quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Uma espécie de artesanato do espírito


Entrevista a Flávia Rocha

|Luís Filipe Cristóvão

Ao convidarmos Flávia Rocha para o destaque desta semana na Revista Literária Sítio, procuramos encontrar não só a autora, mas também a editora da revista Rattapallax, a antologiadora de poesia, a criadora do Curso de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema. 

No fundo, fomos pela poesia em busca das ideias de quem vive uma experiência total no campo literário. Esta entrevista demonstra, em toda a medida, a abrangência do trabalho de Flávia Rocha, onde expressões de partilha, comunidade e rede estão bem presentes.  




Onde nasce a tua poesia?
Primeiro, num impulso. Numa melancolia que se transforma em excitamento através da mecânica da linguagem— da percepção que se pode construir esses objetos que são os poemas através de um processo complexo que transforma subjetividade, intuição e impulso em um objeto físico (o poema), composto unicamente de símbolos. Esses símbolos, quando combinados com habilidade, são capazes de expressar e comunicar sentimentos, ações, percepções, sons e ideias de forma condensada e intensificada, que apreendem (através da escrita, da codificação) e desprendem (através da leitura, da decodificação) subjetividade, intuição e impulso— fechando um ciclo. É um processo intelectual e emocional ao mesmo tempo. A experiência do processo criativo ao longo desse ciclo, unindo o mundo mental ao físico, o desafio de produzir efetivamente “a mágica da poesia”, é que me envolve e me faz amar escrever poemas. É uma espécie de artesanato do espírito. 

Qual a importância do mestrado em Criação Literária na tua obra poética?
O mestrado me proporcionou um mergulho de dois anos no universo da poesia—e a justificativa de que eu precisava para me deixar levar sem culpa. Digo isso, porque no mundo da funcionalidade em que vivemos hoje, é preciso ter uma certa coragem (e possivelmente um pouquinho de prepotência de natureza romântica) para dizer a si mesmo e em voz alta que existe valor em poesia, e se dar ao direito de enquadrá-la na categoria de prioridades na sua vida. O mestrado me deu esse tempo e essa segurança, e me abriu a-porta-que-nunca-se-fecha do universo literário. O fato de ter feito meus estudos de criação literária nos Estados Unidos (no Brasil não existia dez anos atrás esse tipo de curso) me colocou em contato com uma biblioteca enorme de traduções para o inglês de autores internacionais que ainda não estavam traduzidos para o português, e me deu a chance de explorar a linguagem literária numa segunda língua (que aprendi já adulta), abrindo o caminho para o exercício da tradução, que é uma forma alternativa de escrever poemas—pois tradução é um processo criativo quase tão profundo quanto a escrita original; é uma mímica da escrita original. Além disso, o curso me colocou em contato com poetas extraordinários, professores e alunos. Esse espírito fraternal, de comunidade, esse feedback tem um papel importante no processo de aprendizado e de definição da nossa própria linguagem poética. 

Fundaste a Academia Internacional de Cinema, onde desenvolves o curso de Criação Literária. De que maneira imagem se conjuga com a palavra naquilo que escreves?
Introduzi o curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema em 2007, tentando reproduzir a oportunidade incrível que eu tive no meu mestrado na Columbia University. Eu queria que outras pessoas, no meu país, pudessem experimentar esse tipo de processo criativo orientado. O domínio da escrita de poesia é uma habilidade que a gente desenvolve, como é com tudo em arte. Talento espontâneo precisa ser cultivado. O autodidatismo é um caminho possível, mas o papel do professor, do mentor, do editor é e sempre foi essencial na história da literatura. O programa da AIC já passou por diversas transformações e teve diversos escritores como coordenadores, que trouxeram suas próprias ideias e métodos. Hoje o curso é coordenado pela escritora Verônica Stigger, excelente romancista da nova geração, e outros quatro ótimos escritores integram o curso (Bruno Zeni, Fabrício Corsaletti, Ricardo Lísias e Tiago Novaes), além de escritores convidados para palestras e aulas especiais. O curso tem sido uma experiência rica para todos os envolvidos, alunos e professores, e tem ajudado— juntamente com o boom de workshops no Brasil— a organizar e a fomentar uma nova geração de escritores. Sei que sou mais que suspeita para dizer, mas o legal do curso da AIC é que é mais do que um workshop, é um curso abrangente, com um programa integrado, que põe o aluno em contato com diversos escritores e gêneros. Tem esse efeito de mergulho num universo mais amplo. 

