segunda-feira, 28 de abril de 2014

Caça-Fantasma

|Maíra Matthes

outra vez
ser convencida pela palavra
‘último’
e
seus ecos
parar ali onde no limite ela significa
‘túmulo e cimento’
ficar ali
imóvel
onde eu digo:
‘barro’
e você entende
 ‘rosas amarelas sobre a lápide cinza’
como se tivéssemos derradeiramente tocado o limite do significado de
 ‘falta de ar’
como quem tenta pronunciar
‘enfim a última vez’
‘o túmulo-vez’
‘o cimento-vez’
‘o barro-vez’
que você me toca no ombro com esses seus dedos arrgh frios
*
Rio de Janeiro. Primeiro de novembro de 2013
Nada mais vermelho em minha pele;
Eu sou você com os cabelos castanhos claros;
Eu sou você enrolada em lençóis brancos;
Eu sou você com os dedos frios;
Come back and haunt me
Etc.
*
a ‘Ultima-Cimento-Barro-Lápide-Vez’
que nossos ácidos ficam inertes e as
cinzas nem tentam derreter o ar
outra vez
agora
de vez
a

‘Ultima-Cimento-Barro-Lápide-Vez’

sábado, 26 de abril de 2014

E então nós éramos duas

|Maíra Matthes


E então nós éramos nós duas

e nós éramos assim:

Saia & Short

e moças soltas sem pai

o dela: sumido para ninguém nunca mais ver quando foi  (DE VERDADE) comprar cigarros numa esquina que o desapareceu.
o meu:  vivo vivinho – “o mesquinho” – fazendo contas com a boca sempre aberta se alimentando de álcool e mel.  

e éramos,

então, 

ninfas

queimando a argila de uma no úmido da outra.

e correndo do escuro-escuro que estava no quase de engolir a gente, de matar a gente toda.

Short corria com rodas rápidas − fugia com cor preta pintada no céu – ela ia pintando assim que ia passando.

Saia fugia arrastava os móveis com seus órgãos moles suas mãos imensas e o coração tentáculo comendo nada.

éramos 

então

juntas na fuga do escuro-escuro que nos espreitava – estrategeava nosso fracasso

mas

estávamos correndo e assim também acontecia tropeções em calcinhas e dragões que ficavam no corredor.

Short matava 3.500.50, 55 dragões por dia.

Saia jogava as calcinhas fora – saía abria o corredor para a janela – para o aberto-reto, o fundo abstrato-branco que ela conseguia (só ali!) respirar.

mas Short se cansou e

“contumaz,”

entrou num cômodo que não tinha janela

e não tinha branco e

não tinha abstrato e

então Short

tirou martelos e foices do seu bolso gigante e destruiu a parede do quarto com krátos e 
bíe.

a parede caiu

Short saiu

fez um corredor no meio dos tijolos todos no chão

cor laranja

cor não entendia qual era a cor

Saia então – do branco distante (só ali vivia!) olhou estarrecida todos os pedaços que foram uma vez parede

e

chorou.

Short cortou tudo que precisava cortar nem chorou nem entendeu partiu correndo levando apenas um presente de Saia (em baixo dos braços) – 
o xerox colorido da Vênus de Botticelli.

E então éramos

nós duas

correndo

cada uma para um lado

no fim.




sexta-feira, 25 de abril de 2014

A explosão do balão vermelho

|Maíra Matthes


depois

morro mais uma vez

como imagino que uma mulher do séc. XIX morreria pois é mais poético morrer como uma mulher do séc. XIX morreria mesmo se você for um homem

ou

porque é melhor morrer como qualquer outra pessoa morreria

e

deve ser bom não morrer sozinho

de verdade

eu digo

como se existisse alguém dentro da sua mente acompanhando sua morte dentro de você e esse alguém      

sim

diria coisas que você gostaria de dizer

“o estupro ao solipsismo é o que eu sempre entendi por penetração”

e então

talvez

você se sentisse menos

(i)

insaisissable

(ii)

a virgem velha morrendo sozinha em minas de minério

(iii)

a imagem mental de 
caverna

(iv)

a coisa em si da 
caverna

(v)

uma caverna qualquer (que ninguém ainda se deu o trabalho de chamar de           caverna)

até o momento em que

psiu!

