|Mariana Collares
Eu faço autorretratos.
E mais do que uma premência em 'avaliar meu grau de passagem' (Ana Hatherly dixit), talvez os faça, antes de tudo, como um movimento pela reafirmação da minha múltipla intimidade. Trata-se de uma postura moral que me conduz no sentido do entendimento do outro através da minha própria aceitação.
Mais em: https://www.behance.net/gallery/Fridas-AutorretratosSelf-portraits/11221609
"Fridas"
(autorretratos)
Acervo pessoal da autora
Canon PowerShot & iPhone
2011-2014
domingo, 23 de março de 2014
sábado, 22 de março de 2014
Luxo
Luxo from Mariana Collares on Vimeo.
|Marcelo Sahea & Mariana Collares
Performance-relâmpago (site specific) realizada em parceria de Mariana Collares e Marcello Sahea na cidade de Tramandaí/RS (Brasil), com foco na sustentabilidade e educação ambiental. Material utilizado: lixo encontrado na praia.
"Luxo"
Performance-relâmpago de Marcello Sahea & Mariana Collares
Direção: Mariana Collares
Edição: Marcello Sahea
Trilha Sonora: Barulhista
Digital video | 3'00
sexta-feira, 21 de março de 2014
Olhos sobre tela
Olhos sobre tela from Mariana Collares on Vimeo.
|Mariana Collares
Sozinho, na sala de estar, janela aberta, olha para “velhice -tal é o nome que os outros lhe dão-”e
pensa que poderia ser o tempo de sua felicidade quando um animal morre, ou quase morre, restam
o homem e sua alma ele se vê em meio às formas luminosas e vagas que ainda não são a escuridão
olha para a cidade de buenos aires, que vê da janela, e que antes se espalhava em subúrbios e a
enxerga agora estreitada na Recoleta, no Rerito, nas vagas ruas do once e nas casas velhas que
ainda chama O Sul.
Baixa os olhos sobre a folha branca e pensa sempre em sua vida foram demasiadas as coisas.
Demócrito de Abdera arracou os próprios olhos para pensar - hoje vê o o tempo arrancando-lhe os
olhos. A tela escurece lentamente, porém sem dor, e vê-se fluir por um manso declive que se
assemelha à eternidade. Seus amigos não têm mais rosto e as mulheres continuam sendo o que
foram há muitos anos. As esquinas podem ser outras, já não sabe, não há mais letras nas páginas
dos livros.
Tudo isso deveria atemorizá-lo mas o acalenta como um deleite, ou um retorno. Das gerações dos
livros que há na terra sabe ter lido apenas uns poucos aqueles que continua lendo na memória
lendo e reescrevendo com os olhos que já não têm. De todos os lugares convergem os caminhos que
lhe trouxeram ao seu secreto centro. Este mesmo em que se encontra hoje na sala de estar em
frente à janela e o vento. E tudo aquilo que ecoa como passos e homens, e mulheres, e agonias e
ressurreições, foram os dias e as noites, foram entressonhos e sonhos e cada mínimo instante do
ontem e todas as memórias do mundo, a espada do dinamarquês, a lua do persa, e os silêncios dos
mortos, todos os amores, todas as palavras. Emerson e a neve e tantas outras coisas - agora
poderá esquecê-las.
Vê-se em seu centro imóvel, na sala de estar. A janela, o vento, as árvores fora. O copo d’água. A
mesa de centro. O livro aberto no fim. O lápis solto sobre a folha. A folha que é a sua álgebra e sua
chave. O seu espelho.
“Breve eu saberei quem sou”.
(OLHOS SOBRE TELA - Mariana Collares (texto baseado no poema Elogio da sombra, de Jorge Luis Borges)
"Olhos sobre tela" / Mariana Collares
Video-performance baseada no poema "Elogio da Sombra", de Jorge Luis Borges.
Texto, performance e leitura: Mariana Collares
Direção de Arte: Marcello Sahea
Música: Colo-paradeiro, de Barulhista
Digital video | 3'48"
2013
quinta-feira, 20 de março de 2014
Olhos de ressaca
Olhos de ressaca from Mariana Collares on Vimeo.
|Mariana Collares
— (Juro!) Deixe ver os olhos, Capitu.
Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada."
Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim.
Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei
extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que
lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto,
com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar
crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...
Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles
olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que
eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a
vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos
espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha
crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do Céu terão marcado esse tempo infinito
e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a
duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do Céu conhecer
a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a
quantidade das delícias que terão gozado no Céu os seus desafetos aumentará as dores aos
condenados do inferno. Este outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para
emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me
definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe, — para dizer alguma
coisa, — “Eu sou capaz de os pentear, se eu quiser.
(Trecho do romance DOM CASMURRO -Machado de Assis)
"Olhos de Ressaca" / Trecho do romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis
Concepção, voz, performance e direção: Mariana Collares
Direção de Arte, edição, imagens & mixagem: Marcello Sahea
Digital video | 3'07"
2013
quarta-feira, 19 de março de 2014
Aurora
Aurora from Mariana Collares on Vimeo.
|Mariana Collares
Eu abracei a aurora de verão.
Nada ainda se movia na fachada dos palácios. A água estava morta. Acampamentos de sombras nao deixavam a trilha do bosque. Eu caminhei, despertando os hálitos vivos e tépidos; e as pedrarias olharam, e as asas levantaram sem um som.
O primeiro acontecimento foi, já num atalho cheio de centelhas frescas e pálidas, uma florque me disse seu nome.
Ri à louca cascata que descia desgrenhada através dos pinheiros. Pelo cimo prateado, reconheci a deusa.
E então, um a um, eu levantei os véus. Na alameda, agitando os braços. Pela planície, onde a denunciei ao galo. Na cidade grande, ela fugia entre os campanários e as cúpulas e, correndo como um mendido sobre o cais de mármore, eu a caçava.
No alto da estrada, perto de um bosque de loureiros, eu a cingi com o seu amontoado de véus, e senti um pouco o seu corpo imenso. A aurora e a criança caíram na orla do bosque. Ao acordar, meio-dia.
(Aurora, poema do livro ILUMINURAS - Arthur Rimbaud)
Fotos: https://www.behance.net/gallery/FotosPhotos-Aurora/11212675
"Aurora" / Arthur Rimbaud
Concepção, voz, performance e direção: Mariana Collares
Direção de Arte, edição, imagens & mixagem: Marcello Sahea
Trilha: loop de Ronnie Rekkerd
Tradução livre: Mariana Collares
Digital video | 3'11"
2013
terça-feira, 18 de março de 2014
Elogio da Loucura
Elogio da Loucura from Mariana Collares on Vimeo.
|Mariana Collares
Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens.
(Fragmento de ELOGIO DA LOUCURA -Erasmo de Rotterdam)
Fotos: https://www.behance.net/gallery/FotosPhotos-Elogio-da-Loucura/11213311
"Elogio da Loucura" / Erasmo de Rotterdam
Concepção, voz e performance: Mariana Collares
Direção de Arte: Marcello Sahea
Tradução: Paulo Neves
Digital video | 00'43"
2013
segunda-feira, 17 de março de 2014
Projeto: Eu sou uma outra - Multileituras
|Mariana Collares
Eu faço performances em vídeo.
Um projeto que começou com gravações de podcasts em que eu fazia a leitura de textos vários - autorais ou não -, ganhou movimento a partir de 2013, com a combinação dos vídeos que passei a produzir com o poeta e artista visual Marcello Sahea.
Nesses vídeos eu canto, leio e interpreto fragmentos da literatura mundial, com a intenção de incentivar o leitor a estabelecer uma nova relação com o texto, estimulando a curiosidade e a autodescoberta pela leitura.
Tornar público o registro que faço do convívio com cada uma das mulheres que abrigo acaba tornando possível, também, a capacidade de exercer o meu potencial dialógico com todos os outros que compõem cada um dos meus iguais.
E tento, com minha arte, fazer com que essa prática ocorra sempre de forma poética. Não por acaso, encontrei nos versos de J.A.Rimbaud (‘Je est un autre’) a inspiração para nomear o projeto como: EU SOU UMA OUTRA.
Eu faço performances em vídeo.
Um projeto que começou com gravações de podcasts em que eu fazia a leitura de textos vários - autorais ou não -, ganhou movimento a partir de 2013, com a combinação dos vídeos que passei a produzir com o poeta e artista visual Marcello Sahea.
Nesses vídeos eu canto, leio e interpreto fragmentos da literatura mundial, com a intenção de incentivar o leitor a estabelecer uma nova relação com o texto, estimulando a curiosidade e a autodescoberta pela leitura.
Tornar público o registro que faço do convívio com cada uma das mulheres que abrigo acaba tornando possível, também, a capacidade de exercer o meu potencial dialógico com todos os outros que compõem cada um dos meus iguais.
E tento, com minha arte, fazer com que essa prática ocorra sempre de forma poética. Não por acaso, encontrei nos versos de J.A.Rimbaud (‘Je est un autre’) a inspiração para nomear o projeto como: EU SOU UMA OUTRA.
Mariana Collares - Biografia
Mariana Collares (Porto Alegre/RS, Brasil), é escritora e performer interdisciplinar. Publicou Devaneios Literários, Crônicas, em 2010. Publica textos em sites e portais literários no Brasil e exterior. É editora e colunista na Revista Benfazeja Comunidade Literária (digital). Desenvolve o projeto de multileitura EU SOU UMA OUTRA - que reúne performances multimídia, leituras públicas e coluna para podcast (web rádio)-, e realiza ações de intervenção urbana. Atualmente prepara o seu primeiro romance - Manhãs de Abril (ainda sem editora) - com lançamento previsto para este ano.
Blogue da autora: http://www.marianacollares.com/
Link do livro: http://www.bookess.com/read/5947-devaneios-literarios/
sábado, 15 de março de 2014
O peixe além do rio
|Márcia Barbieri
E os frutos estavam todos suspensos sobre minha cabeça, verdes no princípio, não podia me mexer, qualquer movimento romperia a tarde – rotação translação – bagunçaria o solstício. O dia esticava e os figos continuavam podres, fatiados, é como se os pássaros os tivessem estripados antes de devorá-los. Olhei em direção à janela, ela estava fechada, já não sei precisar a quantos anos, imaginei o corpo do meu pai estendido na cama como se fosse uma fruta que ainda amarra a boca, esperando amadurecer. À força. Pensei na solidão branca e calcificada do esqueleto, vendo os músculos se descolarem aos poucos. Pensei na carcaça das baleias brancas. Quando era menor eu acreditava que deveria ter medo dos mortos, achava que eles eram onipresentes e podiam escutar meus passos-ruídos sobre o assoalho de madeira. Quando escurecia ficava com os olhos bem abertos para poder me defender, caso eles aparecessem. Depois fui percebendo que os vivos eram muito mais assustadores e surgiam a qualquer hora e me agarravam com as mãos pegajosas e frias de suor. Lagartos amarelos. Percebi com os anos que o ranger de dentes eram dos seres que estavam em vigília, conhecidos por essas bandas como homo erectus.
