sábado, 15 de dezembro de 2007

A Campanha - Elisa Iglésias

Levantou-se antes da hora habitual. Apesar de que a leitura lhe tinha roubado algumas horas de sono, a sua mente estava clara. Os primeiros raios de sol não demoraram em desvendar um dia nítido, muito próximo já da Primavera. Saiu do portão como cada manhã, embora naquele dia sem presa por chegar ao escritório. Desde que o controlo de assistência fora configurado directamente nos computadores já não podia contar com a cumplicidade dos colegas para disfarçar a caneta a sua impontualidade nas folhas de presença.

As ruas afanavam-se por recuperar lentamente o ritmo intenso da sua actividade habitual. Ouviu os sons da abertura das grades nas lojas, e viu os jornais amontoados nos quiosques anunciando o provavelmente acontecido. A maquilhagem das prostitutas de uma rua do centro antecipava a jornada laboral do resto dos viandantes, que caminhavam recém vestidos de quarta-feira. Virou a esquina da rua, encontrou o buraco pelo que desceria para o metro e contemplou um raio de sol a filtrar-se na sombra projectada pelo edifício. Recordando um verso que lera a noite anterior esticou a mão para o fio de luz, como se quisesse atá-lo à cintura e aproximar-se um pouco mais ao Verão no qual poderia esquecer a sua equação de tempo e dinheiro. Continuou a murmurar as palavras do poema, que não chegavam a ouvir-se e, no entanto, abriam-lhe passo a novos sentidos pelos que ia e vinha sem perder-se, a caminho da boca do metro. “A poesia levanta a pele do quotidiano” pensou e sentiu-se com ânimo suficiente para introduzir-se nas veias da cidade. Descido o primeiro lance das escadas sabia que não poderia esquivar a repetição dos elementos posicionados na sua rota. O cego albino venderia os seus bilhetes de lotaria, “para comprar uma parcelita no Pólo Sul”. O segundo lance confrontá-la-ia com a brecha de betão, completamente vazia, na qual meses atrás um vendedor de quiosque suburbano ralhava a todo aquele que lhe comprava um jornal ou uns cigarros. Sentiu saudades da sua mirada de aranha tecendo o sustento naquela caverna de cimento, agora vazia.
Contemplou cada rosto dos cidadãos que ascendiam no sentido contrário. Muitos tinham postos os headphones. Nunca lhe tinha passado pela cabeça sair de casa com auriculares. Poderia acabar debaixo das rodas de algum autocarro vermelho. Ou atropelada por algum agente de mobilidade urbana na busca e captura de criminais sem carta de condução. Ou tal vez por alguma ambulância, possibilidade que a tranquilizava por garantir o sua deslocação e ingresso no hospital por via urgente. Admirava, porém, a destreza com a que todos pareciam conduzir-se a caminho dos seus afazeres. Ela nunca se atreveria a sair à rua caminhando pela sua própria banda sonora, embora em casa sim gostasse de ouvir a rádio, enquanto engomava camisas ou deslocava partículas de pó à suspensão do seu lar, pendurado no presente sem outros fios que os do seu trabalho na agência de publicidade. Admirava a paciência da rádio, a sua emissão constante e sem reproches; fazia-a lembrar-se de muitas pessoas que conhecia e retransmitiam constantemente a sua visão pessoal do mundo e tudo o que este tramava contra elas. O seu escritório era um exemplo de tertúlia radiofónica interrompida por lapsos de silêncio produtivo. As reuniões de trabalho pareciam-lhe debates contra-relógio à volta de mesas tão quadradas como as opiniões que cada um expunha com firmeza. Culminavam com apertos de mãos, mas podiam perfeitamente não ter tido lugar porque o seu final costumava colocar-se de novo no ponto de partida, e ela ficava com a dificuldade de apontar os resultados para depois interpretá-los e lançar algumas ideias ao director criativo da agência.

