domingo, 3 de fevereiro de 2013

Reflexões sobre a poesia


|João Camilo


I

Que pretende a poesia? Criar personagens interessantes, em particular e para começar o do próprio poeta, um indivíduo que “escreve poemas”, que através da escrita reivindica um lugar na galeria de “figuras” da nossa sociedade? Assim se sai do anonimato, é certo. Mas talvez se escreva poesia para reconstruir a experiência? Isto é: para fixar o que já se perdeu ou nunca chegou a ser; para pensar, divagar, contestar; para interrogar, protestar, explicar; para investigar, construir, destruir; para corrigir, reinventar - e assim por diante, a porta das hipóteses fica aberta.

Agindo assim contribui-se para a existência de um universo humano com sentido, o sentido que séculos de cultura e civilização foi elaborando. Ao escrever um poema situamo-nos e situamos os outros nesse universo cheio de sentido. Para o aperfeiçoar negando-o ou criticando-o, para nos interrogarmos sobre as razões da sua existência e sobre a sua coerência, para o confirmar e provar que o seu sentido tem sentido, um sentido que se pode discutir, sobre o qual se pode discorrer.

O poeta faz tudo isso artisticamente. Poeticamente. O que é que isso quer dizer, porém, “artisticamente”, “poeticamente”? O que é o “poético”, além de ser tudo aquilo que já se disse atrás que a poesia, como actividade de um indivíduo que decide sair do silêncio e do anonimato para exibir a sua capacidade de organização da experiência e para fazer ouvir a sua voz, é? O que é que torna um texto poético, o que é que torna “poesia” aquilo que é dito num poema? Porque tudo aquilo que atrás se disse que caracteriza a actividade dos poetas também caracteriza outras actividades que nada têm a ver com a poesia. Ou haverá poesia aquém e além da actividade poética deliberada, a artística, a literária? Por ora pelo menos não vou citar Heidegger, a decadência ou a ausência do ser que, citando Holderlin e Rilke, ele identifica com o desaparecimento dos deuses, ficará para outra ocasião.

Um soneto, uma canção, uma redondilha ou uma elegia de Camões são poéticos pela forma, independentemente do que digam e que torna poéticos esses textos? À primeira vista parece que sim. Mas bastará, para se ser poeta e ter escrito um poema, recorrer a um modelo, a uma forma particular de organizar a linguagem identificável exteriormente como “poética” ? É duvidoso. Se a canção, a elegia, o soneto de Camões são poesia pode ser por outras razões, menos evidentes, mais difíceis de explicar. Pressente-se desde o início que tem de ser por outras razões. O que faz um soneto, uma redondilha, uma canção, uma elegia expressões ou actos de fala susceptíveis de ser reconhecidos e eventualmente usufruídos e admirados como poesia (ou como qualquer outra coisa a que não damos nome e que merece respeito e atenção especial, mas creio que seria o início de outra investigação) é, tudo parece indicá-lo, difícil de explicar.

Deixemos de lado por ora as questões puramente técnicas. A minha curiosidade é de outra natureza, embora não exclua a consideração das razões técnicas - competência linguística e conhecimento da tradição literária - pelas quais um soneto, por exemplo, é um bom soneto. As razões formais contam, é inegável: os sonetos de Cesário Verde são diferentes dos sonetos de Camões; a técnica de construção, a sintaxe, o vocabulário dos dois poetas não são os mesmos. Cesário, por exemplo, termina sem hesitar uma frase no meio de um verso, escreve o ponto final e começa outra frase, modificando o ritmo dos versos e do poema a que estávamos habituados. Camões e os poetas Galego-Portugueses antes dele também praticaram com mestria o “encavalgamento”, um verso continuava-se narrativamente no seguinte sem problemas. Mas Cesário introduziu modificações nessa maneira de não se deixar limitar na expressão poética de uma ideia pela extensão convencional de um verso. Também se podia tratar neste capítulo o facto de haver poesia que privilegia de maneira excepcional o uso da palavra e poesia que precisa da frase para se afirmar como poesia (o que não quer dizer que despreze, neste último caso, a importância da palavra em si mesma, independentemente da sua inserção numa frase). Tudo isto são questões de ordem técnica ou de ordem estilística.