− Ela tem razão, parece um planeta.
− Não brinca! Eles são grandes e pouco estéticos, tenho vergonha de olhar no espelho, minha cara está virando uma monstruosidade.
− Deixa de besteiras, já te falei que depois da cirurgia, tudo voltará ao seu devido lugar.
− Às vezes, me sinto completamente entorpecido...
− Você divaga muito, tem uma mente ágil, você percorre lugares desnecessários, sente dores ilusórias, a sua ansiedade é que está te matando, os caroços são apenas manifestações desse seu estado mental perturbado.
− O que adiantaria¿ Uma dose maior de fluoxetina¿
− Quem sabe... O que acho mesmo é que precisa aprender a ser como as moscas.
− Como assim¿ Que vantagens eu teria em ser como as moscas¿ Revirar merda¿ Já faço isso bem demais, não é fácil viver todos os dias, querendo ou não atolamos o pé na merda.
− Não foi bem isso que quis dizer... As moscas chafurdam na merda o tempo inteiro, mas nem por isso se tornam merda, continuam sendo feitas de outra matéria, uma matéria mais nobre, voam sem culpa para outros corpos.
− Tem toda razão, não sou feito da mesma matéria das moscas, até gostaria de ser assim solto, mas sou dado a afetos fáceis, o caos alheio me perturba e desorganiza. Não consigo pousar em outros corpos e sair ileso. Você consegue¿
− Não sei, acho que sou mais frio que você. De qualquer forma estou achando esse papo pesado demais. Quer um cigarro¿ Você está muito tenso hoje.
− Você é o único médico que me recomenda cigarros para acalmar meu humor. Não fumo há três dias, mas acho que estou precisando mesmo de um pouco de fumaça para anestesiar meu cérebro.
− Então, tome logo dois, assim se sentirá anestesiado por mais tempo.
− Passa aí, tenho certeza que me sentirei melhor quando anoitecer. Se é que hoje vai anoitecer...
− Talvez pense assim porque vive numa insônia permanente.
− É difícil adormecer sabendo que existe algo ruindo embaixo da terra.
− Você é mesmo um rapaz complicado, o que se move embaixo da terra que te assusta tanto a ponto de tirar seu sono¿ Roedores gigantes¿
− É obvio que já sou grande o suficiente para acreditar em roedores gigantes. Não é disso que estou falando, eu me refiro a parte geográfica da coisa.
− Geográfica¿
– Você nunca sentiu medo das placas tectônicas¿
− Você está brincando! Você acha mesmo que já perdi o sono pensando no movimento das placas tectônicas¿
− Por que não¿ Você não acha incrível imaginar que enquanto dormimos as placas estão todas lá, se movendo embaixo dos nossos corpos inertes, rindo da nossa inércia¿
− Pra ser bem sincero amigo não acho isso incrível, não ligo a mínima pra essas coisas. A única coisa que me faz perder o sono é o sexo e assim mesmo só durante o ato.
− Tem toda razão, é besteira minha, sou um lunático.
− Eu sei e isso me diverte bastante.
− Meu cigarro está acabando, está quase queimando a ponta dos dedos e continuo pior do que antes, acho que preciso de um médico mais otimista.
− Tem razão, ando ácido esses dias, é o mal da velhice, meu garoto.
− Então espero não envelhecer.
− Infelizmente não é uma opção.
− Pode me dar mais um cigarro¿ Assim posso me distrair até em casa. Já vou, não quero que perca mais seu tempo comigo, deve ter um monte de clientes te esperando e eu aqui te empatando.
− Larga de besteira, não atendo mais ninguém esse horário, meu expediente já acabou, você sabe que não faço a linha do bom samaritano. Fica tranquilo.
Fui embora com um peso nos ombros. Acendi o cigarro e fui observando o desenho que a fumaça fazia no ar. Nas ruas todos os rostos se pareciam, embora em nenhum deles eu me reconhecesse. Era mais uma vez o velho macaco em frente ao espelho. Conversar com Paulo não me aliviava muito, ele era uma grande figura, mas nossos corpos eram feitos de uma combinação totalmente diversa de átomos, o que nos tornava praticamente seres de outra espécie. Perto dele eu me sentia um símio. Um símio que estava há milhões de anos na Terra, entretanto ainda trazia a mão dura e inábil, uma mão que ainda não sabia utilizar os instrumentos civilizatórios, os dedos longos e pouco articulados, nunca fui bom em pinçar objetos pequenos. Eu ainda produzia fogo lascando pedras. Utilizava vasos de cerâmica. Ainda me escondia em cavernas úmidas e fazia pinturas rupestres das minhas caças. Procurava adivinhar o futuro lendo as vísceras dos porcos. Sacrificava animais para amenizar a fúria dos deuses. Era inútil conversar sobre as coisas que me incomodavam, ninguém poderia levar a sério um homem que se assemelhava a um peixe, mexia a boca como um peixe desesperado, tirado há pouco da água. Ninguém poderia entender o coração oco de um ventríloquo. Os bonecos de cores variadas distraiam a anemia das paredes. Artérias e veias se confundiam na vastidão do meu corpo. Lembro da minha perna sendo rompida por canos e todos pedindo que me acalmasse, era apenas uma ponte de safena, milhões de homens já tinham se beneficiado com esse método aparentemente invasivo. Eu estava acostumado às suturas, às trepanações, a membros que não pertenciam a meu corpo. Um ventríloquo. Tinha a impressão que às vezes a minha alma ficava presa naqueles bonecos. Outras vezes me sentia numa sessão vutu, como se todos os meus movimentos fossem controlados por uma mão invisível atrás do palco ou um homem vestido de preto para não ser visto pela plateia.
− Sabe como eu vejo a vida¿
− Como poderia saber se a cada dia você é outro¿ Tenho a impressão que te traio com esse outro que por vezes se apossa do seu corpo.
− É como se a vida fosse uma daquelas goiabas grandes, você pega a faca, corta e dentro ela está bonita e vermelha, então você prepara seus dentes e perfura a polpa, mas na segunda mordida, você vê uma larva branca tentando escapar em meio ao desenho das sementes. E a fruta está tão irresistível que o impulso é devorá-la com larva e tudo. Você para e pensa: “Que importância tem essa larva branca e raquítica¿”
− E o que acontece¿ Você devora a goiaba ou o bicho anêmico vence¿
− Isso é o que eu ainda não sei. Em determinados momentos acredito que venceríamos a larva, em outros acho que a larva riria de nossa cara.
− Não posso escolher por você, mas quando eu era criança, eu nunca pensava, simplesmente engolia aquele bicho branco fingindo não enxergá-lo. Hoje ainda faria o mesmo.
− A infância é maravilhosa por isso, o impulso pela vida sempre ganha.
− Falando assim até parece que você é muito velho...
− E não¿
− Não!
− É que você está fazendo como a maioria, medindo minha vida por anos, assim realmente eu fico parecendo um garotinho.
− E como eu deveria fazer¿
− Deveria calcular levando em conta as experiências que tive.
− Talvez, mas assim é muito difícil ser precisa.
− Não quero que seja precisa, só que entenda que sou bem mais velho do que aparento e quero que me respeite por isso.
− Você sabe que eu te respeito e admiro.
− Eu vejo além da sua cara, e isso não é bom. Eu queria boiar na superfície, como a maioria das pessoas.
− Eu não estaria aqui se você boiasse como a maioria, você sabe, o que me prendeu foi ver em você um escafandrista.
− Não sei... Será que sou mesmo um escafandrista ou apenas um louco que colocou pedras no bolso antes do mergulho¿
− Um escafandrista, com toda certeza. Você me trouxe novamente à superfície, eu ainda vejo o fundo, mas de um lugar seguro.
− Eu gosto de sentir o quanto confia em mim.
− E a cirurgia, conseguiu marcar¿
− Consegui sim, mas você sabe o que penso dessas cirurgias.
− De novo!
− Não quero bancar o chato, mas eu não agüento mais ficar me cortando e esperando outro nódulo aparecer.
− Mas o que o Paulo falou¿
− O de sempre, a cirurgia será um sucesso, nem vai parecer que você tirou nódulos do rosto, vamos torcer para que eles desapareçam de vez.
− Então, qual é o problema¿ Ele não disse que dará tudo certo¿
− Sim, disse, mas você se lembra quantas vezes ele falou isso¿ Em todas as cirurgias ele diz que a probabilidade de reaparecer os cistos é mínima, no entanto, eles sempre reaparecem, eu quero ser mais paciente, mas está difícil.....
− Não podemos fazer nada até a cirurgia. Você tem que se acalmar, não foi você mesmo quem disse que esses cistos são de fundo emocional¿
− Por isso mesmo acho improvável que eles desapareçam, é como se minha alma quisesse tomar forma, deixar de ser abstração, matéria gasosa e se transformar em algo concreto, ainda que sem nome, quisesse se apropriar do meu sangue.
− Você sabe que não me incomodo com seus nódulos, eles me parecem um mundo paralelo, planetas girando em órbita, girando em torno de você.
− Me consumindo, essa é a verdade...
− Você sabia que amanhã acontece o perigeu¿
− Como poderia me esquecer¿ Não durmo há uma semana, imaginando as placas tectônicas se movimentando embaixo do meu corpo...
− Será uma noite linda! Li no jornal que não haverá nenhuma catástrofe. Não deveria se preocupar tanto com os movimentos da Terra.
− Não me lembro dos jornais terem falado das tsunamis antes de elas ocorrerem... e depois como posso dormir tranqüilo sabendo que a Lua está mais próxima da Terra¿
− Só os ignorantes têm o sono profundo.
− Às vezes, você consegue ser muito mau!
− Não é maldade, eu juro! Eu adoraria fazer parte dessa massa amorfa e homogênea, você nem imagina o quanto eu gostaria...
− Esquece isso, vamos pra cama e eu te faço ser um pouco dessa massa amorfa e homogênea... seremos uma coisa só, um monstro de duas cabeças e vários membros... hermafrodita...