sua vida

explode num balão vermelho 


quinta-feira, 24 de abril de 2014

A mulher com voz

|Maíra Matthes

Eu me sentindo

− a mulher com voz −

ao mesmo tempo

uma dor de cabeça

que eu penso se não vai nascer

minha filha da minha

cabeça

e as dores, dores do parto todas todas na minha cabeça

mas minha filha não nasce e as dores aumentam na cabeça toda se espalhando tanto que mal consigo terminar saber como eu comecei e ainda tem que ter um fim essa fras

Deus (eu penso Zeus) quer me castigar −

eu penso

mas não,

Deus não pode ser logicamente concebido num mundo que Pandora dá luz à Atenas

então,

a dor de cabeça existe num mundo sem Deus

escondida no invisível, indiscernível nas coisas que os seres sem dor de cabeça podem ver.

ela se espalha e gruda sinistra em tudo

 –  permanece lá –

minha maternidade


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Buraco com pus

|Maíra Matthes

cá estou sentada sobre essa escadaria –

meu cabelo é liso/há vento/meu cabelo voa

enquanto o mundo parece estar dizendo:

“Oh! Como preciso escoar a carne que está se aglomerando no meu rosto”

e é como se eu soubesse de cor uma frase (qualquer) de uma tragédia (qualquer) e a declamasse num tom

infinitamente melancólico

e também é como

se eu preferisse pensar que as folhas e ventos que passam no meu cabelo agora são frutos de alguma vontade,

como se alguém mandasse – de presente –

“folhas e ventos”

para Rua General Glicério, dia 5 de Maio, Sedex

essas folhas [olhe para elas!] estão prometendo tampar o buraco com pus que existe (e ninguém sabe) entre cada fio de cabelo – aqueles que voam no vento agora como se fossem estrelas de cinema.



terça-feira, 22 de abril de 2014

Resumo e objetivos da estória

|Maíra Matthes

Essa estória é sobre a superfície escura do mar e o reflexo branco que oscila sobre essa mesma superfície. Como eles são uma e mesma coisa, essa estória é sobre a superfície do mar que é, ora escura, ora reflexo branco. Essa estória é sobre a simplicidade. É sobre algo como: um jarro sobre a mesa. Ela visa retratar a impressão de plenitude e vazio que podem tomar conta de alguém se, por ventura, este alguém se deparar com o mar, numa noite, provavelmente sozinho. A pretensão dessa estória é fazer o leitor se sentir literalmente sozinho, rodeado pela noite e diante superfícies escuras com reflexos brancos. É fazer com que o leitor consiga ver na imagem do mar a imagem de:

um jarro sobre a mesa.

O leitor vai sentir TUDO. Inicialmente o narrador divagará (por aproximadamente uma página e meia) sobre a natureza do PLENO. O narrador parte do pressuposto de que a visão das superfícies escuras com reflexos brancos remete à ideia de plenitude e pretenderá convencer o leitor disso evocando lembranças sobre superfícies, solidão e jarros. Em seguida o narrador afirmará que TUDO não é TUDO senão englobar dentro de si o VAZIO. O PLENO pode não ser o VAZIO, mas o TUDO para ser TUDO precisa ter TUDO MESMO dentro de si, e isso inclui o VAZIO. Então, aproximadamente mais uma página e meia será desenvolvida sobre a natureza do VAZIO.