O sinal sonoro indicou que as portas do vagão iam fechar-se. Saltou para o interior do comboio, tropeçando com uma adolescente vestida com jeans e um casaco de pele gasta. Quando as portas se fecharam a adolescente ligou o amplificador de uma aparelhagem com música pré-gravada e começou a cantarolar uma cançãozita passada de moda, enquanto se deleitava a contemplar o seu próprio reflexo no vidro do comboio que avançava na escuridão dos túneis. Nenhum dos cidadãos se alterou; muitos levavam auriculares e mexiam o pé ao seu próprio ritmo, alheios à invasão sonora. Desejou chegar a sua estação para se ver livre daquela actuação. O ranger metálico e agudos guinchos das linhas do comboio pareceram-lhe muito mais acordes com a melodia geral do metro.

Empreendeu a subida das escadas para a claridade da atmosfera que se anunciava ao final do recinto. Com força empurrou a pesada porta de vidro que selava a entrada e ouviu o som de um telemóvel. Uma mulher apressou-se a responder. Ela ia distraída; ambas caminhavam casualmente em paralelo pela mesma rua que, flanqueada por umas árvores quase nuas, conduzia directamente ao portão do seu escritório. De repente reparou que estava a ouvir duas vozes: uma era a da mulher e a outra a do seu interlocutor diferido nas ondas que vogavam à volta. Conheceu todos os detalhes domésticos de quem era presumivelmente o companheiro da mulher. Soube do estado de saúde de um familiar dele e dos seus esforços por ir visitá-lo ao hospital, apesar de tudo (esse “tudo” era um suposto aparentemente de proporções dramáticas a julgar pelo tom de voz). Assustou-se ao comprovar que não era um microfone; que as ondas entravam directamente nas suas orelhas porquanto ouvia também, num leve rumor, as crepitações das cartilagens do seu sistema auditivo e os estalidos do nariz a inalar o ar. Começou a correr e, pouco a pouco, foi-se perdendo a conversa no eco dos seus passos. Aproximou-se ao grupo de estudantes que cada dia encontrava na porta de um instituto vizinho. Cavaqueavam como habitualmente, fazendo brincadeiras sobre professores e apontamentos. Uma rapariga com trança falava pelo telemóvel a uns metros do grupo. Ao vê-la sobressaltou-se . Testaria se continuava sendo permeável às ondas. Era-o, sim. Soube por boca de quem devia de ser a mãe que a rapariga tinha roubado a mesada do mealheiro da irmã mais nova para comprar Deus-sabe-que-porcarias que consumia aos fins-de-semana, pois a mãe era una mulher bem informada e conhecia os sintomas. Novamente acelerou o passo, aturdida, ressoando no peito os latidos do coração.

Os porteiros varriam dos passeios as últimas folhas caídas das árvores. Seguiu com o olhar os saltitos de um par de pardais que se divertiam a picotar um naco de pão. Faltavam só um par de quarteirões para chegar ao escritório. O gorjeio de outros pardais que vigiavam a operação-naco desde as ramas tranquilizou-a e os seus passos recuperaram o ritmo habitual.

- Dévora?, bom dia, sou a Gloria.
- Olá Gloria, bom dia, como estás?
- Muito bem, obrigado, e tu?, que tal passaste o fim-de-semana?