A lua vagava solitária na cartografia dilacerada do meu corpo, minhas tripas doíam e eu não sabia o que fazer. Paulo já tinha me explicados milhões de vezes que eu tinha tendências a doenças psicossomáticas. No começo me assustei com a extensão do nome, mas ele me garantiu que não era nada sério, era como se meu corpo formasse pequenos nódulos para poupar minha mente. Tinha operado oito vezes, mas os nódulos ainda apareciam nos lugares mais inusitados. O penúltimo apareceu dentro da orelha, enorme e vermelho. Anuncia gostava, dizia que era igualzinho um planeta perdido no sistema solar e não era nem preciso de um telescópio.
E os frutos estavam todos suspensos sobre minha cabeça, verdes no princípio, não podia me mexer, qualquer movimento romperia a tarde – rotação translação – bagunçaria o solstício. O dia esticava e os figos continuavam podres, fatiados, é como se os pássaros os tivessem estripados antes de devorá-los. Olhei em direção à janela, ela estava fechada, já não sei precisar a quantos anos, imaginei o corpo do meu pai estendido na cama como se fosse uma fruta que ainda amarra a boca, esperando amadurecer. À força. Pensei na solidão branca e calcificada do esqueleto, vendo os músculos se descolarem aos poucos. Pensei na carcaça das baleias brancas. Quando era menor eu acreditava que deveria ter medo dos mortos, achava que eles eram onipresentes e podiam escutar meus passos-ruídos sobre o assoalho de madeira. Quando escurecia ficava com os olhos bem abertos para poder me defender, caso eles aparecessem. Depois fui percebendo que os vivos eram muito mais assustadores e surgiam a qualquer hora e me agarravam com as mãos pegajosas e frias de suor. Lagartos amarelos. Percebi com os anos que o ranger de dentes eram dos seres que estavam em vigília, conhecidos por essas bandas como homo erectus.
− Ela tem razão, parece um planeta.
− Não brinca! Eles são grandes e pouco estéticos, tenho vergonha de olhar no espelho, minha cara está virando uma monstruosidade.
− Deixa de besteiras, já te falei que depois da cirurgia, tudo voltará ao seu devido lugar.
− Às vezes, me sinto completamente entorpecido...
− Você divaga muito, tem uma mente ágil, você percorre lugares desnecessários, sente dores ilusórias, a sua ansiedade é que está te matando, os caroços são apenas manifestações desse seu estado mental perturbado.
− O que adiantaria¿ Uma dose maior de fluoxetina¿
− Quem sabe... O que acho mesmo é que precisa aprender a ser como as moscas.
− Como assim¿ Que vantagens eu teria em ser como as moscas¿ Revirar merda¿ Já faço isso bem demais, não é fácil viver todos os dias, querendo ou não atolamos o pé na merda.
− Não foi bem isso que quis dizer... As moscas chafurdam na merda o tempo inteiro, mas nem por isso se tornam merda, continuam sendo feitas de outra matéria, uma matéria mais nobre, voam sem culpa para outros corpos.
− Tem toda razão, não sou feito da mesma matéria das moscas, até gostaria de ser assim solto, mas sou dado a afetos fáceis, o caos alheio me perturba e desorganiza. Não consigo pousar em outros corpos e sair ileso. Você consegue¿
− Não sei, acho que sou mais frio que você. De qualquer forma estou achando esse papo pesado demais. Quer um cigarro¿ Você está muito tenso hoje.
− Você é o único médico que me recomenda cigarros para acalmar meu humor. Não fumo há três dias, mas acho que estou precisando mesmo de um pouco de fumaça para anestesiar meu cérebro.
− Então, tome logo dois, assim se sentirá anestesiado por mais tempo.
− Passa aí, tenho certeza que me sentirei melhor quando anoitecer. Se é que hoje vai anoitecer...
− Talvez pense assim porque vive numa insônia permanente.
− É difícil adormecer sabendo que existe algo ruindo embaixo da terra.
− Você é mesmo um rapaz complicado, o que se move embaixo da terra que te assusta tanto a ponto de tirar seu sono¿ Roedores gigantes¿
− É obvio que já sou grande o suficiente para acreditar em roedores gigantes. Não é disso que estou falando, eu me refiro a parte geográfica da coisa.
− Geográfica¿
– Você nunca sentiu medo das placas tectônicas¿
− Você está brincando! Você acha mesmo que já perdi o sono pensando no movimento das placas tectônicas¿
− Por que não¿ Você não acha incrível imaginar que enquanto dormimos as placas estão todas lá, se movendo embaixo dos nossos corpos inertes, rindo da nossa inércia¿
− Pra ser bem sincero amigo não acho isso incrível, não ligo a mínima pra essas coisas. A única coisa que me faz perder o sono é o sexo e assim mesmo só durante o ato.
− Tem toda razão, é besteira minha, sou um lunático.
− Eu sei e isso me diverte bastante.
− Meu cigarro está acabando, está quase queimando a ponta dos dedos e continuo pior do que antes, acho que preciso de um médico mais otimista.
− Tem razão, ando ácido esses dias, é o mal da velhice, meu garoto.
− Então espero não envelhecer.
− Infelizmente não é uma opção.
− Pode me dar mais um cigarro¿ Assim posso me distrair até em casa. Já vou, não quero que perca mais seu tempo comigo, deve ter um monte de clientes te esperando e eu aqui te empatando.
− Larga de besteira, não atendo mais ninguém esse horário, meu expediente já acabou, você sabe que não faço a linha do bom samaritano. Fica tranquilo.
Fui embora com um peso nos ombros. Acendi o cigarro e fui observando o desenho que a fumaça fazia no ar. Nas ruas todos os rostos se pareciam, embora em nenhum deles eu me reconhecesse. Era mais uma vez o velho macaco em frente ao espelho. Conversar com Paulo não me aliviava muito, ele era uma grande figura, mas nossos corpos eram feitos de uma combinação totalmente diversa de átomos, o que nos tornava praticamente seres de outra espécie. Perto dele eu me sentia um símio. Um símio que estava há milhões de anos na Terra, entretanto ainda trazia a mão dura e inábil, uma mão que ainda não sabia utilizar os instrumentos civilizatórios, os dedos longos e pouco articulados, nunca fui bom em pinçar objetos pequenos. Eu ainda produzia fogo lascando pedras. Utilizava vasos de cerâmica. Ainda me escondia em cavernas úmidas e fazia pinturas rupestres das minhas caças. Procurava adivinhar o futuro lendo as vísceras dos porcos. Sacrificava animais para amenizar a fúria dos deuses. Era inútil conversar sobre as coisas que me incomodavam, ninguém poderia levar a sério um homem que se assemelhava a um peixe, mexia a boca como um peixe desesperado, tirado há pouco da água. Ninguém poderia entender o coração oco de um ventríloquo. Os bonecos de cores variadas distraiam a anemia das paredes. Artérias e veias se confundiam na vastidão do meu corpo. Lembro da minha perna sendo rompida por canos e todos pedindo que me acalmasse, era apenas uma ponte de safena, milhões de homens já tinham se beneficiado com esse método aparentemente invasivo. Eu estava acostumado às suturas, às trepanações, a membros que não pertenciam a meu corpo. Um ventríloquo. Tinha a impressão que às vezes a minha alma ficava presa naqueles bonecos. Outras vezes me sentia numa sessão vutu, como se todos os meus movimentos fossem controlados por uma mão invisível atrás do palco ou um homem vestido de preto para não ser visto pela plateia.
− Sabe como eu vejo a vida¿
− Como poderia saber se a cada dia você é outro¿ Tenho a impressão que te traio com esse outro que por vezes se apossa do seu corpo.
− É como se a vida fosse uma daquelas goiabas grandes, você pega a faca, corta e dentro ela está bonita e vermelha, então você prepara seus dentes e perfura a polpa, mas na segunda mordida, você vê uma larva branca tentando escapar em meio ao desenho das sementes. E a fruta está tão irresistível que o impulso é devorá-la com larva e tudo. Você para e pensa: “Que importância tem essa larva branca e raquítica¿”
− E o que acontece¿ Você devora a goiaba ou o bicho anêmico vence¿
− Isso é o que eu ainda não sei. Em determinados momentos acredito que venceríamos a larva, em outros acho que a larva riria de nossa cara.
− Não posso escolher por você, mas quando eu era criança, eu nunca pensava, simplesmente engolia aquele bicho branco fingindo não enxergá-lo. Hoje ainda faria o mesmo.
− A infância é maravilhosa por isso, o impulso pela vida sempre ganha.
− Falando assim até parece que você é muito velho...
− E não¿
− Não!
− É que você está fazendo como a maioria, medindo minha vida por anos, assim realmente eu fico parecendo um garotinho.
− E como eu deveria fazer¿
− Deveria calcular levando em conta as experiências que tive.
− Talvez, mas assim é muito difícil ser precisa.
− Não quero que seja precisa, só que entenda que sou bem mais velho do que aparento e quero que me respeite por isso.
− Você sabe que eu te respeito e admiro.
− Eu vejo além da sua cara, e isso não é bom. Eu queria boiar na superfície, como a maioria das pessoas.
− Eu não estaria aqui se você boiasse como a maioria, você sabe, o que me prendeu foi ver em você um escafandrista.
− Não sei... Será que sou mesmo um escafandrista ou apenas um louco que colocou pedras no bolso antes do mergulho¿
− Um escafandrista, com toda certeza. Você me trouxe novamente à superfície, eu ainda vejo o fundo, mas de um lugar seguro.
− Eu gosto de sentir o quanto confia em mim.
− E a cirurgia, conseguiu marcar¿
− Consegui sim, mas você sabe o que penso dessas cirurgias.
− De novo!
− Não quero bancar o chato, mas eu não agüento mais ficar me cortando e esperando outro nódulo aparecer.
− Mas o que o Paulo falou¿
− O de sempre, a cirurgia será um sucesso, nem vai parecer que você tirou nódulos do rosto, vamos torcer para que eles desapareçam de vez.
− Então, qual é o problema¿ Ele não disse que dará tudo certo¿
− Sim, disse, mas você se lembra quantas vezes ele falou isso¿ Em todas as cirurgias ele diz que a probabilidade de reaparecer os cistos é mínima, no entanto, eles sempre reaparecem, eu quero ser mais paciente, mas está difícil.....
− Não podemos fazer nada até a cirurgia. Você tem que se acalmar, não foi você mesmo quem disse que esses cistos são de fundo emocional¿
− Por isso mesmo acho improvável que eles desapareçam, é como se minha alma quisesse tomar forma, deixar de ser abstração, matéria gasosa e se transformar em algo concreto, ainda que sem nome, quisesse se apropriar do meu sangue.