Mas eis que, de repente (na estória) começa a chover. E os pingos não são poéticos, eles são a antipoética batendo nas costas do leitor. A chuva funcionará como quebra narrativa e terá a função de trazer a “experiência do cotidiano” para o interior do texto. O objetivo desse corte é fazer o leitor se sentir “começando a ficar molhado do lado de pessoas alegres que conversam entre si sem ao menos desconfiar que aquele mar diante de si poderia ser comparado a um jarro sobre a mesa.” [extrato p.4]. Caso o pacto ficcional esteja funcionando, o leitor, nesse momento, se sentirá tremendamente ofendido. Percebam: ele terá sido lançado dos altos píncaros da especulação sobre o PLENO e o VAZIO para a vulgar condição de se sentir “começando a ficar molhado.” Ele terá, então, vontade de cair em alto mar e poderá comparar essa imagem com a de quebrar o vaso que estava em cima da mesa.  E a estória vai acabar assim, com a palavra “desespero” estranhamente flutuando no meio da última frase.


Ps. É importante ressaltar que o término ideal da estória é fora-textual, isto é, a estória apenas terminaria verdadeiramente se e somente se o leitor tentasse suicídio por afogamento ou lesões corporais graves oriundas de profundos cortes de vidros tipo ‘vidros de jarro’. Caso isso não ocorra, não se pode dizer com toda certeza que a estória teve um fim.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Maíra Matthes - Biografia



Mineira, ex-bailarina da Cia. de Dança Paula Nestorov e mestre em Filosofia pela PUC-RJ. Premiada no 6º Concurso Literário de Suzano com o conto “Bárbaras Nuvens” e no Prêmio OFF FLIP com o conto “A Solidariedade dos Abalados.” Professora de Filosofia na UERJ e no CAp UFRJ. Escreve no blog: http://opesodasbolhas.blogspot.com.br/

domingo, 20 de abril de 2014

Mar aberto

|Mariana Teixeira

Visto de cima era um mar

Ondulações em sequência
no fim, a onda mais alta
quebrando
e voltando
para o ciclo
sem fim

Do andar de cima
fazia do telhado vizinho
paisagem
e movimento
para dias estáticos

sábado, 19 de abril de 2014

Imersão

|Mariana Teixeira

se distraído
te empurram
do alto

você mergulha
sem jeito
no ar
duro

a gravidade,
um convite susto
te acorda
te faz bater asas
e o mergulho
no vento
é sua nova casa


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Spray

|Mariana Teixeira

segura o frasco entre os dedos
puxa a aba
e Spray
dentro da narina
Spray
esquerda
Spray
direita
respira fundo
repete a dose
Spray
Spray
respira fundo
aos poucos desentope
e a via fica livre
para a poeira
e o cheiro ruim

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Protesto

|Mariana Teixeira

pinturas a dedo
nas maçãs dos rostos
e em partes dos corpos
parcialmente nus

rebelião de cores
que gritam
em silêncio
e marcham
e marcham
e mancham
e enfrentam olhos
que desejam
que as pinturas
percam a guerra
para o suor

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Glicose

|Mariana Teixeira

glicose
em pequenas
e esporádicas
doses
deixadas
sobre a mesa
embrulhadas
em papel vermelho
e fita
de cetim

cada pedaço
doce
declara
o que a boca
não fala
o que o medo
não encara
o que o impulso
dispara

terça-feira, 15 de abril de 2014

Gaveta

|Mariana Teixeira

Da gaveta que tudo cabe
às vezes vaza
um monte de coisas
da alma
da lama
na mala

vaza acaso
vaza atraso
vaza caso
às vezes vaza
tanta coisa
que a gaveta parece rasa

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Mariana Teixeira - Biografia

Foto de Leandro Giannotti


Mariana Teixeira é poeta, escritora e redatora.
Nasceu em mil novecentos e oitenta e quatro, mora em São Paulo e sonha em uma casinha no meio do mato.


