilusão, mas sem arrependimento. Proferidas por nós, são nossas por descumprir. Existe algo de profundamente satisfatório em cometer um erro. Ponderadas as contribuições positivas que, dia-a-dia, lutamos por alcançar, torna-se tentador e libertador o acto de nos prejudicarmos a nós próprios. Uma dor que se suporta porque somos os seus únicos receptores.

Nestas ocasiões gostaríamos de ser dementes ou alienados. No entanto, todos os regressos à estaca zero ocorrem sob a luz da mais perfeita lucidez. Acarretam, por isso, doses consideráveis de censura e de repúdio pela parcela do cérebro que foge ao nosso controlo. E é neste culminar da evidência de fragilidades próprias que, porque humanos falíveis que todos somos, abraçamos de novo a adição temporariamente ausente.

É incrível o vazio que um vício dominado deixa nas nossas vidas. Talvez mesmo só proporcional, por estranho que pareça, ao quão ocos nos sentimos imediatamente após o seu consumo. É um substituto sem substituição possível. Quando gasto, resta aguardar o reencontro, no qual se deposita a esperança de que ele apague, desligue, interrompa. Seja o que for. Diferente, por certo, para cada um.

Não prometo que amanhã não caia. Conto cada dia como uma vitória, mas não agendo festejos nem prevejo remissões totais. Desconfio de mim própria. Sou polícia de mim mesma.