Era a voz da Gloria, a directora geral da agência, a falar pelo telemóvel desde o seu escritório no terceiro andar. Quando entrou no portão todos os telefones pareceram tocar ao mesmo tempo. Um zumbido de palavras desconexas apoderou-se do seu entendimento. Tapou as orelhas, desejando gritar para verificar pelo menos a presença do seu ânimo, cada vez mais horrorizada perante tamanha abertura sensorial. Lançou um precipitado “bom dia” à recepcionista ocupada em derivar os telefonemas que entravam na agência e esgueirou-se pelo corredor em direcção à casa-de-banho. Fechou bruscamente a porta. Queria isolar-se de todos aqueles fluxos de informação que o seu sistema auditivo hipersensibilizado captava contra toda lógica e, sobre tudo, contra a sua vontade de discernimento. Sentou-se sobre a tampa do inodoro com as mãos ainda cobertas por umas luvas de pele de vaca e coelho. Tirou da carteira o pequeno espelho e olhou-se nele. Era real. Não se lembrou de outra coisa que de pintar novamente os lábios e esperar até que hipersensibilidade desaparecesse. Em seu redor voavam pedacitos de conversações, melodias publicitárias de distintas frequências moduladas, predições do tempo, canções de moda. Por momentos inclusive parecia-lhe estar a ver fragmentos escritos de mensagens de telemóvel. “Era o que me faltava”, pensou. Começou a respirar rítmica e profundamente. Deixando que o coração e os pulmões bombeassem de novo o sangue, acaso pudesse limitar-se à sua individualidade e deixar de escutar aquilo tudo. Por cima de todo aquele desconcerto de vozes e barulhos reconheceu novamente a voz da directora:

- Dévora, já sabes que a nossa estratégia baseia-se na antecipação aos vossos desejos, em conhecer as vossas mais recônditas necessidades, prever até o mais improvável e desenhar à perfeição cada uma das vossas manifestações. A versatilidade é imprescindível.
- De isso não me cabe dúvida, Gloria. E por isso é que há tanto tempo que trabalhamos juntas. Mas esta campanha é especial. Podem levar o tempo que precisarem antes de propor-nos soluções definitivas.
- Sempre estivemos à altura das vossas circunstâncias. Lembra-te que temos passado por momentos difíceis, quando aconteceu aquilo soubemos como desenvencilhar-vos e hoje já ninguém se lembra. O tempo voa.
- Ai, o tempo, Gloria!
- Saberemos fazer-nos com ele, seremos as vossas asas.
- Precisamente, Gloria, precisamente. Esta vez têm que ser insuperáveis, capazes de um voo transoceânico e com boas-vindas oficiais. Pensa em tudo o que isso requer; em todas as mentalidades que temos que conquistar. Não é fácil. Ele está preocupado, não te oculto que quer sondar outras opções. E não se trata do preço, o risco nesta ocasião a isso obriga.

(Neste ponto da conversa ouviu um leve som, como de contracção de diafragma e depois uma inspiração profunda até ao abdómen. Do outro lado pareceu-lhe ouvir um barulho de saliva entre dentes, embora isto mais precisamente imaginou-o. Os seus próprios sons corporais confundiam-se com os dos outros e as paredes de mármore do W.C. não evitavam que também pudesse ouvir outros fluidos descendo pelas canalizações do edifício.)

- Tu sabes que não te vou defraudar. Sabes o longe que posso chegar quando se trata de conceber um projecto, e sabes também que esse núcleo conceptual que eu te ofereço não o vais encontrar em parte nenhuma.
- Tenho plena confiança em ti, Gloria, mas não se trata de mim. Neste caso ele envolveu-se pessoalmente.
- ¿Ele?
- Sim. Quer supervisioná-lo totalmente. Desde o princípio.
- Isso, se possível, ainda me motiva mais. Adoro os desafios. Espicaçam a minha criatividade. Há semanas que ando já a dar-lhe voltas. O resto da equipa ainda não sabe nada.
- A confidencialidade neste caso é mais indispensável que nunca. Estás a jogar com vantagem, e essa vantagem sou eu, pessoalmente, que ta quis dar. Espero que não traias a confiança que depositei em ti.
- Como podes pensar algo assim? Já te disse que ninguém na agência está a par. Mas, embora o ignorem ainda, as primeiras células da campanha já começaram a reproduzir-se. Garanto-to.
- As tuas metáforas baralham-me, Gloria.
- Eu sei, querida. Mas tens que perceber que eu vivo no mundo das ideias. A minha mente radiografia as mensagens de cada montra, de cada fachada, de cada estação de metro, de cada página de jornais e revistas. Nunca descanso. Sou o cérebro desta agência, e tenho, aliás, uma data de bons neurónios ao meu serviço.
- Tens boas ideias, Gloria. Isso é inegável.
- Sou, acima de tudo, uma boa observadora. Estou há anos no negócio. Conheço os seus segredos. Posso adivinhar inclusive as linhas que seguiriam os outros para esta campanha. E nenhuma será melhor do que a nossa, posso assegurá-lo.
- Não estarás a ir um pouco longe?
- Não, querida. Permite que me explique. No fim tudo se reduz a uma questão de sensibilidade.
- Bom, Gloria. Isso não é nenhuma novidade. Até os nossos consumidores o sabem. E não só o sabem, como o aceitam.
- Concordo, mas no vosso caso, a aceitação não é suficiente. Têm que conquistá-los.
- Certamente…
- Esse é o nosso diferencial como agência, Dévora. Trabalhamos desde a sensibilidade. E esta campanha estou a orquestrá-la de um modo muito especial.