− Você sabe que não me incomodo com seus nódulos, eles me parecem um mundo paralelo, planetas girando em órbita, girando em torno de você.
− Me consumindo, essa é a verdade...
− Você sabia que amanhã acontece o perigeu¿
− Como poderia me esquecer¿ Não durmo há uma semana, imaginando as placas tectônicas se movimentando embaixo do meu corpo...
− Será uma noite linda! Li no jornal que não haverá nenhuma catástrofe. Não deveria se preocupar tanto com os movimentos da Terra.
− Não me lembro dos jornais terem falado das tsunamis antes de elas ocorrerem... e depois como posso dormir tranqüilo sabendo que a Lua está mais próxima da Terra¿
− Só os ignorantes têm o sono profundo.
− Às vezes, você consegue ser muito mau!
− Não é maldade, eu juro! Eu adoraria fazer parte dessa massa amorfa e homogênea, você nem imagina o quanto eu gostaria...
− Esquece isso, vamos pra cama e eu te faço ser um pouco dessa massa amorfa e homogênea... seremos uma coisa só, um monstro de duas cabeças e vários membros... hermafrodita...
A lua vagava solitária na cartografia dilacerada do meu corpo, minhas tripas doíam e eu não sabia o que fazer. Paulo já tinha me explicados milhões de vezes que eu tinha tendências a doenças psicossomáticas. No começo me assustei com a extensão do nome, mas ele me garantiu que não era nada sério, era como se meu corpo formasse pequenos nódulos para poupar minha mente. Tinha operado oito vezes, mas os nódulos ainda apareciam nos lugares mais inusitados. O penúltimo apareceu dentro da orelha, enorme e vermelho. Anuncia gostava, dizia que era igualzinho um planeta perdido no sistema solar e não era nem preciso de um telescópio.
sexta-feira, 14 de março de 2014
O jardim branco
|Márcia Barbieri
Olho para o céu e vejo Deus transformado em um pássaro negro de origami e ele devora a carne verde que se forma em volta da minha carcaça e ele vai espalhando no músculo da rocha a minha combinação incerta de átomos.
Volto ao jardim branco em frente ao salão de festas, um acorde ainda ressoa longe no meu ouvido esquerdo. Disfarço minha ânsia de gritar. Ele continuava lá sentado no banco, como se eu estivesse ali o tempo todo mirando seu perfil. Ele me falava sobre a sua misoginia, sobre o quanto repugnava as mulheres, no entanto, elas nem eram capazes de retribuir tal aversão, eram tolas demais para experimentar o ódio. Como ele podia respeitar alguém que não sabia nutrir ódio pela humanidade¿ Como ele podia respeitar alguém que se curvava ao menor tremor¿ Considerava que o buraco no meio de suas pernas era a prova mais evidente e atroz de sua fraqueza. Nunca conseguira encontrar uma mulher que sustentasse a palavra até o fim, sua língua é mais ágil que seu cérebro. Diferente dos homens, que podiam ser calhordas, mas jamais voltavam atrás em seus acordos. Olhe bem para mim, diga se eu não estou certo quanto as minhas colocações¿
Divaguei um pouco enquanto ele pronunciava suas blasfêmias, o que bem poderia ser o que ele chamava de um defeito tipicamente feminino. Ajeitei o cabelo que escapava por baixo do chapéu. Apalpei meu externo, à procura inútil dos meus seios, eles são ridiculamente pequenos e escorregam facilmente...
Não sei se a culpa era dos pelos grossos que cobriam todo o meu dorso ou do meu chapéu coco um tanto masculino. O fato é que ele não parecia reparar que eu era de uma espécie inferior a sua.
Estendi meus dedos em volta do pescoço como se procurasse um pomo de adão ou desapertasse uma gravata borboleta que não existia. Ele reparava em meus movimentos e pigarreava de alegria, afinal, éramos tão parecidos que ele podia se deitar na minha cama e não tocar no meu sexo, porque meu órgão era grande, pesado e imponente como o dele e como dos touros que não foram castrados. Eu não era como as outras que tinham as genitálias escondidas na abstração e nas gretas do corpo, meu clitóris despencava das minhas ancas como um sino enferrujado prestes a cair.
A mulher é cheia de pretensões e na sua cabeça germinam apenas futilidades, diz conhecer o abismo dos homens, enquanto sua alma não passa de um porão cheio de quinquilharias. Como poderia adivinhar a ranhura na face do macho? No entanto, qualquer pedra desse jardim pode dissertar mais sobre a evolução humana do que esse ser rastejante originário da vértebra fraturada de um cão sarnento. Eu não tocaria na vagina de uma mulher nem que me pagassem, todas elas são dentadas.
Consegue sentir a música? Inteira, eu digo, sem distinguir os instrumentos de sopro ou a agonia das cordas¿ Sem imaginar a orquestra, o maestro ou a intriga entre os artistas que fingem cantar em uníssono como se fossem um só corpo, uma só voz, um só anseio¿ Uma mulher não conseguiria, ela ficaria horas analisando sobre a importância das notas utilizadas, o compasso, o ritmo, a harmonia, porque para ela é mais importante a origem do que o produto final. Remói os miomas do seu útero e não é capaz de reconhecer a cria que rasga sua vulva.
Ele continuava discorrendo como um maníaco depressivo. Olhei para seu rosto animalesco, para a curvatura das suas costas, um pouco disfarçada pelo terno escuro, para os seus débeis e longos dedos. Recordei da primeira vez que o vi sem roupa através da fechadura, não conseguia entender como eu podia amar um homem como aquele, um primata, eu me perguntava se ele participara daquela tal evolução que transformou os macacos em homo erectus, a sua coluna vertebral era tão envergada que eu poderia também ver a sua semelhança com um cachorro, nunca com outro homem ou com um ser divino, feito de matéria porosa e perfeita.
Embora ele não percebesse, ele também não passava de um símio, que por um erro conceitual do Ser ganhou o nome de homem.
Toquei de novo o avesso da minha cartografia. A mulher era um corpo oco até que Deus a sodomizou, ejaculou o sêmem da desgraça na sua cloaca. Então, ela deu o primeiro suspiro, descobriu que o mundo era semelhante a um pântano, deixou de ser objeto vazio para se tornar um simulacro e simultaneamente um criadouro de homem.
Quando vi o quanto era ridícula minha forma, pensei em partir. Contudo, ao olhar ao meu redor, eu percebi que estava só, não havia ninguém além de mim no jardim branco, não havia nenhuma festa no saguão, nem danças e o som de jazz que escutava não passava do coaxar dos loucos do outro lado do muro das lamentações e tampouco o jardim branco existia. Um escaravelho rolava um esterco de um lado para o outro imitando os movimentos de translação e rotação. Eu estava suspenso por uma espécie invisível de corda, o balé das marionetas, eu poderia despencar a qualquer momento e experimentei o medo pela primeira vez. Dei uma cutucada embaixo das minhas costelas, não senti nada, minha carne se tornou gelatinosa e transparente. Definitivamente eu estava no não-lugar e meu nome era Deus.
“O homem é a semente da degradação”
Olho para o céu e vejo Deus transformado em um pássaro negro de origami e ele devora a carne verde que se forma em volta da minha carcaça e ele vai espalhando no músculo da rocha a minha combinação incerta de átomos.
Volto ao jardim branco em frente ao salão de festas, um acorde ainda ressoa longe no meu ouvido esquerdo. Disfarço minha ânsia de gritar. Ele continuava lá sentado no banco, como se eu estivesse ali o tempo todo mirando seu perfil. Ele me falava sobre a sua misoginia, sobre o quanto repugnava as mulheres, no entanto, elas nem eram capazes de retribuir tal aversão, eram tolas demais para experimentar o ódio. Como ele podia respeitar alguém que não sabia nutrir ódio pela humanidade¿ Como ele podia respeitar alguém que se curvava ao menor tremor¿ Considerava que o buraco no meio de suas pernas era a prova mais evidente e atroz de sua fraqueza. Nunca conseguira encontrar uma mulher que sustentasse a palavra até o fim, sua língua é mais ágil que seu cérebro. Diferente dos homens, que podiam ser calhordas, mas jamais voltavam atrás em seus acordos. Olhe bem para mim, diga se eu não estou certo quanto as minhas colocações¿
Divaguei um pouco enquanto ele pronunciava suas blasfêmias, o que bem poderia ser o que ele chamava de um defeito tipicamente feminino. Ajeitei o cabelo que escapava por baixo do chapéu. Apalpei meu externo, à procura inútil dos meus seios, eles são ridiculamente pequenos e escorregam facilmente...
Não sei se a culpa era dos pelos grossos que cobriam todo o meu dorso ou do meu chapéu coco um tanto masculino. O fato é que ele não parecia reparar que eu era de uma espécie inferior a sua.
Estendi meus dedos em volta do pescoço como se procurasse um pomo de adão ou desapertasse uma gravata borboleta que não existia. Ele reparava em meus movimentos e pigarreava de alegria, afinal, éramos tão parecidos que ele podia se deitar na minha cama e não tocar no meu sexo, porque meu órgão era grande, pesado e imponente como o dele e como dos touros que não foram castrados. Eu não era como as outras que tinham as genitálias escondidas na abstração e nas gretas do corpo, meu clitóris despencava das minhas ancas como um sino enferrujado prestes a cair.
A mulher é cheia de pretensões e na sua cabeça germinam apenas futilidades, diz conhecer o abismo dos homens, enquanto sua alma não passa de um porão cheio de quinquilharias. Como poderia adivinhar a ranhura na face do macho? No entanto, qualquer pedra desse jardim pode dissertar mais sobre a evolução humana do que esse ser rastejante originário da vértebra fraturada de um cão sarnento. Eu não tocaria na vagina de uma mulher nem que me pagassem, todas elas são dentadas.
Consegue sentir a música? Inteira, eu digo, sem distinguir os instrumentos de sopro ou a agonia das cordas¿ Sem imaginar a orquestra, o maestro ou a intriga entre os artistas que fingem cantar em uníssono como se fossem um só corpo, uma só voz, um só anseio¿ Uma mulher não conseguiria, ela ficaria horas analisando sobre a importância das notas utilizadas, o compasso, o ritmo, a harmonia, porque para ela é mais importante a origem do que o produto final. Remói os miomas do seu útero e não é capaz de reconhecer a cria que rasga sua vulva.
