|Cláudia Assis
O sol já tinha dado o ar da sua graça há
demasiado tempo, presságio de um belo amanhecer primaveril para além daquelas
paredes. O Agente Lisboeta sabia disso por que, ainda deitado na sua cama,
apreciava os raios de sol a invadir os aposentos pelas frestas da janela do seu
quarto. Teria passado aquela noite em claro, mesmo depois da exaustão de tantas
vezes entregar-se à sua Moema. As dores no joelho o fazia lembrar que o
ferimento causado na última incursão ainda se fazia presente.
Acometido pela insônia, viu-se obrigado a
passar as horas velando o sono da sua adorada princesa tupiniquim, que dormia
profundamente ao seu lado. Tê-la ali tão perto, protegida das agruras do mundo
e ao alcance dos seus braços, enchia-lhe o seu peito de satisfação. Sorria
enquanto fazia festas nos negros cabelos de Moema, que ao sentir o toque do seu
amado, moveu-se lentamente, embora permanecendo no mundo dos sonhos. Mas ter
novamente a “menina que cheira à flor de pitanga” consigo o fez relembrar dos
motivos pelos quais teria recentemente realizado a sua travessia transatlântica
– Moema teria fugido por se sentir forçada a escolher entre o amor que nutria
pelo lisboeta e compromisso que com a sua gente.
Embora já lá fossem alguns dias desde o
reencontro daqueles dois, a verdade é que ainda não tinham encarado de frente
aquela dura realidade. “Qual será a sua decisão, afinal? Estará minha adora
Moema disposta a renegar o seu povo só para viver comigo, seja lá onde isso
for? Ou este reencontro nada mais é que um simples adiamento de uma inevitável
despedida?”, refletiu o Agente. E, neste preciso instante, teve medo! Nem
mesmo as mais duras missões, ossos do ofício de espião, o teria feito
experimentar tal pavor.
Apreciar o despertar de Moema sempre
proporcionou ao lisboeta uma alegria peculiar. Era quase sempre a mesma
sucessão de acontecimentos. Mas ainda assim, ele conseguia ver um verso novo na
poesia que era corpo dela: ela acordava, esfregava os olhos como fazem as
crianças ainda sonolentas, espreguiçava-se toda e depois aninhava-se outra vez
debaixo das cobertas. Só depois o encarava com um sorriso no olhar, o qual
dispensava ao Agente Lisboeta qualquer palavra – o “bom dia, meu bem!” estava
ali, implícito. Só que, naquela manhã, havia alguma dureza no ar. Moema
percebera imediatamente que o seu “menino” tinha o coração inquieto e a cabeça
repleta de dúvidas. Havia decisões a tomar, escolhas por fazer. Ela era capaz de
lê-lo como ninguém mais neste mundo – das coisas que mais o assustava era a
capacidade que Moema tinha de o ler até nas entrelinhas.
Moema, então, afagou a barba farta que o seu
adorado Agente decidira cultivar ultimamente – barba esta que Moema não sabia,
mas era parte do disfarce para a sua próxima missão – e, enquanto o acariciava,
disse:
– “Estava sonhando contigo. Com a gente,
para ser mais exata. Estávamos lá na minha cachoeira. AQUELA onde te amei pela
primeira das tantas vezes que ainda hei de te amar. Você se lembra?”. E sorriu docemente.
Ainda que embevecido com aquela deliciosa
visão, o Agente Lisboeta tomado por uma inquietante agonia, disparou à
"queima-roupa", certeiro como uma flecha, a dúvida que lhe roubara o
sono naquela noite:
– “Moema, minha adorada Moema, estar nos
teus braços outra vez é a mais sublime forma de passar por essa vida, mas...”, titubeou. Aquela pausa dramática no discurso do lisboeta poderia
ser facilmente lida na aflição imposta ao olhar de Moema.
– “Mas o quê?!”, interrompeu a princesa vinda dos trópicos, que num rápido
movimento pôs-se sentada diante do Agente, deixando seu corpo nu à mostra,
desconcentrado-o solenemente.
– “Mas... Preciso saber se vens para
ficar nos meus braços, no meu mundo,em definitivo. Tenho medo que isto tudo, de
tão bom que é, não dure o quanto gostaríamos. Tenho esperança que sim. Mas é
inegável o medo que me consome”, confidenciou o
“menino de olhar doce”.
Mesmo triste por saber que aquela dúvida
traidora dormitava no olhar do seu amado, Moema o abraçou. Apertado. Amava-o
perdidamente. E, então, sussurrou-lhe ao pé do ouvido:
– “Toda esperança é lícita, meu bem!”, calando-o como usualmente fazia: com o seu melhor beijo.