É autora do livro de poemas e minicontos “Inversos Paralelos” (Editora JAC, 2013), do blog www.correndocomosdedos.blogspot.com.br e tem poemas publicados na antologia “Hiperconexões: realidade expandida" (Editora Terracota, 2013), a primeira antologia de poemas sobre o pós-humano da literatura brasileira, organizada pelo escritor Luiz Brás. Também é criadora do projeto ‘Gota a gota’, juntamente com a artista plástica Shirley Soares (www.facebook.com/duplagotaagota)

domingo, 6 de abril de 2014

Já não se aguenta tanto inverno!

|Alexandra Malheiro

Chegou a Prima, a Vera. Fidalga, a dita Prima, a Vera, que vinha anunciando-se arreganhando os dentes, quando chegou deveras desatou a chover-nos no pêlo e fria como um diabo fugido do inferno. Não há paciência para tanto inverno, sinceramente. Uma pessoa senta-se no café para escrever a cronicazinha a anunciar flores, nardos bravios, o canto coral dos passarinhos, prestes a evocar um sem número de benfazejas virtudes primaveris e é isto, uma estação que mais parece um apeadeiro ao abandono, esta sensaboria de chuva a bater no vidro e mãos a esfregarem-se em aquecimento, a arrefecerem a chávena mais do que esta as consegue aquecer. É claro que, perante estes desmandos climatéricos, a crónica refreia-se, titubeia, atabalhoa-se, atrapalha-se. Tropeça na própria ideia e vê-se obrigada a desviar na direcção do clima, afastando-se do assunto que na verdade trazia engatilhado para molestar vocências.

Assim a ver a chuva a cair de encontro ao vidro, num cinza escuro de borrasca, até perco a vontade de vos contar ao que vinha. Dá-se o caso que se acabou de dar à estampa um livro da minha autoria, de seu nome “Doença Crónica”. Pela primeira vez publico prosa e, sendo esta prosa um conjunto de crónicas, tão inócuas e insípidas como esta que agora lêdes, onde juntei ao baralho as que neste espaço da Revista Literária Sítio têm vindo a ser publicadas, acho curial da minha parte, face aos leitores que aqui me seguem, dar-vos conta disso. É que bem vistas as coisas, se a Primavera tivesse entrado como soía, abrindo as almas aos delírios do amor e da hormona à solta, nem me atreveria a importunar-vos com semelhantes anúncios ao recato e ao recolhimento, mas com esta invernia a arrastar-se por Abril adentro – águas mil – como promete o provérbio, nunca se sabe se a utilidade que o dito volume não possa vir a ter, seja a aquecer-vos junto à lareira enquanto degustam um mazagran, seja, caso o frio continue, como acendalha para a lareira.

sábado, 5 de abril de 2014

Primavera

| Marco Mackaaij

You have to believe in spring
Bill Evans

Deves acreditar na primavera:
Que os pássaros entoem novo encanto;
Que volte a acordar o viçoso espanto;
Que no vale a esperança reverbere;

Que em ciclos de dor tudo regenere;
Que até no mais gelado desencanto
Volte a fluir a seiva de um amante,
O doce engano de uma flor sincera.

E que ninguém te diga, com pesar,
Que já nada é como era dantes,
Porque o que foi é mero sonho eterno.

E que ninguém te minta, a consolar.
As estações mudam sempre, como dantes,
Haverá mais dor no próximo inverno.


Marco Mackaaij nasceu nos Países Baixos em 1970. Vive em Portugal desde 1995, com um breve intervalo de 2 anos na Inglaterra. É professor de matemática na Universidade do Algarve e nos tempos livres escreve poesia e micro-ficção em português. Até agora nunca tinha publicado nada sem fórmulas matemáticas.  

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Distância

|Linda Catarina

Sinto-te longe, distante, alheio..
Fora de si, fora de mim e
dentro de um mundo rodeado de sombras,
encerrado em mágoas e lástimas.

Você me veio e desarmou todo receio,
transformou solidão em esperança,
turbulência em harmonia
e eu sorri de novo, de verdade, de frente.

