|João Camilo
I
Que
pretende a poesia? Criar personagens interessantes, em particular e para
começar o do próprio poeta, um indivíduo que “escreve poemas”, que através da
escrita reivindica um lugar na galeria de “figuras” da nossa sociedade? Assim
se sai do anonimato, é certo. Mas talvez se escreva poesia para reconstruir a
experiência? Isto é: para fixar o que já se perdeu ou nunca chegou a ser; para
pensar, divagar, contestar; para interrogar, protestar, explicar; para investigar,
construir, destruir; para corrigir, reinventar - e assim por diante, a porta
das hipóteses fica aberta.
Agindo
assim contribui-se para a existência de um universo humano com sentido, o
sentido que séculos de cultura e civilização foi elaborando. Ao escrever um
poema situamo-nos e situamos os outros nesse universo cheio de sentido. Para o
aperfeiçoar negando-o ou criticando-o, para nos interrogarmos sobre as razões
da sua existência e sobre a sua coerência, para o confirmar e provar que o seu
sentido tem sentido, um sentido que se pode discutir, sobre o qual se pode
discorrer.
O
poeta faz tudo isso artisticamente. Poeticamente. O que é que isso quer dizer,
porém, “artisticamente”, “poeticamente”? O que é o “poético”, além de ser tudo
aquilo que já se disse atrás que a poesia, como actividade de um indivíduo que
decide sair do silêncio e do anonimato para exibir a sua capacidade de
organização da experiência e para fazer ouvir a sua voz, é? O que é que torna
um texto poético, o que é que torna “poesia” aquilo que é dito num poema?
Porque tudo aquilo que atrás se disse que caracteriza a actividade dos poetas
também caracteriza outras actividades que nada têm a ver com a poesia. Ou
haverá poesia aquém e além da actividade poética deliberada, a artística, a
literária? Por ora pelo menos não vou citar Heidegger, a decadência ou a
ausência do ser que, citando Holderlin e Rilke, ele identifica com o
desaparecimento dos deuses, ficará para outra ocasião.
Um
soneto, uma canção, uma redondilha ou uma elegia de Camões são poéticos pela
forma, independentemente do que digam e que torna poéticos esses textos? À
primeira vista parece que sim. Mas bastará, para se ser poeta e ter escrito um
poema, recorrer a um modelo, a uma forma particular de organizar a linguagem identificável
exteriormente como “poética” ? É duvidoso. Se a canção, a elegia, o soneto de
Camões são poesia pode ser por outras razões, menos evidentes, mais difíceis de
explicar. Pressente-se desde o início que tem de ser por outras razões. O que
faz um soneto, uma redondilha, uma canção, uma elegia expressões ou actos de
fala susceptíveis de ser reconhecidos e eventualmente usufruídos e admirados
como poesia (ou como qualquer outra coisa a que não damos nome e que merece
respeito e atenção especial, mas creio que seria o início de outra
investigação) é, tudo parece indicá-lo, difícil de explicar.
Deixemos
de lado por ora as questões puramente técnicas. A minha curiosidade é de outra
natureza, embora não exclua a consideração das razões técnicas - competência
linguística e conhecimento da tradição literária - pelas quais um soneto, por
exemplo, é um bom soneto. As razões formais contam, é inegável: os sonetos de
Cesário Verde são diferentes dos sonetos de Camões; a técnica de construção, a
sintaxe, o vocabulário dos dois poetas não são os mesmos. Cesário, por exemplo,
termina sem hesitar uma frase no meio de um verso, escreve o ponto final e
começa outra frase, modificando o ritmo dos versos e do poema a que estávamos
habituados. Camões e os poetas Galego-Portugueses antes dele também praticaram
com mestria o “encavalgamento”, um verso continuava-se narrativamente no
seguinte sem problemas. Mas Cesário introduziu modificações nessa maneira de
não se deixar limitar na expressão poética de uma ideia pela extensão
convencional de um verso. Também se podia tratar neste capítulo o facto de
haver poesia que privilegia de maneira excepcional o uso da palavra e poesia
que precisa da frase para se afirmar como poesia (o que não quer dizer que
despreze, neste último caso, a importância da palavra em si mesma,
independentemente da sua inserção numa frase). Tudo isto são questões de ordem
técnica ou de ordem estilística.
