Excerto do livro O ano em que Pigafetta completou a
circum-navegação, que será apresentado hoje no Correntes d’Escritas
|Luís Cardoso
Prenda
– Eu sou a tua prenda
Carolina teria ouvido essas mesmas palavras se me
fosse dada voz, mas as sandálias foram feitas para ficarem mudas e todavia levam-nas
para todo o lado como se fizessem parte de um corpo inteiro.
Eu sou a do lado esquerdo, onde bate o coração, falo também
pela minha irmã gémea, a do outro lado, que dizem ser a da sensatez. Deve ser
por isso que se mantém silenciosa. Ralha-me e manda -me calar com uma voz
oculta a que chamam consciência.
Às vezes é tão inflexível que apetece livrar-me dela. Lembra
-me que sem ela não existo. Ninguém compra apenas uma sandália. Aos pares, foi
assim que nos fizeram, uma à imagem da outra
– Somos a tua prenda
(desfaço -me em mea
culpa)
embrulhadas numa folha colorida para disfarçar a
nudez de uma caixa de cartolina cinzenta dentro da qual nos fizeram a cama com
papel de seda, até o dia em que nos devolvem à luz
– Trouxe -te uma prenda, Carolina
disse Amadeu no regresso depois de ter ido à Áustria onde
fora com um grupo de integracionistas em missão de serviço. Um dos muitos encontros
de reconciliação entre timorenses promovido pela ONU por causa do estatuto do território
após a invasão indonésia em 7 de dezembro de 1975.
Amadeu nunca esteve de mal com os seus conterrâneos, nem
mesmo com aqueles que lutavam contra a presença dos militares indonésios como o
seu amigo dos tempos do seminário de jesuítas de Dare que optou pelo nome de
Raio de Luz e a quem dava guarida quando precisava de se esconder das
perseguições que os bapaks faziam aos
resistentes.
Acontecia albergar em casa ao mesmo tempo o
clandestino e os homens da secreta indonésia que vinham pedir ao empresário a
quota -parte nos proventos do negócio do café, sorridentes estendiam -lhe a mão
– Fifty -fifty,
Amadeu
(Amadeu soa a mãos largas)
o suor a escorrer pelo rosto abaixo, ouvia do outro
lado a respiração do clandestino que atravessava a divisória e denunciava
a sua presença, pondo em causa a segurança dele e a dos seus familiares. Disfarçava
o medo com um sorriso nos lábios e a mão trémula, pronta a estender o envelope
milagreiro
– Fifty -fifty,
bapak
empurrava -os pelas costas para que não se demorassem
muito, não fosse um atrevido querer fazer uma vistoria por achar que a oferta
não era de todo suficiente. Tinha uma família numerosa em Kalimantan a precisar
do seu ordenado e do que fosse ganhando por sua própria iniciativa
– Fifty -fifty, bapak
repetia a cantilena enquanto os via desaparecer no
fundo da rua. Só limpou o suor quando se certificou de que não mais haviam de o
incomodar com os seus sorrisos colados a cuspo nos lábios. Se é que se pode
chamar a isso sorriso quando dentes é tudo o que se quer mostrar.
A ida à Áustria foi uma oportunidade para viajar,
conhecer outras terras em nome da vigésima sétima província da Indonésia, diga-se
também em abono da verdade que achava ser esta a melhor solução para Timor
depois da apressada retirada dos portugueses quando estalou a guerra civil. Foi
preso pelos militantes do Movimento Revolucionário, que o acusavam de ser
agente infiltrado do imperialismo americano por trabalhar como operador de
máquinas na sala do cinema do Sporting Clube de Timor e passar filmes reacionários
onde quem ganhava sempre era John Wayne.
Foi com apreensão que viu o secretário António
Sakunar abrir a cancela do calabouço militar de Taibesi e mandá-lo fugir quando
as tropas paraquedistas indonésias entraram em Díli
– Corre, Amadeu, corre
ouviu umas rajadas pelas costas que por pouco não lhe
ceifavam a cabeça. Teve a sorte de encontrar uma valeta onde se deixou cair
como um morto. Permaneceu assim até ao anoitecer. A coberto da escuridão
regressou à casa. Quando atravessou a porta do quintal a mulher
– Quem és tu?
– Sou eu, Julieta, sou eu
a última vez que o visitou na prisão de Taibesi
estava com a cara toda desfigurada de tanta porrada que levava por não revelar
os nomes dos agentes estrangeiros com quem trabalhava
– És tu, Amadeu?
– Sou eu, Julieta, sou eu
estava irreconhecível como se usasse uma máscara depois
de ter caído na valeta dos esgotos da cidade. Ao seu lado um cadáver flutuava no
meio dos dejetos. Parecia -lhe ser de um amigo com quem tivera uma acesa
discussão sobre as teorias revolucionárias de Mao. Não concordava com a
perspetiva dele. Que para aceder à sua verdadeira independência, Timor tinha de
passar por uma grande provação como aconteceu com a Longa Marcha quando o
grande timoneiro chinês ordenou a retirada para as montanhas, deixando pelo caminho
vítimas que sucumbiam ao cansaço, à doença e à fome. Mas de momento era Amadeu
quem precisava de ajuda
– Sou eu, Julieta, sou eu
que apesar da sua insistência continuou desconfiada dado
que podia ser outra pessoa. E, para confirmar que não havia engano, pediu -lhe
que fosse lavar a cara, mostrasse quem de facto era. Não fosse ser ultrajada
por um engraçado fazendo -se passar pelo marido. Amadeu eximiu-se de dizer o nome
do guarda que o mandou embora
– Corre, Amadeu, corre
que desatou a correr como se fosse a última vez que o
fazia em vida. Como quando se solta um cavalo selvagem após meses de cativeiro.
O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação
Luís Cardoso
Sextante