Entrevista a Luis Henrique Pellanda – parte 1
|Carolina Vigna-Marú
Luis
Henrique Pellanda é escritor, músico e jornalista. Ou seja, é alguém que pode
ser encontrado de todos os lados da barricada onde a palavra está presente.
Numa entrevista que se prolongará por três dias, quisemos saber um pouco de
cada uma das vertentes do seu trabalho. Assim começamos pelo cruzamento da
entre conto e crónica, fugindo rapidamente para o que acontece com a literatura
na internet.
Seu primeiro livro, O
macaco ornamental, tem “contos”
escrito acima do título. Já o Nós passaremos em branco, foi publicado na coleção “Arte da crônica”. Então, tenho
grande esperança de você resolver uma pendenga que sempre surge em conversas
sobre literatura: qual a diferença entre conto e crônica?
Não sou bom nisso de corresponder a esperanças. Acho que
fico devendo, pois vem se tornando cada vez mais difícil fixar diferenças dessa
natureza, ou mesmo estabelecer um pequeno conjunto de regras que sirva a todos
os autores, cronistas ou contistas, da mesma maneira. Até o romance tem
enfrentado suas crises de identidade: o texto mais ligeiro, nem cem páginas de
fragmentos, já está apto a ganhar prêmios específicos para o gênero. O que difere,
hoje, o romance e a novela? Pelo jeito não há nem régua nem estatuto universal.
Falando do que faço, o que posso garantir? Que vejo distinções muito claras
pelo menos entre os meus contos e as minhas crônicas. Nestas, o narrador
obrigatoriamente se confunde com o autor; ou seja, sou eu. Cronista, apesar de
usar recursos narrativos próprios da ficção, converso diretamente com o leitor,
outra entidade real, até prova em contrário. Já nos contos, mesmo quando em
primeira pessoa, dialogo com outro personagem inventado. E o narrador obviamente
não sou eu. Nas crônicas, falo de eventos cotidianos ou pequenos (tudo é
pequeno, na verdade), mas prefiro encontrar neles alguma característica de
exceção, mesmo que essa exceção esteja na minha maneira de interpretar ou
dirigir o que narro. Nos contos, não busco o cotidiano, nem a rua, a praça, a
cidade. Sou um contista de personagens, acho, quase um autor de monólogos
literários.
Enfim, sei quando escrevo uma crônica ou um conto, mas acho que
os leitores não têm mais se importado com isso. É o que percebo neles: se gostam
do que leem, não pensam em etiquetar os textos, engavetá-los. Isso é mais entre
nós, uma questão técnica, quem sabe moribunda? Como classificar o que faz o
Verissimo, por exemplo? Ele escreve contos curtos de humor, alguns estabelecidos
entre a anedota clássica e o registro de comportamento, ficcionais da primeira
à última linha. E é um cronista. E o que faz a Eliane Brum cronista? Escreve
relatos pesadíssimos, curtos e também ficcionais, muitas vezes dando conta dos
distúrbios psiquiátricos de personagens totalmente construídas por ela. Mas são
crônicas, e não contos psicológicos. O Rubem Braga era outra coisa. O Nelson,
outra. O Vinicius, o João do Rio, o Fernando Sabino, a Clarice. Outras. Definições,
a cada qual a sua.
Gosto imensamente da forma
como você inclui a tecnologia naturalmente, sem sublinhar esta inclusão. Entre
outros exemplos, cito:
“(…) aqueles famigerados
navegantes de primeiro parágrafo que, em qualquer crônica, linha de jornal, notinha
de falecimento, torpedo de barzinho, piada de salão ou tuíte aforístico, buscam
somente a verdade, a fofoca ou o escândalo” (PELLANDA, Luís Henrique. Nós
passaremos em branco. Porto Alegre : Arquipélago Editorial. 2011, p. 24)
“Em volta do teu rosto,
emoldurando uma cara ainda muito jovem, um retângulo trazia a indicação
inconfundível: Caldônia.” (PELLANDA, Luís Henrique. O macaco
ornamental. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil. 2009, p. 34)
Você considera que a
naturalidade cotidiana é um aspecto importante para você? Ainda, pensando em tecnologia, você fez
booktrailer para O macaco ornamental e para o Nós passaremos embranco, os dois com animação, o que envolve uma produção mais complexa do
que gravar um depoimento com webcam. Ou seja, exige um investimento. Você
acredita nessa convergência de mídias, que a internet ajuda o livro e
vice-versa? E quanto à melhoria na recepção de crônicas/contos, você acha que a
aceitação melhor de textos menores se deve em parte à linguagem curta e rápida
da internet?
