domingo, 9 de fevereiro de 2014

Os intrépidos portugueses que gostam de apanhar com água nas trombas

|Alexandra Malheiro

A tempestade Hércules que nos tem assolado em todas as suas quatro (e quantas mais, meu Deus, quantas mais?) investidas, se parece não ter servido para mais nada senão destruir património à beira-mar plantado e nossa paciência – pelo menos para quem como eu tem um limite muito finito para tempo cinzento e chuva persistente agravada com vento forte; teve um, chamemos-lhe mérito – ainda que a contragosto – de nos mostrar quão intrépidos, temerários e ousados são os tugas. Numa época em que achávamos já que “o melhor povo do mundo” era de facto um povo mortiço, sem ânimo, sem genica, acobardado no medo de perder o emprego, de se manifestar de outro modo que não nas redes sociais e na mesa do café, um povo, enfim, sem espinha dorsal, sem estamina, uns amorfos. Pois se nos roubam no ordenado, nos impostos, nos feriados, nos dias de férias, na segurança no emprego, se nos atiram precaridade, nos empurram fronteira afora, nos prometerem mais e melhor austeridade, nos saqueiam persistentemente vendendo a preço da uva mijona tudo o que no país haja que seja digno de desejo, tudo privatizado desde a energia aos correios, dos aeroportos às linhas aéreas, tudo, tudo, tudo, mesmo o que nos cai no colo – como a colecção Miró – e que bem podia ser aproveitado para ganhos futuros como mais-valia cultural e aposta no turismo de cultura nacional e estrangeiro – é desbaratado a troco de uns míseros cobres que parecem ter o destino comezinho de um dito que aprendi com a minha Avó acerca daqueles a quem o dinheiro parece arder nas mãos – “é como manteiga em focinho de cão”, some-se! Tudo isto e o povo continuar a digladiar-se, sim, sobre quem demorou mais tempo a saír do balneário.

Pois bem, não nos deixemos enganar, o Tuga é um herói dos tempos modernos, basta pô-lo borda de água, e sim somos um país de marinheiros, e é vê-los felizes junto à berma, prestes a apanhar com uma onda de dez metros bem no meio da focinheira. O próprio MacNamara, especialista em ondas de 30 metros (devidamente equipado, treinado, com prancha e fato e motas de água em torno, como deve um profissional de ondas gigantes actuar) partilhou incrédulo a impassividade dos Tugas no farol rodeados de onda tsunâmica por todos os lados como se não fosse nada com eles. E não era. Eu própria observei num telejornal a reportagem – não vou chamar jornalística porque o pasmo envolve-me de cada vez que percebo as coisas que são “notícia” (e prometo que não falo sequer das que não são…) – de um moço algarvio, lançado nas ondas com a sua prancha que se viu transportado por mais de um quilómetro que o pôs na praia vizinha àquela onde tinha começado a surfar (em plena tempestade Hércules, pois então, o medo há-de ser coisa que não lhe assiste), confessando este que nem sabia bem o que lhe tinha acontecido. Foi notícia, graças ao Senhor, se tivesse morrido por, incauto, se ter lançado ao mar em dia de tempestade para treinar o surf, seria notícia na mesma, para a estação era igual e para o público também. O vigor só diferiria se dúvida houvesse se a atitude temerária e parva fosse fruto da sua invenção e dos amigos ou se a mesma fosse de sua invenção e dos amigos mas a tivessem baptizado de praxe. Aí sim o festim seria completo com mais de um mês de assombradas teorias da perseguição, mistérios dignos de um Shelock e horas a fio de airplay televisivo. Soubessem os pescadores que se fazem ao mar por necessidade e que por azar ficam nas ondas, o que deviam fazer para fama e gáudio e, estou certa, este povo intrépido que gosta de apanhar com as ondas no focinho teria uma muito maior quantidade de heróis e mártires, dignos quiçá de embelezar o panteão. Já que estamos numa de transladar à dúzia que há-de ser mais barato e a troika aprovará com um sorriso terno.