Cada diferença nos instigava
toda semelhança causava alegria
e a dor de um
encontrou seu espelho no ser do outro.

Do interesse nasceu a cumplicidade,
o medo encontrou afeto e zelo,
a indiferença cedeu lugar à paciência,
e superamos a noção de tempo
quando nos vimos maiores que os anos.

Optamos pelo sublime
pela imperfeição que nos completa
pelo amor simples que arrebata
na mesma medida que nos liberta.

E agora você se vai, se esvai, se desfaz.
Leva consigo meu peito aflito, contrito
e deixa aqui o desespero
de não conseguir ser melhor.

Não recolha seus abraços,
não me prive dos seus beijos,
não me lance esse olhar rijo, essa mão fria
não tenho arma para rebater seu silêncio.

Se cometo os mesmos erros e
minhas falas fartas contradizem as atitudes
eu me rendo e desvaneço
revelando o pavor de perder tudo!

E nessa relação de perda e danos,
de ganhos e desenganos
vamos nos ferindo e nos libertando,
nos impingindo a lógica do absurdo:
que na união dos corpos
nos perdemos um do outro
e na voracidade das palavras
preferimos nos manter mudos!




Linda Catarina Gualda possui Graduação em Letras Português/Inglês/Alemão, Mestrado na área de Literatura Comparada e Doutorado na área de Literatura e Cinema pela UNESP/Assis/SP – Brasil. 
Desde 2009 é articulista convidada da Revista Cinema Caipira (Rio Claro/SP) e foi articulista do Jornal Aquarius (Rio Claro/SP) e do Jornal Folha de Limeira (Limeira/SP), além de publicar artigos acerca de cinema em muitos outros Jornais, periódicos e revistas brasileiras (Jornal Fatec, Revista Matizes, Estação Literária, Línguas & Letras, Soletras, Raído, Signótica, etc). 
Atualmente é professora associada de Língua Inglesa na FATEC- Itapetininga/SP - Brasil, além de ministrar cursos na área de Literatura e Cinema, Literatura Brasileira e Inglesa e Cultura. 

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Toda esperança é lícita, meu bem!

|Cláudia Assis



O sol já tinha dado o ar da sua graça há demasiado tempo, presságio de um belo amanhecer primaveril para além daquelas paredes. O Agente Lisboeta sabia disso por que, ainda deitado na sua cama, apreciava os raios de sol a invadir os aposentos pelas frestas da janela do seu quarto. Teria passado aquela noite em claro, mesmo depois da exaustão de tantas vezes entregar-se à sua Moema. As dores no joelho o fazia lembrar que o ferimento causado na última incursão ainda se fazia presente.

Acometido pela insônia, viu-se obrigado a passar as horas velando o sono da sua adorada princesa tupiniquim, que dormia profundamente ao seu lado. Tê-la ali tão perto, protegida das agruras do mundo e ao alcance dos seus braços, enchia-lhe o seu peito de satisfação. Sorria enquanto fazia festas nos negros cabelos de Moema, que ao sentir o toque do seu amado, moveu-se lentamente, embora permanecendo no mundo dos sonhos. Mas ter novamente a “menina que cheira à flor de pitanga” consigo o fez relembrar dos motivos pelos quais teria recentemente realizado a sua travessia transatlântica – Moema teria fugido por se sentir forçada a escolher entre o amor que nutria pelo lisboeta e compromisso que com a sua gente.

Embora já lá fossem alguns dias desde o reencontro daqueles dois, a verdade é que ainda não tinham encarado de frente aquela dura realidade. “Qual será a sua decisão, afinal? Estará minha adora Moema disposta a renegar o seu povo só para viver comigo, seja lá onde isso for? Ou este reencontro nada mais é que um simples adiamento de uma inevitável despedida?”, refletiu o Agente. E, neste preciso instante, teve medo! Nem mesmo as mais duras missões, ossos do ofício de espião, o teria feito experimentar tal pavor.