Ele continuava discorrendo como um maníaco depressivo. Olhei para seu rosto animalesco, para a curvatura das suas costas, um pouco disfarçada pelo terno escuro, para os seus débeis e longos dedos. Recordei da primeira vez que o vi sem roupa através da fechadura, não conseguia entender como eu podia amar um homem como aquele, um primata, eu me perguntava se ele participara daquela tal evolução que transformou os macacos em homo erectus, a sua coluna vertebral era tão envergada que eu poderia também ver a sua semelhança com um cachorro, nunca com outro homem ou com um ser divino, feito de matéria porosa e perfeita.
Embora ele não percebesse, ele também não passava de um símio, que por um erro conceitual do Ser ganhou o nome de homem.
Toquei de novo o avesso da minha cartografia. A mulher era um corpo oco até que Deus a sodomizou, ejaculou o sêmem da desgraça na sua cloaca. Então, ela deu o primeiro suspiro, descobriu que o mundo era semelhante a um pântano, deixou de ser objeto vazio para se tornar um simulacro e simultaneamente um criadouro de homem.
Quando vi o quanto era ridícula minha forma, pensei em partir. Contudo, ao olhar ao meu redor, eu percebi que estava só, não havia ninguém além de mim no jardim branco, não havia nenhuma festa no saguão, nem danças e o som de jazz que escutava não passava do coaxar dos loucos do outro lado do muro das lamentações e tampouco o jardim branco existia. Um escaravelho rolava um esterco de um lado para o outro imitando os movimentos de translação e rotação. Eu estava suspenso por uma espécie invisível de corda, o balé das marionetas, eu poderia despencar a qualquer momento e experimentei o medo pela primeira vez. Dei uma cutucada embaixo das minhas costelas, não senti nada, minha carne se tornou gelatinosa e transparente. Definitivamente eu estava no não-lugar e meu nome era Deus.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Gênese
|Márcia Barbieri
Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade.
Olhando-a assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata branca e logo seria esmagada. Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra. Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando, imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem. A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo, fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero) se espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos. Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política, entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as portas multiplicam ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem amputações. Era nesse ponto que ela se enganava Eu era a própria amputação, a própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus. Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.
Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade.
Olhando-a assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata branca e logo seria esmagada. Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra. Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando, imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem. A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo, fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero) se espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos. Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política, entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as portas multiplicam ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem amputações. Era nesse ponto que ela se enganava Eu era a própria amputação, a própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus. Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.
quarta-feira, 12 de março de 2014
Encarnación
|Márcia Barbieri
Encarnación gostava de ficar sentada sob o sol olhando os emaranhados da videira. Ela se esparramava e ocupava a tarde podre. Eu as via de longe, já enamorado, já adivinhando os sacrifícios que ela me custaria. Encarnación, Encarnácion, Encarnación, eu sou fascinada pelo seu nome. Ela ria gostoso, quase gargalhava, desses risos de gente velha “minha filha esse nome traz má sorte, não deseje minha sina, se contente com os monstros que tem pra alimentar”. Não ligava, Anna lhe parecia solitário demais, lembrava as migalhas do tempo, os bagos fermentando as vistas. Nos dias de festa, as moças arreganhavam as saias e esmagavam os cachos com os pés. Foi assim que ela experimentou pela primeira vez o gosto da carne, disfarçado no gosto vermelho da uva.
Anna era descendente de uma tribo distante. Um povo que viveu pacificamente na Terra há milhares de anos. Um povo selvagem que na época de pouca fartura devorava ritualisticamente seus cadáveres. Era o que ela sempre me contava enquanto colocava os meus dedos na boca e chupava com força. Eu não duvidava, não tinha como duvidar, eu tinha visto tudo desde a primeira vez que bati os olhos nela.
A clarividência é meu inferno, muita gente reza todos os dias para ter o meu poder. No entanto, jamais desejaria, nem mesmo ao meu pior inimigo, conseguir enxergar todas as frestas que vejo, cada minúsculo buraco, é como uma lagarta de fogo que percorre infinitamente o mesmo tronco e mesmo sabendo da sua sina é impossível trilhar outro caminho. Eu sei as tramas de todas as minhas histórias e isso não me impede de vivenciá-las.
Quando eu conheci Anna já sabia seu destino, já sabia como seu corpo se entranharia no meu – videira vasta sem espaço, vísceras mortas devastando o asfalto. Foi impossível não me apaixonar por Anna, ela exalava um cheiro de desgraça que me corrompia e me aproximava. Seria capaz de lamber seus pés até que ela adormecesse.
A primeira vez que entrei na sua casa, me assustei. Na parede do seu quarto estava pendurado um cavalo que era só sombra por dentro, os olhos vazados, os músculos exaustos disfarçando o oco, como se tivesse sido devorado por um monstro.
Não foi fácil convencê-la do meu amor, ela tinha um olhar atravessado, não via o que estava a um palmo do seu nariz, mas o que estava diametralmente oposto a ele. Olhando para o chão, só conseguia enxergar as teias de aranha do teto. Eu compreendia perfeitamente, eu também não era a pessoa mais normal do mundo. Um dia ela me confessou que era verdade o que eu tinha visto, ela era descendente de um povo chamado Antípodas.
Antes disso, antes da sua confissão, passei várias noites em claro tentando entender o que aquilo poderia significar. Na cabeça me apareceu Antípodas, comecei me impressionando com a origem da palavra, em seguida fui imaginando os mapas, a cartografia traçando opostos, de um jeito ou de outro a matemática me intrigava. Mas não foi a matemática que me levou a descobrir que na Antiguidade seus parentes tinham os pés opostos. Comecei a compreender porque a primeira vez em que vi Anna ela corria entre as videiras plantando bananeira. Na segunda vez que a encontrei ela tinha um espelho colado no peito, andava rindo, catando as uvas estragadas e colocando na boca, de longe escutava os estalos e o cheiro fermentado da sua língua geográfica.
Embora nunca tenha me enxergado por completo, Anna começou a me enamorar. Ela gargalhava quando escutava minha voz, saía da posição de bananeira e me dava uma lambida no rosto. Não posso dizer que isso me impressionava, pois eu já sabia do que Anna era capaz.
Anna cutucava o chão, comia desesperada as raízes, os tubérculos, as pequenas minhocas. Não satisfeita passou a comer torrões de terra. Ah, meu Deus! Quem me dera fosse apenas isso. Depois passou a comer pequenos cadáveres. Chorava me implorando perdão, dizia que não era culpa sua, era coisa herdada. Primeiro eram corpos mortos de coelhos, gatos, cachorros, cavalos. Até o dia em que experimentou a carne de uma moça. Foi além, devorou a carne macia de um bebê.
Fui visitá-la, como fazia todo entardecer desde que nos amamos pela primeira vez. Havia sangue por todo lado. Ela me olhou triste-feliz-arrependida, confessou que não foi capaz de se controlar. Cutucou o umbigo, primeiro no meio, depois em volta, retirou aquela espécie de novelo-ninho-pintura abstrata que se formava dentro dela. Comeu o próprio feto – meu primeiro filho, o primogênito. Me calei. Ela me olhava faminta. Nunca tive medo, eu sabia que ela se contentava em sugar meu sêmen, ele era um pouco da minha carne. No entanto, não queria deixá-la furiosa, desde criança tive tendência a acumular sobras embaixo da unha, isso me irritava. Agora essas sobras me salvavam a pele do sacrifício. Anna não era ruim, só tinha herdado o vício nefasto de seus antepassados.
Ofereço minhas mãos solícito. Ela agarra e rói minhas unhas com desespero. Ela traz o pequeno espelho de moldura laranja no peito. Lá fora, eu posso enxergar os emaranhados da videira e a tarde quente apodrecendo os bagos.
Encarnación gostava de ficar sentada sob o sol olhando os emaranhados da videira. Ela se esparramava e ocupava a tarde podre. Eu as via de longe, já enamorado, já adivinhando os sacrifícios que ela me custaria. Encarnación, Encarnácion, Encarnación, eu sou fascinada pelo seu nome. Ela ria gostoso, quase gargalhava, desses risos de gente velha “minha filha esse nome traz má sorte, não deseje minha sina, se contente com os monstros que tem pra alimentar”. Não ligava, Anna lhe parecia solitário demais, lembrava as migalhas do tempo, os bagos fermentando as vistas. Nos dias de festa, as moças arreganhavam as saias e esmagavam os cachos com os pés. Foi assim que ela experimentou pela primeira vez o gosto da carne, disfarçado no gosto vermelho da uva.
Anna era descendente de uma tribo distante. Um povo que viveu pacificamente na Terra há milhares de anos. Um povo selvagem que na época de pouca fartura devorava ritualisticamente seus cadáveres. Era o que ela sempre me contava enquanto colocava os meus dedos na boca e chupava com força. Eu não duvidava, não tinha como duvidar, eu tinha visto tudo desde a primeira vez que bati os olhos nela.
A clarividência é meu inferno, muita gente reza todos os dias para ter o meu poder. No entanto, jamais desejaria, nem mesmo ao meu pior inimigo, conseguir enxergar todas as frestas que vejo, cada minúsculo buraco, é como uma lagarta de fogo que percorre infinitamente o mesmo tronco e mesmo sabendo da sua sina é impossível trilhar outro caminho. Eu sei as tramas de todas as minhas histórias e isso não me impede de vivenciá-las.
Quando eu conheci Anna já sabia seu destino, já sabia como seu corpo se entranharia no meu – videira vasta sem espaço, vísceras mortas devastando o asfalto. Foi impossível não me apaixonar por Anna, ela exalava um cheiro de desgraça que me corrompia e me aproximava. Seria capaz de lamber seus pés até que ela adormecesse.
A primeira vez que entrei na sua casa, me assustei. Na parede do seu quarto estava pendurado um cavalo que era só sombra por dentro, os olhos vazados, os músculos exaustos disfarçando o oco, como se tivesse sido devorado por um monstro.
Não foi fácil convencê-la do meu amor, ela tinha um olhar atravessado, não via o que estava a um palmo do seu nariz, mas o que estava diametralmente oposto a ele. Olhando para o chão, só conseguia enxergar as teias de aranha do teto. Eu compreendia perfeitamente, eu também não era a pessoa mais normal do mundo. Um dia ela me confessou que era verdade o que eu tinha visto, ela era descendente de um povo chamado Antípodas.