O que é que torna “poéticas” as palavras e as frases do poema, aquilo que aspira a ser poesia e se apresenta como tal? O que é que faz "poético", merecedor da atenção dos historiadores da literatura e de quem quer se outorga a autoridade de considerar um texto como sendo "poesia", aquilo que se escreve, que se diz ? Responder a esta questão é começar a elucidar o que é que determinada sociedade ou determinada cultura (ou, dentro delas, determinado grupo influente, para não dizermos determinada classe social) entende por “poesia”.

II

Sabe-se a importância que Heidegger atribui à poesia. A poesia, para Heidegger, é a palavra que diz a verdade. O poeta, para ser grande, tem de ser alguém que pensa. A qualidade do pensar do poeta tem de ser igual à qualidade do pensar do grande pensador. Ambos são poetas, afinal. O pensar do grande pensador tem de ter a pureza, a densidade e a solidez da poesia e o dizer do grande pensador, consequentemente, é também poesia. A linguagem autêntica, que não está gasta pelo uso, de que não se abusou, conserva, diz Heidegger, um poder mágico, é poesia. O que é dito de maneira pura é poesia. Sabe-se que para Heidegger o mundo tecnológico actual perdeu a noção do Ser, nós vivemos um tempo obscuro de privação do Ser e de confusão. Cabe aos poetas, nesta situação, fazer-nos entrever as possibilidades de existência de um mundo que será verdadeiro.

O que é que eu encontro na poesia contemporânea, portuguesa mas não só, que me faça crer que aqueles que se apresentam como poetas ou são reconhecidos como poetas usam a linguagem pura, sólida e densa, do pensador? Que verdade sobre o Ser é que eles me revelam, que mundo verdadeiro, diferente do mundo tecnológico confuso, é que eles me deixam entrever? A minha realidade é resgatada por essa poesia? Prefiro não responder a esta pergunta. A capacidade que revela a maior parte da poesia actual de dizer a verdade, de falar uma linguagem pura, densa, sólida, é utópica.

Se Heidegger, como Wittgenstein e outros, se preocuparam menos em falar como filósofos do que em falar como seres humanos a contas com a realidade, por que razão continuam tantos pretensos poetas a querer falar sobretudo, tão literariamente e convencionalmente, como poetas? Eles acreditam provavelmente que para revelar a verdade, para iluminar as trevas ou fazer entrever o mistério, lhes basta ter sintaxe e juntar em metáforas insensatas palavras que não temos o costume de ver juntas. Nalguns casos a poesia ainda acontece. Na maior parte dos casos não acontece nada e o vazio permanece.

III

O problema quando se reflecte e escreve sobre poesia é que temos tendência a olhar para ela como um ente metafísico que escapa às regras de raciocínio, à atitude, à lógica com que resolvemos (ou não) os problemas que nos põe a realidade. Séculos de tradições atrás de nós, de manuais de retórica e de estilística, pesam e querem limitar a clareza do nosso pensar levando-nos na direcção errada. Os pesados e nem sempre inúteis estudos críticos de orientação retórica, centrados na estética e na literatura como sendo domínios meio religiosos, à parte de outras realidades, bem protegidos com o arame farpado das instituições universitárias como saber técnico altamente especializado, podem dar-nos a ilusão de resolver de maneira satisfatória o problema que põe a produção e a identificação da poesia como questão fundamental do SER . Mas a questão da existência da poesia -- que não é , como questão séria, uma questão estética em primeiro lugar, mas uma questão que diz respeito ao pensar - não se esclarece pelo recurso a explicações de ordem técnica, pois a técnica é apenas um dos elementos a ter em consideração (é necessário continuar a reflectir sobre essa questão: que papel desempenha a técnica na linguagem que tenta aproximar-se da poesia, passar por poesia?). Heidegger chamou justamente a atenção para o erro grave dos tempos modernos que consiste em acreditar que a inteligência e o espírito são a mesma coisa ou que a primeira pressupõe a existência ou salvaguarda do segundo. A inteligência está ao serviço de uma produção utilitária de saberes que querem dominar a realidade e aspiram a difundir-se (na universidade nomeadamente) para se tornar rentáveis. Mas essa inteligência transforma-se numa interpretação errada do que é o espírito, falsifica o espírito, e não convence Heidegger: "The spirit falsified into inteligence thus falls to the level of a tool in the service of others, a tool the manipulation of which can be taught and learned." (Introduction to Metaphysics) O espírito é outra coisa, é a mobilização dos poderes do que é ("the essent") enquanto ele mesmo e enquanto totalidade permanente. Onde o espírito prevalece, o Ser torna-se sempre e em permanência mais Ser. Onde a inteligência domina, só acontecem as interpretações erradas, a "emasculação do espírito: "Darkening the world means emasculation of the spirit, the desintegration, wasting away, repressing, and misinterpretation of the spirit." (Heidegger, Introduction to Methaphysics).