Apreciar o despertar de Moema sempre proporcionou ao lisboeta uma alegria peculiar. Era quase sempre a mesma sucessão de acontecimentos. Mas ainda assim, ele conseguia ver um verso novo na poesia que era corpo dela: ela acordava, esfregava os olhos como fazem as crianças ainda sonolentas, espreguiçava-se toda e depois aninhava-se outra vez debaixo das cobertas. Só depois o encarava com um sorriso no olhar, o qual dispensava ao Agente Lisboeta qualquer palavra – o “bom dia, meu bem!” estava ali, implícito. Só que, naquela manhã, havia alguma dureza no ar. Moema percebera imediatamente que o seu “menino” tinha o coração inquieto e a cabeça repleta de dúvidas. Havia decisões a tomar, escolhas por fazer. Ela era capaz de lê-lo como ninguém mais neste mundo – das coisas que mais o assustava era a capacidade que Moema tinha de o ler até nas entrelinhas.

Moema, então, afagou a barba farta que o seu adorado Agente decidira cultivar ultimamente – barba esta que Moema não sabia, mas era parte do disfarce para a sua próxima missão – e, enquanto o acariciava, disse:

– “Estava sonhando contigo. Com a gente, para ser mais exata. Estávamos lá na minha cachoeira. AQUELA onde te amei pela primeira das tantas vezes que ainda hei de te amar. Você se lembra?”. E sorriu docemente.

Ainda que embevecido com aquela deliciosa visão, o Agente Lisboeta tomado por uma inquietante agonia, disparou à "queima-roupa", certeiro como uma flecha, a dúvida que lhe roubara o sono naquela noite:

– “Moema, minha adorada Moema, estar nos teus braços outra vez é a mais sublime forma de passar por essa vida, mas...”, titubeou. Aquela pausa dramática no discurso do lisboeta poderia ser facilmente lida na aflição imposta ao olhar de Moema.

– “Mas o quê?!”, interrompeu a princesa vinda dos trópicos, que num rápido movimento pôs-se sentada diante do Agente, deixando seu corpo nu à mostra, desconcentrado-o solenemente.

– “Mas... Preciso saber se vens para ficar nos meus braços, no meu mundo,em definitivo. Tenho medo que isto tudo, de tão bom que é, não dure o quanto gostaríamos. Tenho esperança que sim. Mas é inegável o medo que me consome”, confidenciou o “menino de olhar doce”.

Mesmo triste por saber que aquela dúvida traidora dormitava no olhar do seu amado, Moema o abraçou. Apertado. Amava-o perdidamente. E, então, sussurrou-lhe ao pé do ouvido:


– “Toda esperança é lícita, meu bem!”, calando-o como usualmente fazia: com o seu melhor beijo.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Manchetes

|Clara Henriques

Não te conforto o desejo amarrado
Nem te dou as páginas humedecidas
Não sei vincar as golas ao recado
Às portas do teu quarto sempre despidas.

Não te quero em rasgos minguantes
Compassos que atropelam a ordem do dia
Nem te sei nas horas rasantes
Na pele que a tua mão sem querer dizia.

Não quero ser manhã e escurecer
No teu beijo traído entre o caos
Não quero a redenção para encher
Mil e uma manchetes nos jornais.

terça-feira, 1 de abril de 2014

o ópio

|Christiana Nóvoa



só a flor exata

me sacia o olfato

e a falta

desse cheiro

é tão macia

como um travesseiro

que me mata

por asfixia





Christiana Helena Nóvoa Soares Carneiro nasceu em 28 de dezembro de 1968 no Rio de Janeiro. 
Formou-se em Artes Cênicas (Faculdade da Cidade/RJ) e em Psicologia (PUC-Rio), com especializações em Arte-Educação e Arte-Terapia. Em 2004 começou a publicar seus textos na internet e, desde 2005, mantém o blog Nóvoa em Folha.