|Joana Serrado
XXI
____________:Debaixo do viaduto há uma gráfica e uma loja de latas.
Vendem-se mais coisas, das quais nunca percebi a utilidade: jarras, vidros de
todas as espécies, pisa-papéis, caixas, objectos que nunca vira nem soubera o
nome. A loja arrasta-se para dentro, com estantes e prateleiras às quais não se
tem acesso. Há sempre promoções numa moeda que já não existe. A loja pede
baixinho para se trespassar. O seu mundo já não é deste reino. A gráfica, por
baixo,
dá sinais de vida, ocasionalmente, mas nada perturba o trespasse da companheira
de cima. Entro lá como uma criminosa. Compro uma lata verde, onde poderei guardar
o meu poema de amor. Poderia também comprar uma jarra ou um pisa-papéis – deve
fazer falta, talvez, para guardar uma violeta e impedir que as cartas de amor esvoaçassem
pela janela. Poderia simultaneamente salvar a loja do trespasse e escrever um
poema de amor? Ou poderia comprar duas, três, cinco latas? Dizer ao dono que poderia
transformar a loja numa loja de latas, de todas as cores, para aquela multidão
que gritava contra o edifício, para todos eles escreverem e nela guardarem um poema
de amor? Mas ele nem sequer me ouve, avia-me o pedido e desaparece por entre as
prateleiras quase despidas para nunca mais ser visto.
À saída está um bêbado (será o velho do jardim?). Vive à porta da loja
que vai fechar. Todos os dias assiste à promoção das latas e dos pisa-papéis.
E
aperto a minha lata contra o peito e corro debaixo do viaduto.
In Guarany, 4águas, 2012.