Imagino que, como consequência do seu trabalho nos Estados Unidos, és uma das editoras da revista Rattapallax. Podes falar-nos um pouco do trabalho desenvolvido por esta publicação?
Estou na Rattapallax há dez anos, e há três como editora-chefe. A revista está continuamente se renovando sob o ponto de vista de forma e conteúdo, mas manteve sempre o seu caráter internacional, com editores atuando em diversas partes do mundo. A sede é em Nova York, e a revista adquiriu visibilidade ao longo do tempo. É uma publicação como as demais literárias, que sobrevive na corda bamba com o suporte de bolsas e com o trabalho voluntário de seus colaboradores. Começou como revista impressa (anexando um CD, depois um DVD em cada edição, com trabalhos em áudio e vídeo), depois passou a ser publicada gratuitamente como website em 2010, e agora está finalmente entrando no universo que considero a sua plataforma natural, interdisciplinar e interativa, aquela para a qual tinha vocação desde a sua fundação: ainda neste mês, a Rattapallax passa a ser publicada no formato APP para iPad, para ser baixada gratuitamente. Eu idealizei e coordenei todo o projeto e produção, juntamente com uma equipe incrível de editores de literatura, vídeo, arte e música, e equipe técnica, e com o apoio, trabalho e suporte do publisher, Ram Devineni. Ando respirando Rattapallax nesses dias, semanas, meses já. Não vejo a hora de colocar nossa nova edição no ar! 

O constante envolvimento com o trabalho de outros autores, devido à revista, mas também devido às várias antologias já editadas, oferece-te uma possibilidade de olhares o fenómeno da criação de diversas perspetivas. Qual o diálogo entre o editor e o poeta?
O trabalho de edição, leitura, análise, seleção é muito importante para mim, pois me coloca em contato com a poesia contemporânea e viva, a poesia que está sendo escrita hoje, em vários cantos do mundo, e me dá um espaço para apresentar minha perspectiva sobre essa constante pesquisa. É uma espécie de trabalho de campo em poesia, de networking, e hoje, mais do que nunca, temos acesso rápido e fácil ao que as pessoas fazem de bom—editores, que muito frequentemente são poetas também— se comunicam e trocam ideias, se leem e há um interesse genuíno pelo que há de melhor, de mais interessante, inovador, belo e importante sendo produzido hoje. Claro que há de tudo, e o que está de bom tamanho para um, não passa pela peneira de outro. O desafio no contexto atual, em que estamos inundados de textos no democrático aquário da Internet, é justamente o de peneirar— e esta é a principal tarefa do editor. Nesse sentido, a atuação das revistas e blogs literários é essencial, e substitui o antigo espaço que a literatura tinha na imprensa tradicional, nos cadernos literários. Todo mundo evoca, com nostalgia, os antigos cadernos literários, mas esquecem de que hoje temos um espaço pelo menos dez vezes maior para a literatura no mundo editorial pós-Internet. E que os nossos leitores chegam de todos os lados do planeta, e que textos estão sendo traduzidos em praticamente tempo real, e que tudo isso, na maioria dos casos, é oferecido de graça. E com a vantagem de que você, leitor, é que encontra os seus parâmetros, escolhe, julga, segue ou não segue, gosta, comenta, republica— nesse sentido, todo leitor se torna, de certa forma, um editor. E qualidade não falta, para quem sabe procurar. Talvez a única coisa perdida mesmo seja a definição de sucesso de um escritor, que não pode mais ser totalmente medido em tinta, em número de livros vendidos, e outros mecanismos de mercado. Quer dizer, ainda pode, mas não só. 


Tens antologiado a poesia brasileira, o que dirias que de mais interessante se vai produzindo no país?
O que eu mais gosto de ver é uma abertura e um interesse brasileiro pelo outro. O modernismo de cunho nacionalista foi importante na definição de uma identidade literária brasileira, mas parece que essa etapa foi vencida há algum tempo, e agora estamos livres para sermos mais individualistas, universais, e brasileiros quando e como quisermos— temos cumprido nosso papel na cultura contemporânea, com autores de diversas gerações e inclinações dividindo espaços importantes para o entendimento e definição da literatura brasileira hoje. Há também um interesse por novas mídias e interdisciplinaridade. Vejo muito isso em Portugal também. Tradição e inovação coexistem de forma integrada, rica. Para conhecer alguns dos mais novos poetas brasileiros, sugiro acompanhar revistas como Coyote, Zunai, Cronópios, Musa Rara... e tantas outras. E a Sítio, claro.  

Finalmente, que pontes ainda estão por criar entre os diversos países de língua portuguesa para podermos falar da existência de um universo literário comum?
Algumas pontes existem, mas nem todo mundo as está cruzando. Publicações em revistas e antologias podem ajudar sempre nesse processo de integração, nesse diálogo, bem como iniciativas dos governos, de instituições culturais e do próprio mercado. Acho que ainda não chegamos à maturidade desse processo de difusão das culturas lusófonas entre si. Esse é um assunto que me interessa muito, ver como coexistimos e nos complementamos, mas para o qual não tenho respostas diretas. Talvez o processo não seja tão natural quanto gostaríamos.