O
que é que torna “poéticas” as palavras e as frases do poema, aquilo que aspira
a ser poesia e se apresenta como tal? O que é que faz "poético",
merecedor da atenção dos historiadores da literatura e de quem quer se outorga
a autoridade de considerar um texto como sendo "poesia", aquilo que
se escreve, que se diz ? Responder a esta questão é começar a elucidar o que é
que determinada sociedade ou determinada cultura (ou, dentro delas, determinado
grupo influente, para não dizermos determinada classe social) entende por
“poesia”.
II
Sabe-se
a importância que Heidegger atribui à poesia. A poesia, para Heidegger, é a
palavra que diz a verdade. O poeta, para ser grande, tem de ser alguém que
pensa. A qualidade do pensar do poeta tem de ser igual à qualidade do pensar do
grande pensador. Ambos são poetas, afinal. O pensar do grande pensador tem de
ter a pureza, a densidade e a solidez da poesia e o dizer do grande pensador,
consequentemente, é também poesia. A linguagem autêntica, que não está gasta
pelo uso, de que não se abusou, conserva, diz Heidegger, um poder mágico, é
poesia. O que é dito de maneira pura é poesia. Sabe-se que para Heidegger o
mundo tecnológico actual perdeu a noção do Ser, nós vivemos um tempo obscuro de
privação do Ser e de confusão. Cabe aos poetas, nesta situação, fazer-nos
entrever as possibilidades de existência de um mundo que será verdadeiro.
O
que é que eu encontro na poesia contemporânea, portuguesa mas não só, que me
faça crer que aqueles que se apresentam como poetas ou são reconhecidos como
poetas usam a linguagem pura, sólida e densa, do pensador? Que verdade sobre o
Ser é que eles me revelam, que mundo verdadeiro, diferente do mundo tecnológico
confuso, é que eles me deixam entrever? A minha realidade é resgatada por essa
poesia? Prefiro não responder a esta pergunta. A capacidade que revela a maior
parte da poesia actual de dizer a verdade, de falar uma linguagem pura, densa,
sólida, é utópica.
Se
Heidegger, como Wittgenstein e outros, se preocuparam menos em falar como
filósofos do que em falar como seres humanos a contas com a realidade, por que
razão continuam tantos pretensos poetas a querer falar sobretudo, tão
literariamente e convencionalmente, como poetas? Eles acreditam provavelmente
que para revelar a verdade, para iluminar as trevas ou fazer entrever o
mistério, lhes basta ter sintaxe e juntar em metáforas insensatas palavras que
não temos o costume de ver juntas. Nalguns casos a poesia ainda acontece. Na
maior parte dos casos não acontece nada e o vazio permanece.
III
O
problema quando se reflecte e escreve sobre poesia é que temos tendência a
olhar para ela como um ente metafísico que escapa às regras de raciocínio, à
atitude, à lógica com que resolvemos (ou não) os problemas que nos põe a
realidade. Séculos de tradições atrás de nós, de manuais de retórica e de
estilística, pesam e querem limitar a clareza do nosso pensar levando-nos na
direcção errada. Os pesados e nem sempre inúteis estudos críticos de orientação
retórica, centrados na estética e na literatura como sendo domínios meio
religiosos, à parte de outras realidades, bem protegidos com o arame farpado das
instituições universitárias como saber técnico altamente especializado, podem
dar-nos a ilusão de resolver de maneira satisfatória o problema que põe a
produção e a identificação da poesia como questão fundamental do SER . Mas a
questão da existência da poesia -- que não é , como questão séria, uma questão
estética em primeiro lugar, mas uma questão que diz respeito ao pensar - não se
esclarece pelo recurso a explicações de ordem técnica, pois a técnica é apenas
um dos elementos a ter em consideração (é necessário continuar a reflectir
sobre essa questão: que papel desempenha a técnica na linguagem que tenta
aproximar-se da poesia, passar por poesia?). Heidegger chamou justamente a
atenção para o erro grave dos tempos modernos que consiste em acreditar que a
inteligência e o espírito são a mesma coisa ou que a primeira pressupõe a
existência ou salvaguarda do segundo. A inteligência está ao serviço de uma
produção utilitária de saberes que querem dominar a realidade e aspiram a
difundir-se (na universidade nomeadamente) para se tornar rentáveis. Mas essa inteligência transforma-se numa interpretação
errada do que é o espírito, falsifica o espírito, e não convence Heidegger:
"The spirit falsified into inteligence thus falls to the level of a tool
in the service of others, a tool the manipulation of which can be taught and
learned." (Introduction to Metaphysics) O espírito
é outra coisa, é a mobilização dos poderes do que é ("the essent")
enquanto ele mesmo e enquanto totalidade permanente. Onde o espírito prevalece,
o Ser torna-se sempre e em permanência mais Ser. Onde a inteligência domina, só
acontecem as interpretações erradas, a "emasculação do espírito:
"Darkening the world means emasculation of the spirit, the desintegration,
wasting away, repressing, and misinterpretation of the spirit."
