|Manuel A. Domingos
De todos os novos autores de
Língua Portuguesa, Gonçalo M. Tavares (1970) é aquele que melhor consolidou o
seu lugar no panorama literário português. Em Portugal recebeu vários prémios,
incluindo: Prémio LER/Millennium BCP
(2004), Prémio José Saramago (2005) e
Grande Prémio de Conto da Associação
Portuguesa de Escritores (2007). A nível internacional recebeu: o Prémio Portugal Telecom (Brasil, 2007), Prémio Internazionale Trieste (Itália,
2008), Prémio Belgrado Poesia
(Sérvia, 2009). E foi ainda nomeado para o Prix
Cévennes (França, 2009), que diz respeito ao prémio para o melhor romance
europeu. Recebeu, ainda: Prémio Melhor
narrativa Ficcional da Sociedade Portuguesa de Autores (2010), Prémio Especial de Imprensa Melhor Livro
Ler/Booktailors (2010), Grande Prémio
Romance e Novela da Associação Portuguesa de Autores (2011), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril,
Melhor Livro Ficção (2011), Premiado
no Portugal Telecom (Brasil, 2011), Prémio
Fundação Inês de Castro. Para além de inúmeros livros publicados em dez
anos (30 entre 2001 e 2011), que vão do romance e do conto à poesia, do ensaio
ao teatro, Gonçalo M. Tavares cedo estabeleceu o seu percurso, isto é, o seu
“programa” de escrita. Prova disso é a divisão feita pelo autor da sua obra
publicada até à data: O Reino.
Foquemos a nossa atenção neste último.
E os personagens? Que personagens
encontramos neste Reino? Tal como em
Dostoievski, os personagens de Gonçalo M. Tavares são apenas representantes das
ideias/problemas que o romancista coloca em diálogo entre si. Gonçalo M.
Tavares procura realizar a acção do romance através de personagens que podemos
designar de “anormais”, pois só dessa
maneira o autor consegue tornar verosímil a exposição da sua problemática. Um
bom exemplo é Lenz Buchmann, personagem central do citado Aprender a Rezar na Era da Técnica. Lenz Buchmann é um inadaptado
dos dias em que vive, dias pobres e fracos. Acredita na Força. É um homem da
Era da Técnica, desempenha uma profissão técnica (é cirurgião) e pouca
importância dá à espiritualidade, à moral, que vê como elementos perturbadores
de uma Sociedade que se quer forte. Mas é também um homem dominado pela figura
do Pai (que nunca chega a “matar”), principal responsável pela Força de Lenz:
«- Nesta casa o medo é ilegal» (p. 91). Um pai que se suicida aos 58 anos, no
momento em que começa a sentir o seu declínio físico. O corpo e a ideia de
corpo (um corpo que é limitado, que a determinada altura deixa de cumprir a sua
função) estão muito presentes nesta tetralogia: Joseph Walser, em A Máquina de Joseph Walser, vê a sua
vida completamente alterada devido a um acidente de trabalho – é-lhe amputada
uma mão; Mylia, em Jerusalém, é
internada num hospício devido a uma doença mental.
Os romances de Gonçalo M. Tavares
lançam um olhar sombrio sobre a natureza humana, sobre a sua condição. E é essa
uma das mais-valias da escrita de Gonçalo M. Tavares: confrontar-nos com os
fantasmas que constantemente recusamos aceitar.
Excerto
Medir
o Mal
2
Lenz
segura na mão direita a radiografia do crânio o seu irmão Albert B. e mostra-a
ao homem que, como sempre, quase não diz uma palavra, acena com a cabeça, tenta
escutar, mostrar-se atento.
−
Veja aqui – e Lenz aponta para as duas manchas na radiografia.
Estão
os dois sentados à volta da mesa da cozinha. O vagabundo apenas comeu um pão.
Há comida na mesa, mas Lenz ainda não permitiu que ele se servisse. O vagabundo
tenta esquecer o apetite que tem e concentrar-se na conversa de Lenz, pois sabe
que, se não se mostrar interessado, é pior; o Dr. Lenz atrasaria ainda mais o
ritual e poderia irritar-se, mandá-lo embora de casa sem comer e sem dinheiro.
O fundamental era o rosto e, acima de tudo, a expressão dos olhos: o vagabundo
sabe que são os olhos que podem deitar tudo a perder. Esforça-se por isso por
concentrar uma certa energia, a energia da atenção, em redor dos olhos. E esse
sentido de atenção dirigido para um acontecimento era uma massa exacta e
indivisível: não era possível estar, ao mesmo tempo, atento ao cheiro da comida
e à radiografia do crânio que o Dr. Lenz lhe mostrava. O esforço do vagabundo
era impressionante. Conhecia já as regras do jogo e nele havia uma única
vontade: a de receber dinheiro e comer; nada mais. E para obter isso sabia o
que tinha de fazer. Naquele momento era aquilo: mostrar-se interessado na
radiografia de uma cabeça.
−
Veja – insiste Lenz – duas manchas, enormes. – Lenz aponta para as manchas. –
Vou buscar uma régua, vou medi-las.
Gonçalo M. Tavares, Aprender a Rezar na Era da Técnica, Lisboa: Caminho, 1ª edição,
2007, pp. 53-54.