sábado, 2 de fevereiro de 2013

Gonçalo M. Tavares


|Manuel A. Domingos

De todos os novos autores de Língua Portuguesa, Gonçalo M. Tavares (1970) é aquele que melhor consolidou o seu lugar no panorama literário português. Em Portugal recebeu vários prémios, incluindo: Prémio LER/Millennium BCP (2004), Prémio José Saramago (2005) e Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores (2007). A nível internacional recebeu: o Prémio Portugal Telecom (Brasil, 2007), Prémio Internazionale Trieste (Itália, 2008), Prémio Belgrado Poesia (Sérvia, 2009). E foi ainda nomeado para o Prix Cévennes (França, 2009), que diz respeito ao prémio para o melhor romance europeu. Recebeu, ainda: Prémio Melhor narrativa Ficcional da Sociedade Portuguesa de Autores (2010), Prémio Especial de Imprensa Melhor Livro Ler/Booktailors (2010), Grande Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores (2011), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril, Melhor Livro Ficção (2011), Premiado no Portugal Telecom (Brasil, 2011), Prémio Fundação Inês de Castro. Para além de inúmeros livros publicados em dez anos (30 entre 2001 e 2011), que vão do romance e do conto à poesia, do ensaio ao teatro, Gonçalo M. Tavares cedo estabeleceu o seu percurso, isto é, o seu “programa” de escrita. Prova disso é a divisão feita pelo autor da sua obra publicada até à data: O Reino. Foquemos a nossa atenção neste último.

   O Reino é uma tetralogia composta por Um Homem: Klaus Klump (2003), A Máquina de Joseph Walser (2004), Jerusalém (2005) e Aprender a rezar na Era da Técnica (2007). É, sem dúvida alguma, a mais importante série de romances publicados nesta última década em Portugal. O seu tema central é o Mal e todos estão, de uma ou outra maneira, interligados entre si. Após a leitura de qualquer um destes quatro romances ficamos com a sensação de que a única coisa que nos resta é a ideia ou o problema que é levantado em cada livro. É por isso que podemos afirmar que Gonçalo M. Tavares é um escritor de ideias/problemas. Os seus romances são romances de ideias/problemas, se atendermos que essas “ideias/problemas” nos enfrentam, na medida em que são nítidos, reais, pois facilmente os podemos deslocar da obra. Por exemplo, Em Aprender a rezar na Era da Técnica o conflito existente é evidente: como viver num mundo em que a Moral, e as decisões morais, são ultrapassadas pela Técnica, e pelas decisões técnicas? Como “rezar” num mundo que viu o seu centro unificador alterado? A Técnica tomou conta dos dias que são nossos, tomou conta da nossa maneira de pensar e agir. É mais imoral mentir ou não conhecer o novo Windows Vista? O Divino deixou de fazer parte das nossas vidas. É mais importante que a água continue a correr nas torneiras: «Se os crentes, ou os próprios padres, fizessem greve isso seria bem menos significativo e visível numa cidade do que uma greve de canalizadores ou electricistas. A boa circulação da água ou da electricidade torna-se, para o dia-a-dia, bem mais indispensável do que a boa circulação do sopro divino.» (p. 217).

E os personagens? Que personagens encontramos neste Reino? Tal como em Dostoievski, os personagens de Gonçalo M. Tavares são apenas representantes das ideias/problemas que o romancista coloca em diálogo entre si. Gonçalo M. Tavares procura realizar a acção do romance através de personagens que podemos designar de “anormais”, pois só dessa maneira o autor consegue tornar verosímil a exposição da sua problemática. Um bom exemplo é Lenz Buchmann, personagem central do citado Aprender a Rezar na Era da Técnica. Lenz Buchmann é um inadaptado dos dias em que vive, dias pobres e fracos. Acredita na Força. É um homem da Era da Técnica, desempenha uma profissão técnica (é cirurgião) e pouca importância dá à espiritualidade, à moral, que vê como elementos perturbadores de uma Sociedade que se quer forte. Mas é também um homem dominado pela figura do Pai (que nunca chega a “matar”), principal responsável pela Força de Lenz: «- Nesta casa o medo é ilegal» (p. 91). Um pai que se suicida aos 58 anos, no momento em que começa a sentir o seu declínio físico. O corpo e a ideia de corpo (um corpo que é limitado, que a determinada altura deixa de cumprir a sua função) estão muito presentes nesta tetralogia: Joseph Walser, em A Máquina de Joseph Walser, vê a sua vida completamente alterada devido a um acidente de trabalho – é-lhe amputada uma mão; Mylia, em Jerusalém, é internada num hospício devido a uma doença mental.

Os romances de Gonçalo M. Tavares lançam um olhar sombrio sobre a natureza humana, sobre a sua condição. E é essa uma das mais-valias da escrita de Gonçalo M. Tavares: confrontar-nos com os fantasmas que constantemente recusamos aceitar.


Excerto

Medir o Mal

2

Lenz segura na mão direita a radiografia do crânio o seu irmão Albert B. e mostra-a ao homem que, como sempre, quase não diz uma palavra, acena com a cabeça, tenta escutar, mostrar-se atento.
− Veja aqui – e Lenz aponta para as duas manchas na radiografia.
Estão os dois sentados à volta da mesa da cozinha. O vagabundo apenas comeu um pão. Há comida na mesa, mas Lenz ainda não permitiu que ele se servisse. O vagabundo tenta esquecer o apetite que tem e concentrar-se na conversa de Lenz, pois sabe que, se não se mostrar interessado, é pior; o Dr. Lenz atrasaria ainda mais o ritual e poderia irritar-se, mandá-lo embora de casa sem comer e sem dinheiro. O fundamental era o rosto e, acima de tudo, a expressão dos olhos: o vagabundo sabe que são os olhos que podem deitar tudo a perder. Esforça-se por isso por concentrar uma certa energia, a energia da atenção, em redor dos olhos. E esse sentido de atenção dirigido para um acontecimento era uma massa exacta e indivisível: não era possível estar, ao mesmo tempo, atento ao cheiro da comida e à radiografia do crânio que o Dr. Lenz lhe mostrava. O esforço do vagabundo era impressionante. Conhecia já as regras do jogo e nele havia uma única vontade: a de receber dinheiro e comer; nada mais. E para obter isso sabia o que tinha de fazer. Naquele momento era aquilo: mostrar-se interessado na radiografia de uma cabeça.
− Veja – insiste Lenz – duas manchas, enormes. – Lenz aponta para as manchas. – Vou buscar uma régua, vou medi-las.

Gonçalo M. Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Lisboa: Caminho, 1ª edição, 2007, pp. 53-54.