(Heidegger, Introduction to Methaphysics).
Esta
tarde conheci uma rapariga que chegou ao café de bicicleta com a Náusea do
Sartre na mão. Começámos a falar e ela disse: vim de bicicleta à beira mar,
você conhece esse caminho? é tão bonito, foi fantástico. E o rosto dela
respirava paz interior. Estiveste em contacto com a pureza do Ser nessa tua
viagem, disse-lhe eu, influenciado pelas palavras de Heidegger que estava a
ler, enquanto olhava as belas pernas nuas que sustentavam o seu busto. Haverá
ainda muito a dizer para tornar mas claras estas questões. Mas por favor,
poupem-me a longas e pesadas especulações críticas que não se preocupam
seriamente em querer entender a essência do Ser, de cada manifestação do Ser,
de tudo o que é. A obsessão da universidade com a linguagem e estudos dela
derivados é sobretudo, senão exclusivamente, de ordem técnica, isto é, da ordem
da competência professoral, esse vício, especializada no domínio do material linguístico.
Poeta ou crítico que queiram resolver a questão da poesia recorrendo a estudos
que priviligiem apenas a técnica não chegaram ainda a atingir o lugar da
poesia, que não é religião nem literatura mas reflexão simples e árdua e
frequentemente infecunda sobre o Ser e sobre a dificuldade de o vermos, de o
sentirmos e de nos aproximarmos dele. No que me diz respeito, eu avalio a
qualidade da poesia com a mesma isenção (ou falta de isenção) com que analiso a
qualidade de um amigo, de um automóvel, de um chocolate, de uma relação amorosa.
Não concedo a nenhuma forma de expressão, a nenhum objecto que se proponha aos
meus sentidos, o privilégio de escapar ao meu raciocínio e avaliação crítica.
Nem concedo de antemão a nada do que existe qualquer estatuto, nem sequer o
estético, que o proteja da minha avaliação pessoal. Mas era necessário dizê-lo?
IV
Por
que razão é que tanta poesia parece ter pavor da expressão directa, literal?
Porque é muito difícil escrever poesia, chegar à poesia, usando a linguagem -
as palavras, a sintaxe, etc. - de toda a gente. Claro. E nem sequer vou citar
Wittgenstein a este respeito. Deve vir daí, desse horror à expressão literal,
desse desprezo pela linguagem comum, a proliferação diabólica e doentia das
metáforas, que seriam uma espécie de sinal exterior indiscutível e suficiente
de linguagem poética, provando portanto, sem discussão nem análise suplementar,
que estamos perante a poesia e o espírito superior que a criou. Outros
processos são usados pelo mesmo motivo: a inversão da ordem das palavras na frase,
por exemplo, distingue-se imediatamente de um tipo de discurso, de um acto de
fala “normal”, e por isso cria sem grande esforço a ilusão de que o texto é
poético. A rima e modelos formais com tradição literária, como o soneto, são
também utilizados para que se acredite, independentemente de outras razões que
haja para acreditá-lo, que o texto que nos é proposto é poético. Mas bastará
usar metáforas, inverter a ordem das palavras na frase, meter as palavras
dentro do invólucro do soneto para que haja poesia? Pode duvidar-se.
O
uso que os românticos, os simbolistas, os surrealistas fizeram das imagens
enriqueceu as palavras com sentidos novos. E enriqueceu a língua. As palavras e
as suas diferentes combinações na frase tinham escondidas em si potencialidades
de sentido inesgotáveis e que não tinham sido suficientemente exploradas. A
nossa compreensão do real alargou-se nesse desrespeito pelo sentido literal.
