quinta-feira, 3 de abril de 2014

Toda esperança é lícita, meu bem!

|Cláudia Assis



O sol já tinha dado o ar da sua graça há demasiado tempo, presságio de um belo amanhecer primaveril para além daquelas paredes. O Agente Lisboeta sabia disso por que, ainda deitado na sua cama, apreciava os raios de sol a invadir os aposentos pelas frestas da janela do seu quarto. Teria passado aquela noite em claro, mesmo depois da exaustão de tantas vezes entregar-se à sua Moema. As dores no joelho o fazia lembrar que o ferimento causado na última incursão ainda se fazia presente.

Acometido pela insônia, viu-se obrigado a passar as horas velando o sono da sua adorada princesa tupiniquim, que dormia profundamente ao seu lado. Tê-la ali tão perto, protegida das agruras do mundo e ao alcance dos seus braços, enchia-lhe o seu peito de satisfação. Sorria enquanto fazia festas nos negros cabelos de Moema, que ao sentir o toque do seu amado, moveu-se lentamente, embora permanecendo no mundo dos sonhos. Mas ter novamente a “menina que cheira à flor de pitanga” consigo o fez relembrar dos motivos pelos quais teria recentemente realizado a sua travessia transatlântica – Moema teria fugido por se sentir forçada a escolher entre o amor que nutria pelo lisboeta e compromisso que com a sua gente.

Embora já lá fossem alguns dias desde o reencontro daqueles dois, a verdade é que ainda não tinham encarado de frente aquela dura realidade. “Qual será a sua decisão, afinal? Estará minha adora Moema disposta a renegar o seu povo só para viver comigo, seja lá onde isso for? Ou este reencontro nada mais é que um simples adiamento de uma inevitável despedida?”, refletiu o Agente. E, neste preciso instante, teve medo! Nem mesmo as mais duras missões, ossos do ofício de espião, o teria feito experimentar tal pavor.

Apreciar o despertar de Moema sempre proporcionou ao lisboeta uma alegria peculiar. Era quase sempre a mesma sucessão de acontecimentos. Mas ainda assim, ele conseguia ver um verso novo na poesia que era corpo dela: ela acordava, esfregava os olhos como fazem as crianças ainda sonolentas, espreguiçava-se toda e depois aninhava-se outra vez debaixo das cobertas. Só depois o encarava com um sorriso no olhar, o qual dispensava ao Agente Lisboeta qualquer palavra – o “bom dia, meu bem!” estava ali, implícito. Só que, naquela manhã, havia alguma dureza no ar. Moema percebera imediatamente que o seu “menino” tinha o coração inquieto e a cabeça repleta de dúvidas. Havia decisões a tomar, escolhas por fazer. Ela era capaz de lê-lo como ninguém mais neste mundo – das coisas que mais o assustava era a capacidade que Moema tinha de o ler até nas entrelinhas.

Moema, então, afagou a barba farta que o seu adorado Agente decidira cultivar ultimamente – barba esta que Moema não sabia, mas era parte do disfarce para a sua próxima missão – e, enquanto o acariciava, disse:

– “Estava sonhando contigo. Com a gente, para ser mais exata. Estávamos lá na minha cachoeira. AQUELA onde te amei pela primeira das tantas vezes que ainda hei de te amar. Você se lembra?”. E sorriu docemente.

Ainda que embevecido com aquela deliciosa visão, o Agente Lisboeta tomado por uma inquietante agonia, disparou à "queima-roupa", certeiro como uma flecha, a dúvida que lhe roubara o sono naquela noite:

– “Moema, minha adorada Moema, estar nos teus braços outra vez é a mais sublime forma de passar por essa vida, mas...”, titubeou. Aquela pausa dramática no discurso do lisboeta poderia ser facilmente lida na aflição imposta ao olhar de Moema.

– “Mas o quê?!”, interrompeu a princesa vinda dos trópicos, que num rápido movimento pôs-se sentada diante do Agente, deixando seu corpo nu à mostra, desconcentrado-o solenemente.

– “Mas... Preciso saber se vens para ficar nos meus braços, no meu mundo,em definitivo. Tenho medo que isto tudo, de tão bom que é, não dure o quanto gostaríamos. Tenho esperança que sim. Mas é inegável o medo que me consome”, confidenciou o “menino de olhar doce”.

Mesmo triste por saber que aquela dúvida traidora dormitava no olhar do seu amado, Moema o abraçou. Apertado. Amava-o perdidamente. E, então, sussurrou-lhe ao pé do ouvido:


– “Toda esperança é lícita, meu bem!”, calando-o como usualmente fazia: com o seu melhor beijo.