Antes disso, antes da sua confissão, passei várias noites em claro tentando entender o que aquilo poderia significar. Na cabeça me apareceu Antípodas, comecei me impressionando com a origem da palavra, em seguida fui imaginando os mapas, a cartografia traçando opostos, de um jeito ou de outro a matemática me intrigava. Mas não foi a matemática que me levou a descobrir que na Antiguidade seus parentes tinham os pés opostos. Comecei a compreender porque a primeira vez em que vi Anna ela corria entre as videiras plantando bananeira. Na segunda vez que a encontrei ela tinha um espelho colado no peito, andava rindo, catando as uvas estragadas e colocando na boca, de longe escutava os estalos e o cheiro fermentado da sua língua geográfica.
Embora nunca tenha me enxergado por completo, Anna começou a me enamorar. Ela gargalhava quando escutava minha voz, saía da posição de bananeira e me dava uma lambida no rosto. Não posso dizer que isso me impressionava, pois eu já sabia do que Anna era capaz.
Anna cutucava o chão, comia desesperada as raízes, os tubérculos, as pequenas minhocas. Não satisfeita passou a comer torrões de terra. Ah, meu Deus! Quem me dera fosse apenas isso. Depois passou a comer pequenos cadáveres. Chorava me implorando perdão, dizia que não era culpa sua, era coisa herdada. Primeiro eram corpos mortos de coelhos, gatos, cachorros, cavalos. Até o dia em que experimentou a carne de uma moça. Foi além, devorou a carne macia de um bebê.
Fui visitá-la, como fazia todo entardecer desde que nos amamos pela primeira vez. Havia sangue por todo lado. Ela me olhou triste-feliz-arrependida, confessou que não foi capaz de se controlar. Cutucou o umbigo, primeiro no meio, depois em volta, retirou aquela espécie de novelo-ninho-pintura abstrata que se formava dentro dela. Comeu o próprio feto – meu primeiro filho, o primogênito. Me calei. Ela me olhava faminta. Nunca tive medo, eu sabia que ela se contentava em sugar meu sêmen, ele era um pouco da minha carne. No entanto, não queria deixá-la furiosa, desde criança tive tendência a acumular sobras embaixo da unha, isso me irritava. Agora essas sobras me salvavam a pele do sacrifício. Anna não era ruim, só tinha herdado o vício nefasto de seus antepassados.
Ofereço minhas mãos solícito. Ela agarra e rói minhas unhas com desespero. Ela traz o pequeno espelho de moldura laranja no peito. Lá fora, eu posso enxergar os emaranhados da videira e a tarde quente apodrecendo os bagos.
terça-feira, 11 de março de 2014
O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas
|Márcia Barbieri
Eram coisas minúsculas que me faziam não entender o mundo, como dois interruptores para apagar a mesma luz ou o som vindo da Ásia e saindo de uma caixa negra ou morangos mofarem tão rápido ou o gosto das pitangas serem tão parecidos com os das cerejas ou as flores que terminam em um falo ou a teta alimentar o universo ou um espelho esférico invertendo meu pânico ou dois homens se amando com o desespero que nunca conheci ou o amor ser um criadouro de moscas estéreis zunindo zunindo zunindo dó ré mi fá sol lá si cataclismas no meu cérebro larvas obesas ruindo a carne vespas negras no fundo do quintal ou o tédio enferrujado esburacando a manhã ou buchada ser uma iguaria ou crianças comendo testículos de bois ou um escorpião amarelo atravessando o deserto comendo a própria cria ou a diáspora das nossas mãos durante as masturbações ou bonecas infláveis serem tão perfeitas ou o ódio insano dos homens pelos touros ou a beleza dos chifres espiralados dos antílopes negros ou mulheres clonando-parindo como animais ou a disputa selvagem dos homens pela buceta das fêmeas. O pensamento da aranha tecia absurdos sobre minha tíbia rótula patela minha vizinhança meus membros eram uma máquina de encaixes arruinados e eu era um ser obtuso e ter o crânio de um animal era o menor dos meus problemas. Coma logo a aranha antes que suas ideias se tornem matéria coma logo a aranha antes que ela teça a revolução coma logo a aranha antes que cem luas despenquem de suas patas peguem a faca e cortem o verbo ao meio só sobrará a ação. E nossa cópula fosse a união de mil garras, armistício, campo minado, fratura de invertebrados. Não entendi quando percebi que essas coisas pequenas entre as pernas num ângulo diálogo monólogo obscuro não fosse capaz de provocar asco, não entendi quando percebi que existiam idiossincrasias em todas as genitálias, eram todas tão diferentes uma das outras... Olhei de novo para minha e tive vergonha. De que espécie eu era¿ Por que meus buracos e seus contornos eram tão pavorosos¿ Ela era rosada e grande, uma membrana pesada e com bainhas desproporcionais os pelos cresciam em direções variadas perdidos entre uma ordem e outra. As estrias formavam ramificações difíceis de entender. Desviei o olhar não gostava de encará-la por muito tempo. Eu jamais deixaria que ele me visse, não assim, onde eu não era normal, onde a duração do tempo se distendia nos meus pequenos-lábios, pensei na solidão dos ornitorrincos... na feiúra incompreensível dos peixes abissais... nas dobraduras se desdobrando na minha pele fina. De novo os ornitorrincos e os peixes abissais. Eles como eu não eram daqui e eu pensei: é bem estranho ser estrangeira no próprio corpo é bem estranho ser estrangeira no seu país é bem estranho estar sitiada nas escórias da própria carne é bem estranho conhecer apenas as superfícies das coisas inanimadas.
Olhei para seus olhos castanhos e clamei, você que não me conhece não me deixe nunca sair da minha terra não me deixe pisar em outros solos áridos não quero conhecer outros países não quero conhecer outros dementes não quero lamber a falência de outro corpo não quero sentar na rigidez de outro pau não quero enrolar minha língua em outras línguas não quero ter certeza que a felicidade não existe em parte alguma, quero ter essa esperança rasa de que em alguma parte o ar é rarefeito, as palavras são todas francesas e a lama é branca...
Você me olha com um olhar idiotizado, o olhar de todo homem que já passou dos trinta e eu desfaleço. Você podia me fazer parar, agarrar meus pulsos, amarrar minhas mãos nas grades da cama. Você não faz nada, só me olha, um gato paralisando sua presa. Retiro a armadura do eu penduro na parede texturizada grandes rosas secas arabescos que não existem mais a arquitetura falida nostalgia rococó retiro as carrancas retiro as máscaras japonesas enfio o dedo na sujeira do umbigo retiro os caranguejos da minha última morte retiro a penugem do buço agora sou não eu essa cor opaca massa mole matéria quase morta parecendo o abdômen de um inseto ou um incesto de dois irmãos.
Você sussurra no meu ouvido surdo labirinto bigorna eu eu eu eu o eco ensurdecedor de todas as suas ideias olho seu palato em decomposição e você continua agora num grito sufocado eu eu eu e eu coloco a corda frouxa e suicida em torno do seu pescoço vejo a língua enrolada e a baba grossa de um epilético.
Você sopra no meu olho sem cílios eu eu eu e recorda um velho refrão cavalos cavalgam na cartografia do seu dorso–cavalos negros selvagens cavalgam no seu leito– mas isso não é importante–o eu está morto. Sou uma massa amorfa e coalhada e o sol apodrece minhas vértebras e o líquido que me tirou das penúltimas meninges explode na minha garganta há um pêndulo enferrujado entre minha laringe e minha traqueia falar não é tão indolor quanto parece ainda mais nesse lugar suspenso onde cada palavra cai um rifle ainda mais nesse campo de marionetas onde não perdura a consciência íntima do tempo.
Eram coisas minúsculas que me faziam não entender o mundo, como dois interruptores para apagar a mesma luz ou o som vindo da Ásia e saindo de uma caixa negra ou morangos mofarem tão rápido ou o gosto das pitangas serem tão parecidos com os das cerejas ou as flores que terminam em um falo ou a teta alimentar o universo ou um espelho esférico invertendo meu pânico ou dois homens se amando com o desespero que nunca conheci ou o amor ser um criadouro de moscas estéreis zunindo zunindo zunindo dó ré mi fá sol lá si cataclismas no meu cérebro larvas obesas ruindo a carne vespas negras no fundo do quintal ou o tédio enferrujado esburacando a manhã ou buchada ser uma iguaria ou crianças comendo testículos de bois ou um escorpião amarelo atravessando o deserto comendo a própria cria ou a diáspora das nossas mãos durante as masturbações ou bonecas infláveis serem tão perfeitas ou o ódio insano dos homens pelos touros ou a beleza dos chifres espiralados dos antílopes negros ou mulheres clonando-parindo como animais ou a disputa selvagem dos homens pela buceta das fêmeas. O pensamento da aranha tecia absurdos sobre minha tíbia rótula patela minha vizinhança meus membros eram uma máquina de encaixes arruinados e eu era um ser obtuso e ter o crânio de um animal era o menor dos meus problemas. Coma logo a aranha antes que suas ideias se tornem matéria coma logo a aranha antes que ela teça a revolução coma logo a aranha antes que cem luas despenquem de suas patas peguem a faca e cortem o verbo ao meio só sobrará a ação. E nossa cópula fosse a união de mil garras, armistício, campo minado, fratura de invertebrados. Não entendi quando percebi que essas coisas pequenas entre as pernas num ângulo diálogo monólogo obscuro não fosse capaz de provocar asco, não entendi quando percebi que existiam idiossincrasias em todas as genitálias, eram todas tão diferentes uma das outras... Olhei de novo para minha e tive vergonha. De que espécie eu era¿ Por que meus buracos e seus contornos eram tão pavorosos¿ Ela era rosada e grande, uma membrana pesada e com bainhas desproporcionais os pelos cresciam em direções variadas perdidos entre uma ordem e outra. As estrias formavam ramificações difíceis de entender. Desviei o olhar não gostava de encará-la por muito tempo. Eu jamais deixaria que ele me visse, não assim, onde eu não era normal, onde a duração do tempo se distendia nos meus pequenos-lábios, pensei na solidão dos ornitorrincos... na feiúra incompreensível dos peixes abissais... nas dobraduras se desdobrando na minha pele fina. De novo os ornitorrincos e os peixes abissais. Eles como eu não eram daqui e eu pensei: é bem estranho ser estrangeira no próprio corpo é bem estranho ser estrangeira no seu país é bem estranho estar sitiada nas escórias da própria carne é bem estranho conhecer apenas as superfícies das coisas inanimadas.