Esta constatação, no entanto, não é de modo nenhum uma apreciação estética. Um
poeta pode ter contribuído para enriquecer a língua e alargar os limites da
nossa compreensão da realidade sem no entanto ter sido um grande poeta, embora
a capacidade de alargar os limites da nossa compreensão da realidade seja já
uma característica da poesia como a entende, creio, Heidegger.
Não
se escapa nunca ao sentido. Juntem-se as palavras, quaisquer palavras, ao acaso
e logo se compreende que é impossível não perceber, ao ouvi-las ou lê-las, que
elas criam e evocam imediatamente sentidos no nosso espírito. Não tem de ser um
sentido claro. Mas é sentido, ainda assim. Cada palavra pode levar-nos numa
direcção diferente porque cada palavra evoca sentidos diferentes. Nós não
conseguimos fazer uma síntese das múltiplas direcções em que nos levam ao mesmo
tempo as palavras que se sucedem estranhamente porque elas foram postas ao lado
umas das outras, a seguir umas às outras, por acaso e sem intenção. Mas nem um
Manual do Vazio Absoluto nos ajudaria a criar o vazio do sentido no nosso
espírito enquanto ouvimos ou lemos as palavras e frases “incoerentes”. É
impossível escapar ao sentido, é impossível libertar-se do sentido. Estas
constatações não implicam juízos de valor sobre a qualidade ou o interesse dos
sentidos assim suscitados. Mas explicam que em muitos textos que aspiram a ser
poesia se encontrem as afirmações ou sugestões mais sublimes e as afirmações ou
sugestões mais tolas. Como distinguir, porém, o sublime da tolice? É porque não
há instrumento que permita distinguir sem erro o que é sublime do que é pura
tolice que a confusão há-de continuar. Os tolos têm tanto direito a
desorganizar a linguagem como os génios. E subitamente, por vezes, pode
acontecer, para tornar definitiva e peremptória a nossa incapacidade de
legislar neste domínio, que deparemos com tolices que são geniais (não me
interrogo, agora pelo menos, sobre a eventualidade de ter começado por ser
tolice o que mais tarde foi considerado genial).
Tenho
visto atribuir prémios de poesia que se pretendem importantes a livros cheios
de tolices. Os "júris", se não fossem eles próprios constituídos por
tolos, teriam feito escolhas diferentes. Mas saber o que é a poesia não está
facilmente ao nosso alcance.
Para
afirmar que um poema é ridículo é necessário “interpretá-lo”. É a nossa
interpretação apenas que separa as águas do sublime das águas da tolice. Um
tolo provavelmente gosta de tolices, tem esse direito.
O
efeito de estranheza desempenha, como se sabe, um papel importante na criação
literária. Essa estranheza pode ser provocada pelo uso particular que se faz
das palavras, pelo recurso a uma sintaxe surpreendente, pelo uso particular que
se faz das imagens, pela forma nas suas diversas aparências, que incluem a
sonoridade e a disposição gráfica do texto. O conhecimento ou desconhecimento,
o respeito ou desrespeito - sejam absolutos, sejam selectivos - de técnicas
literárias conhecidas e de modelos poéticos que gozam de prestígio também são
factores a ter em conta na avaliação da qualidade poética.
Pode
faltar-me a capacidade, o talento, a competência para explicar por que razão só
alguns textos provocam em mim o efeito poético. Mas de uma coisa parece que
tenho de estar seguro: a minha capacidade de apreciar ou não apreciar, de
apreciar mais ou menos, não depende da minha vontade. Mesmo que me esforçasse,
não conseguiria modificar a situação. E reconheço aos outros, sem qualquer
esforço, exactamente os mesmos direitos.
O
que é a poesia, então? É uma forma de pensar. E se o pensamento não é puro, se
a qualidade do pensar é medíocre, a poesia é menor ou não chega a ser poesia.
Ter sintaxe é necessário, mas não basta.
*Este texto foi publicado na Sítio 6*
João
Camilo - Poeta e ensaísta nascido em 1943. Licenciado em Filologia Românica
pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutorado pela Université de Haute
Bretagne, com uma tese sobre a arte do romance em Carlos de Oliveira. Leitor de
Português nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e professor
convidado na Universidade de Grenoble, é atualmente professor catedrático de
Português da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde dirige um
Centro de Estudos Portugueses.