Esta tarde conheci uma rapariga que chegou ao café de bicicleta com a Náusea do Sartre na mão. Começámos a falar e ela disse: vim de bicicleta à beira mar, você conhece esse caminho? é tão bonito, foi fantástico. E o rosto dela respirava paz interior. Estiveste em contacto com a pureza do Ser nessa tua viagem, disse-lhe eu, influenciado pelas palavras de Heidegger que estava a ler, enquanto olhava as belas pernas nuas que sustentavam o seu busto. Haverá ainda muito a dizer para tornar mas claras estas questões. Mas por favor, poupem-me a longas e pesadas especulações críticas que não se preocupam seriamente em querer entender a essência do Ser, de cada manifestação do Ser, de tudo o que é. A obsessão da universidade com a linguagem e estudos dela derivados é sobretudo, senão exclusivamente, de ordem técnica, isto é, da ordem da competência professoral, esse vício, especializada no domínio do material linguístico. Poeta ou crítico que queiram resolver a questão da poesia recorrendo a estudos que priviligiem apenas a técnica não chegaram ainda a atingir o lugar da poesia, que não é religião nem literatura mas reflexão simples e árdua e frequentemente infecunda sobre o Ser e sobre a dificuldade de o vermos, de o sentirmos e de nos aproximarmos dele. No que me diz respeito, eu avalio a qualidade da poesia com a mesma isenção (ou falta de isenção) com que analiso a qualidade de um amigo, de um automóvel, de um chocolate, de uma relação amorosa. Não concedo a nenhuma forma de expressão, a nenhum objecto que se proponha aos meus sentidos, o privilégio de escapar ao meu raciocínio e avaliação crítica. Nem concedo de antemão a nada do que existe qualquer estatuto, nem sequer o estético, que o proteja da minha avaliação pessoal. Mas era necessário dizê-lo?

IV

Por que razão é que tanta poesia parece ter pavor da expressão directa, literal? Porque é muito difícil escrever poesia, chegar à poesia, usando a linguagem - as palavras, a sintaxe, etc. - de toda a gente. Claro. E nem sequer vou citar Wittgenstein a este respeito. Deve vir daí, desse horror à expressão literal, desse desprezo pela linguagem comum, a proliferação diabólica e doentia das metáforas, que seriam uma espécie de sinal exterior indiscutível e suficiente de linguagem poética, provando portanto, sem discussão nem análise suplementar, que estamos perante a poesia e o espírito superior que a criou. Outros processos são usados pelo mesmo motivo: a inversão da ordem das palavras na frase, por exemplo, distingue-se imediatamente de um tipo de discurso, de um acto de fala “normal”, e por isso cria sem grande esforço a ilusão de que o texto é poético. A rima e modelos formais com tradição literária, como o soneto, são também utilizados para que se acredite, independentemente de outras razões que haja para acreditá-lo, que o texto que nos é proposto é poético. Mas bastará usar metáforas, inverter a ordem das palavras na frase, meter as palavras dentro do invólucro do soneto para que haja poesia? Pode duvidar-se.