Olhei para seus olhos castanhos e clamei, você que não me conhece não me deixe nunca sair da minha terra não me deixe pisar em outros solos áridos não quero conhecer outros países não quero conhecer outros dementes não quero lamber a falência de outro corpo não quero sentar na rigidez de outro pau não quero enrolar minha língua em outras línguas não quero ter certeza que a felicidade não existe em parte alguma, quero ter essa esperança rasa de que em alguma parte o ar é rarefeito, as palavras são todas francesas e a lama é branca...
Você me olha com um olhar idiotizado, o olhar de todo homem que já passou dos trinta e eu desfaleço. Você podia me fazer parar, agarrar meus pulsos, amarrar minhas mãos nas grades da cama. Você não faz nada, só me olha, um gato paralisando sua presa. Retiro a armadura do eu penduro na parede texturizada grandes rosas secas arabescos que não existem mais a arquitetura falida nostalgia rococó retiro as carrancas retiro as máscaras japonesas enfio o dedo na sujeira do umbigo retiro os caranguejos da minha última morte retiro a penugem do buço agora sou não eu essa cor opaca massa mole matéria quase morta parecendo o abdômen de um inseto ou um incesto de dois irmãos.
Você sussurra no meu ouvido surdo labirinto bigorna eu eu eu eu o eco ensurdecedor de todas as suas ideias olho seu palato em decomposição e você continua agora num grito sufocado eu eu eu e eu coloco a corda frouxa e suicida em torno do seu pescoço vejo a língua enrolada e a baba grossa de um epilético.
Você sopra no meu olho sem cílios eu eu eu e recorda um velho refrão cavalos cavalgam na cartografia do seu dorso–cavalos negros selvagens cavalgam no seu leito– mas isso não é importante–o eu está morto. Sou uma massa amorfa e coalhada e o sol apodrece minhas vértebras e o líquido que me tirou das penúltimas meninges explode na minha garganta há um pêndulo enferrujado entre minha laringe e minha traqueia falar não é tão indolor quanto parece ainda mais nesse lugar suspenso onde cada palavra cai um rifle ainda mais nesse campo de marionetas onde não perdura a consciência íntima do tempo.
segunda-feira, 10 de março de 2014
Marcia Barbieri - Biografia
Marcia Barbieri é paulista, mestranda em
Filosofia (Unifesp) e formada em Letras (Unesp). Tem textos publicados nas
principais revistas literárias e participou de algumas antologias. Tem dois
livros de contos Anéis de Saturno
(2009) e As mãos mirradas de Deus (2011)
e um romance Mosaico de rancores (2013),
o mesmo será lançado em 2014 na Alemanha pela Clandestino Publikationen.
quarta-feira, 5 de março de 2014
Sem notas de rodapé – Nós, homens, sabemos hoje que somos mortais
| Maria João
Deixo a cabeça no quarto do hospital e o corpo que desce no elevador ouve com desapego conversas banais, repara na tinta lascada dos rodapés, conta as ricas menos perfeitas das passadeiras. Nós, os mortais, quando confrontados com essa mesma natureza, sentimo-nos absortos, como que a pairar no tempo e no espaço. Olha-se a loucura das preocupações diárias como infinitamente ridícula. É-se sem estar. Descolamo-nos de nós próprios e de quem não vive a mesma situação. O quotidiano perde sentido.
A metáfora banal que me ocorre é a de uma ida crítica a um vulgar restaurante chinês. De repente parece-me aberrante a conjugação da delicada loiça de motivos sínicos com os garfos e facas brutos e industrializados. A incongruência entre o fino recorte ondulado das toalhas vermelhas e a protecção plastificada e já baça que as cobre. A contradição entre o orientalismo da designação dos pratos e carta de sobremesas onde habitam vienettas e copos de gelado de baunilha e chocolate. E, sobretudo, ecoa em mim uma profunda estranheza ao constatar a naturalidade com que todos se alimentam destes paradoxos. Sinto-me a única a detectar arestas num planeta que juram ser esférico.
Não arrisco escrever sobre o que não vivi em primeira mão: perder quase totalmente a audição em 72 horas. Observei-o. Vi-o a acontecer à pessoa que me é mais próxima. A comunicação, ao contrário do que se possa pensar, não deixa de existir. Transforma-se. O automatismo de pegar no telemóvel, o acto de falar perde terreno em relação à escrita. Vê-se a falta que o outro sente da gargalhada, do som da água a cair do chuveiro. Apercebo-me até que ponto vai o poder da audição: sem ela não se nota sequer a presença do outro que se aproxima de nós. Desiste-se de socializar. Esgota-se, muito rápido, a paciência de pedir que se repita pela quinta vez o que se acabou de não ouvir. A espontaneidade é protelada, arrastada até se esvair. Cede-se ao isolamento. E são imensas as saudades da música.
Quando o diagnóstico está realizado – surdez súbita –, o tratamento fixado – doses industriais de corticoides – e nada mais resta do que a espera (precisamente um mês, para que se registem melhorias face a uma situação que pode não ser reversível), a passagem de um médico pela cama do hospital torna-se mais rara. Sente-se a impotência. A nossa e a deles. As batas brancas medem as palavras. Refugiam-se na objectividade, no distanciamento de um vocabulário próprio. Aguardam-se resultados de baterias de exames que, quando chegam, apontam para a mais frustrantes das conclusões: causa idiopática, desconhecida. As decisões médicas assemelham-se a uma cabra cega polida e pragmática, que combina a citação dos mais recentes papers da especialidade com uma fórmula de algibeira e vão de escada: “como não prejudica, tenta-se”. Arrisca-se; nada se exclui. Contudo, para quem assiste deste lado, as opções diminuem a passos largos e a incapacidade de prever desfechos e prazos abana a mais forte das crenças no potencial da ciência. Solicitam-se segundas e terceiras opiniões e obtêm-se as mesmas respostas. Para uma universitária como eu, a ausência de soluções é dilacerante. A insuficiência do conhecimento humano e as consequências radicais que daí advêm são revoltantes. A paciência sem resignação parece atributo de santo. Aprende-se, tão-só, a fingir a serenidade. A contrariar o impulso de todos os dias aguardar e indagar alterações.
O quarto fica situado no fundo do corredor. Nunca pensei que um extenso eixo espacial pudesse ser tão útil. Ao longo deste percurso tudo é asséptico. Nem mesmo as reproduções baratas de obras da colecção do Centro de Arte Moderna furam a tonalidade impessoal, artificial, esverdeada, que infecta tudo na sua eficácia racionalista. Pelo meio, uma minúscula sala de espera, o único lugar onde existe uma televisão. Uma divisão deprimente, de intimidade e familiaridade forçadas pela pequenez de metros quadrados, filas de cadeiras pegadas e ordenamento exposto, sem recato. Todo o trajecto permite uma preparação, uma mentalização. Prega-se um sorriso no rosto. Os olhos desumidificam-se a ferros. Ensaiam-se três frases de ânimo e revolve-se a cabeça em busca de quatro assuntos de conversa lida nos lábios. Girafas, zebras, chimpanzés. Tudo é permissível menos o elefante branco na sala.
Oiço os meus próprios passos, como se o chão possuísse cola. Gostaria de ter mais 500 metros pela frente. Mas a porta está já ali. Entro. A linguagem corporal ganha um peso renovado e, por isso mesmo, tem de ser controlada com especial cuidado por quem quer apoiar e ser uma presença positiva. Tudo no meu corpo procura desesperadamente sorrir. Ao lado, acumulam-se «casos», que cortinas separam visualmente e que a surdez aparta por completo. Dá-se o que se tem e o que não se tem até o horário de visita se prolongar para além do aceitável. De novo o elevador. Uma parte de mim sai, a outra fica.
O mundo para durante duas semanas. No entanto, por via de um comportamento por certo explicável pela psiquiatria, retorno, lentamente, a níveis de funcionalidade que me levam a regressar ao trabalho, a voltar a encher a despensa de compras e a ir mesmo até a um jantar de aniversário. Não me sinto completa na realização de qualquer uma destas tarefas. Mas exaurida e consumida, anseio, não sem culpa, por alguma, ainda que falsa, normalidade.
Esta é uma crónica sem um final feliz, numa época em que se deseja consumir literatura de aconchego. Mais grave do que isso, ao centrar-se numa experiência pessoal tornou menos prováveis as pontes racionais e emocionais com o leitor. Julgo, porém, que de um episódio particular e raro como este se podem extrair leituras de aplicação global. Assim acontece porque todos temos, independentemente das variáveis, algo em comum. Vivemos, a larga maioria dos dias, descentrados do que realmente (nos) importa e alheados da nossa fragilidade. Tratar-se-á, possivelmente, de um mecanismo de sobrevivência. Uma consciência integral da precariedade humana acarretaria um peso insuportável que redundaria na celebração presentificadora do quotidiano ou numa existência teleológica penitente. O caminho estará algures no meio, entre a alienação saudável que nos permite elaborar planos e o suficiente relativismo que nos concede a sabedoria de conferir o peso certo a cada aparente drama da nossa vida.
Deixo a cabeça no quarto do hospital e o corpo que desce no elevador ouve com desapego conversas banais, repara na tinta lascada dos rodapés, conta as ricas menos perfeitas das passadeiras. Nós, os mortais, quando confrontados com essa mesma natureza, sentimo-nos absortos, como que a pairar no tempo e no espaço. Olha-se a loucura das preocupações diárias como infinitamente ridícula. É-se sem estar. Descolamo-nos de nós próprios e de quem não vive a mesma situação. O quotidiano perde sentido.
A metáfora banal que me ocorre é a de uma ida crítica a um vulgar restaurante chinês. De repente parece-me aberrante a conjugação da delicada loiça de motivos sínicos com os garfos e facas brutos e industrializados. A incongruência entre o fino recorte ondulado das toalhas vermelhas e a protecção plastificada e já baça que as cobre. A contradição entre o orientalismo da designação dos pratos e carta de sobremesas onde habitam vienettas e copos de gelado de baunilha e chocolate. E, sobretudo, ecoa em mim uma profunda estranheza ao constatar a naturalidade com que todos se alimentam destes paradoxos. Sinto-me a única a detectar arestas num planeta que juram ser esférico.
Não arrisco escrever sobre o que não vivi em primeira mão: perder quase totalmente a audição em 72 horas. Observei-o. Vi-o a acontecer à pessoa que me é mais próxima. A comunicação, ao contrário do que se possa pensar, não deixa de existir. Transforma-se. O automatismo de pegar no telemóvel, o acto de falar perde terreno em relação à escrita. Vê-se a falta que o outro sente da gargalhada, do som da água a cair do chuveiro. Apercebo-me até que ponto vai o poder da audição: sem ela não se nota sequer a presença do outro que se aproxima de nós. Desiste-se de socializar. Esgota-se, muito rápido, a paciência de pedir que se repita pela quinta vez o que se acabou de não ouvir. A espontaneidade é protelada, arrastada até se esvair. Cede-se ao isolamento. E são imensas as saudades da música.