Ao ouvir aquilo o coração subiu-lhe à garganta. O seu latido ressoava com tanta força que deixou de ouvir a conversa. Alguém tocou à porta. Puxou do autoclismo e saiu da casa-de-banho. Cumprimentou a uma das suas colegas, que olhou para ela com estranheza. No corredor estavam pendurados alguns dos últimos trabalhos da agência, apenas visíveis na penumbra. Dirigiu-se para o seu escritório iluminado no fim do corredor. O sangue a ser bombeado prevalecia sobre uma cacofonia de conversações desconexas e sonatinas de telemóveis e fixos. As pernas pesavam-lhe como se fossem os membros inertes de outra pessoa. Foi arrastando-as lentamente. Pensou sentir algo parecido a uma baforada, nem fria nem quente, sobre a nuca e um murmúrio nas costas. Ficou quieta. Os pés cravados no soalho do corredor impediam-na de avançar. Aguçou o ouvido para tratar de compreender as palavras de aquele murmúrio mais agudo, situado numa frequência diferente à do galope cardiovascular da sua garganta. Distinguiu um dos slogans que ela própria tinha proposto para uma campanha e, de fundo, a melodia que o precedia nas cunhas publicitárias da rádio. Depois o barulho de um vidro partido, e a mensagem de outra das campanhas “in crescendo”, ainda mais aguda e rítmica que a anterior, que não chegou a desaparecer completamente. Mais vidros partidos e uma terceira mensagem, simples e rotunda, martelando sobre as anteriores que se ouviam como numa caixa de ressonância. E o seu latido por cima de todo aquele rebuliço. O pescoço parecia refreado num galope quieto, ali, no meio do corredor; transpirava um suor frio, os braços e a cintura estavam rígidos apesar de um intenso desejo de dar meia volta e contemplar aquela contradição de mensagens fora das suas molduras. Ouviu o seu nome. A recepcionista apareceu no extremo do corredor. “Que fazes aí parada?, a directora quer falar contigo. Vai para o escritório dela imediatamente.”

Conseguiu mexer os pés e encaminhar-se para o seu escritório. Estava a tocar o telefone. Não atendeu. Fechou a porta e cessaram todos os barulhos. Sentia-se agoniada. Todo o quarto dava voltas num funil à altura do estômago. Tirou as luvas e ligou o computador. Tinha vinte e cinco mensagens novas no Outlook. Apareceu no ecrã o programa de controlo de assistência pedindo-lhe a clave. Ainda tinha o casaco posto. Deixou as luvas de pele de vaca e coelho sobre a mesa e saiu do escritório.

Madrid, Dezembro de 2006.


Nota: A Revista Literária Sítio inicia com este texto de Elisa Iglésias a publicação de propostas que nos chegaram ao longo dos tempos e que, por imperativos de espaço, não puderam ser inseridas nas edições em papel.