O uso que os românticos, os simbolistas, os surrealistas fizeram das imagens enriqueceu as palavras com sentidos novos. E enriqueceu a língua. As palavras e as suas diferentes combinações na frase tinham escondidas em si potencialidades de sentido inesgotáveis e que não tinham sido suficientemente exploradas. A nossa compreensão do real alargou-se nesse desrespeito pelo sentido literal. Esta constatação, no entanto, não é de modo nenhum uma apreciação estética. Um poeta pode ter contribuído para enriquecer a língua e alargar os limites da nossa compreensão da realidade sem no entanto ter sido um grande poeta, embora a capacidade de alargar os limites da nossa compreensão da realidade seja já uma característica da poesia como a entende, creio, Heidegger.

Não se escapa nunca ao sentido. Juntem-se as palavras, quaisquer palavras, ao acaso e logo se compreende que é impossível não perceber, ao ouvi-las ou lê-las, que elas criam e evocam imediatamente sentidos no nosso espírito. Não tem de ser um sentido claro. Mas é sentido, ainda assim. Cada palavra pode levar-nos numa direcção diferente porque cada palavra evoca sentidos diferentes. Nós não conseguimos fazer uma síntese das múltiplas direcções em que nos levam ao mesmo tempo as palavras que se sucedem estranhamente porque elas foram postas ao lado umas das outras, a seguir umas às outras, por acaso e sem intenção. Mas nem um Manual do Vazio Absoluto nos ajudaria a criar o vazio do sentido no nosso espírito enquanto ouvimos ou lemos as palavras e frases “incoerentes”. É impossível escapar ao sentido, é impossível libertar-se do sentido. Estas constatações não implicam juízos de valor sobre a qualidade ou o interesse dos sentidos assim suscitados. Mas explicam que em muitos textos que aspiram a ser poesia se encontrem as afirmações ou sugestões mais sublimes e as afirmações ou sugestões mais tolas. Como distinguir, porém, o sublime da tolice? É porque não há instrumento que permita distinguir sem erro o que é sublime do que é pura tolice que a confusão há-de continuar. Os tolos têm tanto direito a desorganizar a linguagem como os génios. E subitamente, por vezes, pode acontecer, para tornar definitiva e peremptória a nossa incapacidade de legislar neste domínio, que deparemos com tolices que são geniais (não me interrogo, agora pelo menos, sobre a eventualidade de ter começado por ser tolice o que mais tarde foi considerado genial).

Tenho visto atribuir prémios de poesia que se pretendem importantes a livros cheios de tolices. Os "júris", se não fossem eles próprios constituídos por tolos, teriam feito escolhas diferentes. Mas saber o que é a poesia não está facilmente ao nosso alcance.

Para afirmar que um poema é ridículo é necessário “interpretá-lo”. É a nossa interpretação apenas que separa as águas do sublime das águas da tolice. Um tolo provavelmente gosta de tolices, tem esse direito.

O efeito de estranheza desempenha, como se sabe, um papel importante na criação literária. Essa estranheza pode ser provocada pelo uso particular que se faz das palavras, pelo recurso a uma sintaxe surpreendente, pelo uso particular que se faz das imagens, pela forma nas suas diversas aparências, que incluem a sonoridade e a disposição gráfica do texto. O conhecimento ou desconhecimento, o respeito ou desrespeito - sejam absolutos, sejam selectivos - de técnicas literárias conhecidas e de modelos poéticos que gozam de prestígio também são factores a ter em conta na avaliação da qualidade poética.

Pode faltar-me a capacidade, o talento, a competência para explicar por que razão só alguns textos provocam em mim o efeito poético. Mas de uma coisa parece que tenho de estar seguro: a minha capacidade de apreciar ou não apreciar, de apreciar mais ou menos, não depende da minha vontade. Mesmo que me esforçasse, não conseguiria modificar a situação. E reconheço aos outros, sem qualquer esforço, exactamente os mesmos direitos.

O que é a poesia, então? É uma forma de pensar. E se o pensamento não é puro, se a qualidade do pensar é medíocre, a poesia é menor ou não chega a ser poesia. Ter sintaxe é necessário, mas não basta.


*Este texto foi publicado na Sítio 6*

João Camilo - Poeta e ensaísta nascido em 1943. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutorado pela Université de Haute Bretagne, com uma tese sobre a arte do romance em Carlos de Oliveira. Leitor de Português nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e professor convidado na Universidade de Grenoble, é atualmente professor catedrático de Português da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde dirige um Centro de Estudos Portugueses.