Quando o diagnóstico está realizado – surdez súbita –, o tratamento fixado – doses industriais de corticoides – e nada mais resta do que a espera (precisamente um mês, para que se registem melhorias face a uma situação que pode não ser reversível), a passagem de um médico pela cama do hospital torna-se mais rara. Sente-se a impotência. A nossa e a deles. As batas brancas medem as palavras. Refugiam-se na objectividade, no distanciamento de um vocabulário próprio. Aguardam-se resultados de baterias de exames que, quando chegam, apontam para a mais frustrantes das conclusões: causa idiopática, desconhecida. As decisões médicas assemelham-se a uma cabra cega polida e pragmática, que combina a citação dos mais recentes papers da especialidade com uma fórmula de algibeira e vão de escada: “como não prejudica, tenta-se”. Arrisca-se; nada se exclui. Contudo, para quem assiste deste lado, as opções diminuem a passos largos e a incapacidade de prever desfechos e prazos abana a mais forte das crenças no potencial da ciência. Solicitam-se segundas e terceiras opiniões e obtêm-se as mesmas respostas. Para uma universitária como eu, a ausência de soluções é dilacerante. A insuficiência do conhecimento humano e as consequências radicais que daí advêm são revoltantes. A paciência sem resignação parece atributo de santo. Aprende-se, tão-só, a fingir a serenidade. A contrariar o impulso de todos os dias aguardar e indagar alterações.
O quarto fica situado no fundo do corredor. Nunca pensei que um extenso eixo espacial pudesse ser tão útil. Ao longo deste percurso tudo é asséptico. Nem mesmo as reproduções baratas de obras da colecção do Centro de Arte Moderna furam a tonalidade impessoal, artificial, esverdeada, que infecta tudo na sua eficácia racionalista. Pelo meio, uma minúscula sala de espera, o único lugar onde existe uma televisão. Uma divisão deprimente, de intimidade e familiaridade forçadas pela pequenez de metros quadrados, filas de cadeiras pegadas e ordenamento exposto, sem recato. Todo o trajecto permite uma preparação, uma mentalização. Prega-se um sorriso no rosto. Os olhos desumidificam-se a ferros. Ensaiam-se três frases de ânimo e revolve-se a cabeça em busca de quatro assuntos de conversa lida nos lábios. Girafas, zebras, chimpanzés. Tudo é permissível menos o elefante branco na sala.
Oiço os meus próprios passos, como se o chão possuísse cola. Gostaria de ter mais 500 metros pela frente. Mas a porta está já ali. Entro. A linguagem corporal ganha um peso renovado e, por isso mesmo, tem de ser controlada com especial cuidado por quem quer apoiar e ser uma presença positiva. Tudo no meu corpo procura desesperadamente sorrir. Ao lado, acumulam-se «casos», que cortinas separam visualmente e que a surdez aparta por completo. Dá-se o que se tem e o que não se tem até o horário de visita se prolongar para além do aceitável. De novo o elevador. Uma parte de mim sai, a outra fica.
O mundo para durante duas semanas. No entanto, por via de um comportamento por certo explicável pela psiquiatria, retorno, lentamente, a níveis de funcionalidade que me levam a regressar ao trabalho, a voltar a encher a despensa de compras e a ir mesmo até a um jantar de aniversário. Não me sinto completa na realização de qualquer uma destas tarefas. Mas exaurida e consumida, anseio, não sem culpa, por alguma, ainda que falsa, normalidade.
Esta é uma crónica sem um final feliz, numa época em que se deseja consumir literatura de aconchego. Mais grave do que isso, ao centrar-se numa experiência pessoal tornou menos prováveis as pontes racionais e emocionais com o leitor. Julgo, porém, que de um episódio particular e raro como este se podem extrair leituras de aplicação global. Assim acontece porque todos temos, independentemente das variáveis, algo em comum. Vivemos, a larga maioria dos dias, descentrados do que realmente (nos) importa e alheados da nossa fragilidade. Tratar-se-á, possivelmente, de um mecanismo de sobrevivência. Uma consciência integral da precariedade humana acarretaria um peso insuportável que redundaria na celebração presentificadora do quotidiano ou numa existência teleológica penitente. O caminho estará algures no meio, entre a alienação saudável que nos permite elaborar planos e o suficiente relativismo que nos concede a sabedoria de conferir o peso certo a cada aparente drama da nossa vida.
terça-feira, 4 de março de 2014
Editorial: O silêncio e o jogo
|Luís Filipe Cristóvão
No meio de toda esta confusão, no mundo, no país, na rua, ocorreu-me que o editorial desta mês poderia ser, simplesmente, uma imagem. Hesitava entre a letra da música de Los Hermanos, o apropriado “Todo o Carnaval tem seu fim”, ou a adaptação de uma frase que anda a anos perdida na minha cabeça, transformada agora em “o silêncio deveria ser, definitivamente, a tua filosofia”.
Ocorre que há uns meses visitei o Convento do Varatojo e a sua Mata Sagrada, pelo que acorri à pasta onde guardo uma série de fotografias dessa ocasião, em busca de alguma que pudesse transportar, como maior eficácia, esse elogio ao silêncio. No entanto, a que me saltou à vista foi esta, a de um improvisado campo de futebol onde, imagino eu, alguns dos frades franciscanos se arriscam, de tempos a tempos, a um disputado dérbi.
Encontrei-me assim, quando em busca do silêncio, perante a clara evidência de que não há como parar o jogo. A cada ocasião, a necessidade de fazer o movimento que dará origem a outro e a outro, logo de seguida. Não me ocorre melhor imagem para entrar, agora que o Carnaval termina, no mês de março.
No meio de toda esta confusão, no mundo, no país, na rua, ocorreu-me que o editorial desta mês poderia ser, simplesmente, uma imagem. Hesitava entre a letra da música de Los Hermanos, o apropriado “Todo o Carnaval tem seu fim”, ou a adaptação de uma frase que anda a anos perdida na minha cabeça, transformada agora em “o silêncio deveria ser, definitivamente, a tua filosofia”.
Ocorre que há uns meses visitei o Convento do Varatojo e a sua Mata Sagrada, pelo que acorri à pasta onde guardo uma série de fotografias dessa ocasião, em busca de alguma que pudesse transportar, como maior eficácia, esse elogio ao silêncio. No entanto, a que me saltou à vista foi esta, a de um improvisado campo de futebol onde, imagino eu, alguns dos frades franciscanos se arriscam, de tempos a tempos, a um disputado dérbi.
Encontrei-me assim, quando em busca do silêncio, perante a clara evidência de que não há como parar o jogo. A cada ocasião, a necessidade de fazer o movimento que dará origem a outro e a outro, logo de seguida. Não me ocorre melhor imagem para entrar, agora que o Carnaval termina, no mês de março.
segunda-feira, 3 de março de 2014
Mesa do Canto – O fadinho da saudade
|Alexandra Malheiro
Quando me propus escrever estas crónicas dei-lhes o título genérico de “Mesa do Canto” por ser no café que as escrevo. É bem certo que a mesa que nele ocupo não é sempre a do canto mas dou-lhe preferência quando está desocupada. Dali, de uma esquina privilegiada, junto à montra, tenho o melhor sossego e a melhor visão para o que vai dentro e fora do café.
Agrada-me a ideia do café como pequena montra do mundo, creio que entre quatro paredes não seria capaz de alinhavar mais do que algumas ideias dispersas, prefiro ficar por ali a reter pedaços de mundo que, acredito, ficam depois aprisionados dentro de mim.
Calhou de hoje me deslocar a um café onde parei há muitos anos, lugar de outros afectos, outras vidas. O regresso ao café de antanho é como o regresso a uma vida anterior. O espaço não sofreu grande alteração e nele permanecem alguns personagens que reconheço iguais, apenas com uns quilos a mais, ou a menos, menos cabelo ou de outra cor, uns mais brancos outros mais loiros e outros mesmo exactissimamente iguais porque o tempo parece deixá-los incólumes. O empregado ainda me reconhece as feições e os vícios, quase intactos. Porém no café há um vazio, como uma mesa persistentemente desocupada onde jazem todos os que partiram, aqueles que sei que não voltam, pela distância, ela morte ou pelo desafecto e todos quantos, não sabendo eu deles, duvido que tornem a um lugar do passado. É agora que o frio me apanha.
Tenho tanto medo da saudade como quem crê em fantasmas e os receia. Por isso evito estes perdidos lugares de afectos antigos antes mesmo de, por artes do diabo, me transformar eu mesma num fadinho pleno de miséria e saudade portuguesinha.
Quando me propus escrever estas crónicas dei-lhes o título genérico de “Mesa do Canto” por ser no café que as escrevo. É bem certo que a mesa que nele ocupo não é sempre a do canto mas dou-lhe preferência quando está desocupada. Dali, de uma esquina privilegiada, junto à montra, tenho o melhor sossego e a melhor visão para o que vai dentro e fora do café.
Agrada-me a ideia do café como pequena montra do mundo, creio que entre quatro paredes não seria capaz de alinhavar mais do que algumas ideias dispersas, prefiro ficar por ali a reter pedaços de mundo que, acredito, ficam depois aprisionados dentro de mim.
Calhou de hoje me deslocar a um café onde parei há muitos anos, lugar de outros afectos, outras vidas. O regresso ao café de antanho é como o regresso a uma vida anterior. O espaço não sofreu grande alteração e nele permanecem alguns personagens que reconheço iguais, apenas com uns quilos a mais, ou a menos, menos cabelo ou de outra cor, uns mais brancos outros mais loiros e outros mesmo exactissimamente iguais porque o tempo parece deixá-los incólumes. O empregado ainda me reconhece as feições e os vícios, quase intactos. Porém no café há um vazio, como uma mesa persistentemente desocupada onde jazem todos os que partiram, aqueles que sei que não voltam, pela distância, ela morte ou pelo desafecto e todos quantos, não sabendo eu deles, duvido que tornem a um lugar do passado. É agora que o frio me apanha.
Tenho tanto medo da saudade como quem crê em fantasmas e os receia. Por isso evito estes perdidos lugares de afectos antigos antes mesmo de, por artes do diabo, me transformar eu mesma num fadinho pleno de miséria e saudade portuguesinha.
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