Não me preocupo com a naturalidade enquanto trabalho. É interessante
porque, em geral, quando escrevo busco, como disse na resposta anterior,
reproduzir/representar uma conversa ou um recado, uma mensagem — de fulano para
beltrano, por exemplo —, mas tenho noção de que, só pelo fato de simular algo
tão banal ou corriqueiro quanto um bilhete, uma carta, um diálogo entre gente
de verdade, já estou atuando lá no extremo do artificialismo. Ninguém vai
acreditar nisso, quer dizer, não estou sendo natural, estou escrevendo e
reescrevendo, trata-se de uma afetação, não preciso escondê-la. Quando eu era
cantor, não tinha jeito: o canto é uma afetação da fala, e qual o problema?
Escrever também não é natural, não nesse sentido. Gosto, porém, de tentar dar
certa vida independente ao meu texto. Como explicar? Alguns leitores me
procuram (e quando você escreve crônicas semanais isso costuma acontecer) para
dizer que meus textos (incluindo aí os contos) parecem “vivos”. É um estranho
adjetivo para se descrever um amontoado de letras forçadas a assumir
determinada postura, mas é uma palavra que vem se repetindo nessas conversas, “vivos”,
algo que tenho ouvido de todo tipo de leitor, sejam eles críticos atentos ou
simplesmente aventureiros distraídos. E também é uma coincidência que tem me
deixado menos insatisfeito com o que faço. Quero dizer, se meu texto parece
vivo, me sinto mais livre para morrer um pouco aqui em casa, como autor.
Quanto ao booktrailer, eu o considero um recurso excelente,
não apenas para a divulgação de um livro, mas também como linguagem autônoma,
não literária. No caso dos booktrailers de livros meus, eu os vejo como trabalhos
de arte, não de minha autoria, mas do artista que os concebeu, no caso o
Rodrigo Stradiotto, um de meus antigos parceiros musicais, e de quem sou amigo
e admirador há décadas. Isso significa, claro, que o investimento não foi financeiro,
e sim fraternal. E os filmes resultantes são totalmente independentes da minha
visão de autor. São leituras do Rodrigo, não me meto com elas, apenas aprecio, ou
seja, elas são outra coisa, não os meus textos, a minha cabeça ou o meu
coração. O Rodrigo escreveu esses filmes. Ele os desenhou, musicou e produziu
de acordo com o que sentiu como leitor. É como a adaptação de um livro para o
teatro, a tevê, ou o cinema. O diretor é quem manda. É claro que aí a
tecnologia envolvida vai ajudar a divulgar o livro, e também o nome do seu
autor, e o nome do diretor do booktrailer. Isso talvez se converta em vendas,
algumas poucas, bem poucas, em todo caso. Não sei, queremos viver disso, mas,
você sabe, não gostamos tanto assim de grana! Se gostássemos, não faríamos o
que fazemos (só não me pergunte, por favor, o que faríamos). Quanto a outras
formas de cooperação entre livro e tecnologia, do comercial ao estético, há
muita coisa acontecendo e ainda por acontecer. Me cabe acompanhá-las da
arquibancada e, enquanto isso, escrever.
Sobre a melhoria na recepção de contos e crônicas, aí tenho
dúvidas mais sérias. Vejo que as crônicas têm reconquistado, sim, um espaço
interessante, e até afetivo, na agenda apertada, miudinha, do leitor
brasileiro. Mas trata-se de um gênero bastante íntimo, “tradicionalmente”
querido, há décadas, pelos brasileiros habituados à leitura. A crônica tem
precursores populares e geniais, gente que nos facilitou a vida, e que abriu
caminho para toda uma nação de cronistas. Não exagero muito, não. Como editor
do Vida Breve, posso assegurar: o
Brasil tem tantos cronistas quanto técnicos da seleção brasileira. Recebo
e-mails diários de cronistas pedindo para serem escalados no nosso time. Já
respondi a muitas centenas de pedidos como esse, não é brincadeira.
Com o conto, a história é outra. Ele tem sofrido certa
perseguição por parte dos grandes editores ultimamente, não é segredo. Talvez
não seja uma perseguição, é mais uma bobeira. O conto tem sido vítima de uma
bobeira de alguns editores e livreiros. E tudo bem, que se danem. É a velha
história do “vai por mim, escreva um romance”. Como se escrever um romance
fosse garantia de ser lido, vendido e amado. E como se leitura, vendas e amor
fizessem de alguém um bom autor.